fevereiro 26, 2004
Meu cachorro
Chama-se Robin e é um Weimaraner de dois anos. A homenagem que aqui lhe presto não é vaidosa nem despropositada. É que andei estudando o bichinho e, depois de comparar suas expressões fônicas às últimas declarações da filósofa Marilena Chauí, cheguei à conclusão de que ele é uma das pessoas mais inteligentes deste país.
O filósofo-mirim
I. As direções do espaço
"A cama é um móvel metafísico." (Nelson Rodrigues)
Meu primeiro experimento de investigação filosófica deu-se na cama - e não pelos motivos licenciosos que a palavra pode sugerir hoje em dia. Eu era apenas um garoto e, estando doente por vários anos, imobilizado pela febre, acostumei-me a uma perspectiva vertical do mundo, que começava no chão (prolongando-se imaginariamente até abaixo do centro da Terra) e se erguia até o fundo ilimitado do céu, adivinhado para além do teto. De tempos em tempos, a febre me largava e eu descobria, atônito, que tinha de reaprender a andar. Já contei isso aqui. Mas o giro de minha pessoa da posição horizontal para a vertical era acompanhado de um concomitante giro inverso do quadro do mundo. Formou-se assim naturalmente um esquema de proporções, que estruturou de uma vez para sempre, para mim, o quadro relacional das coisas: acima-abaixo, adiante-atrás, perto-longe. Estas linhas, que se cruzavam tendo como centro a minha humilde pessoinha, não designavam apenas direções do espaço, mas diferentes sentidos da experiência de viver. A horizontal era a saúde, a vida, a ação: brincar e correr, ir ao encontro de meus amigos, participar dos dramas e alegrias da tribo. A vertical era a solidão, a presença da morte, mas também a abertura para o céu infinito, numa paz sobre-humana.
Essas duas direções não se cruzavam apenas estaticamente: eram movimentadas pela alternância irregular do longe e do perto. Na horizontal, o longe ora significava a liberdade, a aventura, ora equivalia a estar perdido e desamparado, sem encontrar o caminho de casa; o perto ora designava a estreiteza do quarto que periodicamente me aprisionava, a limitação e o tédio da vida doméstica, ora o aconchego dos braços de minha mãe e a inesgotável riqueza do mundo pequeno: eu tinha dezenas de miniaturas - soldados, bichos, carros - e, ajeitando-os num caixote com areia entre plantas e pedras, ia compondo um universo miúdo, quase tão complexo quanto o grande. Na vertical, o perto representava ora o teto que pendia sobre mim como a tampa de um túmulo, ora a variedade interna das sensações e imaginações que faziam do meu corpo um microcosmo engenhoso, onde o doente imobilizado podia se instalar por semanas a fio sem muito desconforto; o longe, às vezes, era a imensidão serena do céu silencioso, às vezes o abismo do esquecimento, uma treva confusa e agitada, sem chão nem fim.
Tal era, em suma, o esquema do mundo. Devo sua descoberta ao ritmo peculiar de existência que a doença prolongada impõe ao corpo humano. As pessoas saudáveis vivem no mundo horizontal: quando mergulham na verticalidade, dormem e esquecem tudo. Não percebem que há ali outro espaço, tão real quanto o da agitação cotidiana: o universo do silêncio. O doente percebe claramente a passagem, a pulsação entre o oculto e o manifesto, o latente e o patente, o mistério e a claridade, bem como as rotações incessantes de sentido entre os seis pólos de uma cruz de três dimensões onde o homem está cravado no centro da esfera armilar do mundo.
O signo da esfera armilar gravou-se em mim, sem nome, sem palavras, por fim sem imagens -- pura latência interior --, antes mesmo que eu tivesse a menor consciência de qualquer ênfase religiosa que lhe estivesse associada. Reencontrei-o muitas vezes, mais tarde, nos ritos da Igreja, na arquitetura dos templos, na ordem interna das obras de arte, e em dois dos maiores livros escritos neste século: O Simbolismo da Cruz, de René Guénon, e A Estrutura Absoluta, de Raymond Abellio, que, uma vez lidos, se incorporaram definitivamente à minha concepção das coisas, como traduções verbais quase perfeitas de uma experiência primordial e arquetípica.
Suponho que todos os homens tenham vivido essa experiência. Apenas, passando por ela demasiado rapidamente, não repararam nem na sua beleza, nem no seu alcance metafísico. Tão distraído e fútil é o ser humano, que somente a doença tem o poder de forçá-lo à contemplação. Mas nem toda doença serve: não pode ser breve e intensa como um desmaio, nem tão prolongada que leve ao entorpecimento da consciência. Só a doença consumptiva, que derruba sem adormecer, que enfraquece sem derrotar, produz aquela imobilidade paciente e serena em que a profundidade das coisas começa lentamente a revelar-se. Mais tarde, a sentença de Aristóteles -- "A imobilidade gera a sabedoria" -- retiniu em minha alma como uma verdade tão certa e tão alta, que nela reconheço a marca do sagrado.
II. A realidade do mundo exterior
Minha segunda experiência filosófica foi, em contraste, banal e rasteira: retirou-me dos altos cimos da contemplação metafísica para me atirar nos jogos dialéticos vulgares que muitos tomam como se fossem a filosofia mesma, toda a filosofia. Trata-se da pergunta sobre a existência do mundo exterior. Ela surgiu em mim tão logo, refeito da doença aos sete anos de idade, entrei definitivamente no mundo humano. Devia agora mover-me, orientar-me ativamente no espaço horizontal. O esforço físico não me surpreendeu: era apenas a tradução em voz ativa do sofrimento e da dor habituais. O que me pegou desprevenido foi a súbita necessidade de usar a visão, afeita à penumbra e aos longos delírios, para mapear o espaço físico em torno. Foi aí que reparei que meus olhos eram ruins. Pior: que discordavam entre si. O direito mostrava uma perspectiva afunilada, hierarquizada, onde a nitidez diminuía com a distância. O outro mostrava-me um mundo bidimensional, chapado, onde tudo, de dois metros para diante, tinha o mesmo perfil difuso - mas suficientemente nítido para ser reconhecido - e os objetos mais próximos se esfumavam como borrões num papel molhado. Mais tarde os médicos, sem corrigir o defeito, me dariam o notável reconforto de saber o seu nome técnico: eu tinha uma leve miopia no olho direito, uma pesada hipermetropia mesclada de astigmatismo no esquerdo. Bela droga! Mas, na ocasião, o fenômeno suscitou em mim as mais profundas e ociosas interrogações em que o cérebro filosófico já se lambuzou: Entre as duas imagens contraditórias, qual a verdadeira? Elas devem excluir-se ou sintetizar-se num terceiro quadro? E, em caso de ser impossível a síntese, a aporia tomava a forma clássica: Não estarei totalmente enganado quanto ao que vejo? Posso confiar em meus sentidos? Existe, afinal, o mundo sensível, ou é tudo ilusão e fantasmagoria?
Confirmei assim por experiência, em toda a linha, aquilo que dizia Fontenelle, que para ser filósofo é preciso ter um cérebro saudável e olhos doentes.
O curioso é que eu me fazia essas perguntas várias vezes por dia, mas ao mesmo tempo tinha o sentimento vivo da sua fatuidade. Embrulhava-me nelas como um peixe na rede, sentindo que estava me deixando envolver numa singular e requintada forma de perda de tempo.
Como resolvi a aporia? A solução já foi exposta em meus escritos e aulas. Mas o ponto de partida foi o seguinte.
Observei que a duplicidade de visões não era permanente; ela se desfazia tão logo eu deixava de prestar-lhe atenção, voltando às ocupações verdadeiramente sérias, como alinhar soldadinhos de chumbo ou levar minhas tartarugas de estimação (eram sete) para nadar no tanque. Ora, mesmo vistos com a duplicidade de perspectivas, os soldadinhos que eu punha à esquerda ficavam à esquerda, os da direita na direita. Do mesmo modo, olhadas alternadamente pelos dois olhos, as tartarugas, se pareciam duplicar-se em número, conservavam fielmente, as da tela esquerda e as da tela direita, um comportamento homogêneo: quando a tartaruga número 1 da tela esquerda ia para o fundo, ou boiava, ou ia em frente, o mesmo fazia o seu equivalente da tela direita; e assim todas as seis, ou melhor, as doze restantes. Num dia em que estava inteiramente absorvido em ocupações anfíbias, totalmente alheio a perguntas filosóficas, repentinamente atinei que a duplicidade de visões se recortava sobre o fundo comum de um mesmo sistema de direções do espaço. Se eu não tivesse claramente a noção intuitiva de direita, esquerda, frente, fundo, perto, longe, acima, abaixo, nunca teria podido sequer perceber a diferença entre as visões que me eram mostradas por um olho e pelo outro, já que essa diferença consistia precisamente em distâncias medidas nessas direções. É claro que não percebi a coisa com essas palavras, e na verdade não foi nem com palavras, mas com uma repentina superposição de esquemas geométricos na tela da consciência. Levei décadas para poder expressar isso em palavras, mas na hora, em linguagem de figuras, tudo ficou perfeitamente claro e confirmei instantaneamente minha impressão de que as dúvidas quanto a forma e à existência do mundo exterior eram um sórdido e fútil auto-engano.
O mundo real não era nem o da tela esquerda nem o da direita. Não era nem mesmo uma tela, mas sim o espaço no qual eu me movia, o qual continuava rigorosamente organizado em torno de mim, desdobrando-se em inumeráveis perspectivas que se sucediam à medida que eu me movia e jamais se desligavam umas das outras. O mundo, em suma, era aquilo que depois eu soube chamar-se um "continuum espaço-tempo" -- um tipo de coisa que tinha pelo menos duas propriedades: (1) a de compor-se de uma infinidade de ângulos, que se mesclavam conforme a gente se movia, sempre encaixados uns nos outros sem salto ou ruptura, e (2) a de aparecer diferente, sem deixar de ser o mesmo, conforme os olhos que o vissem. Ora, era precisamente esse continuum que eu rompia sempre que começava a examinar a duplicidade de visões e me expunha à humilhante dúvida cética, paralisando a sucessão vivente das perspectivas para deter-me em duas delas, isolando-as de todas as outras e opondo uma à outra em suas respectivas reivindicações de uma realidade soberana. Essa ruptura não acontecia sem que eu a desejasse ou, pelo menos, a consentisse: era eu quem a produzia, era a minha vontade que partia o mundo em pedaços para depois se queixar de não poder colá-los de volta; era a minha vontade que exigia injustamente, de duas fatias de mundo, as propriedades de um mundo inteiro. A dúvida cética não era imposta pela realidade, mas criada artificialmente por uma consciência que, levada por algum instinto maligno, apreciava prender-se a si mesma na cumbuca de uma pergunta idiota. Mais tarde, a experiência da vida me confirmou que toda dúvida cética, toda contestação do poder da inteligência humana para conhecer o real parte sempre de uma decisão da vontade, ou melhor, de uma má-vontade, que se recusa a conhecer e se deleita em seguida em demonstrar a validade universal da sua impotência. O ceticismo é sempre um abstracionismo pérfido, que se engana por medo de enganar-se.
Também não precisei de muito esforço para afastar mais tarde a objeção kantiana de que as direções do espaço eram projeções da minha mente. Como, afinal, as tartarugas haveriam de mover-se numa projeção da minha mente, em vez de fazê-lo na água do tanque? Minha mente não projetava uma tela, e sim duas: e quem as unificava não era eu mesmo, pensando, mas as tartarugas, nadando. Era o contrário do que dizia Kant: em vez de a mente dar unidade aos fragmentos sensíveis colhidos do mundo exterior, era a unidade do mundo exterior que se sobrepunha, imperiosa, à confusão da mente fragmentada. Estar no mundo não é costurar com formas a priori um caos atomístico de sensações, mas conquistar aos poucos a unidade da consciência pela participação na unidade do real.
janeiro 02, 2004
Um homenzinho filosófico
Tempos atrás, quando a leitura de As Portas da Percepção de Aldous Huxley estava fresca na memória da geração Woodstock e ainda era moda louvar as virtudes iluminativas da ingestão de drogas, conheci dois irmãos que faziam viagens ao menos semanais nas asas do LSD. Acreditavam com isso estar adquirindo poderes extraordinários, ascendendo ao pináculo do conhecimento espiritual. Embora eu notasse que, em vez disso, eles se tornavam cada dia mais idiotas, abstive-me de qualquer esforço para tirá-los da ilusão. Uma só vez apresentei a um deles uma modesta objeção às suas pretensões, e isto bastou para deixá-lo embasbacado ao ponto de esfriar por algum tempo sua devocäo lisérgica. Foi assim. Ele estava me contando que a droga aguçava sua percepção sensorial, a dele e a do irmão, ao ponto de que este último, estando a cinqüenta metros de distância, podia ser chamado de volta com um simples cochicho, ouvindo-o com a nitidez de quem estivesse a cinqüenta centímetros.
-- Mas, se estavam ambos drogados, -- perguntei -- como é que você sabe que era seu irmão quem, estando a cinqüenta metros, ouvia como se estivesse a cinqüenta centímetros, e não você próprio quem, estando a cinqüenta centímetros dele, o enxergava como se estivesse a cinqüenta metros?
Ele arregalou os olhos, coçou a cabeça e confessou:
-- Pô! Eu nunca havia pensado nisso.
Como logo depois ele e o irmão saíram do meu círculo de convivência, não sei se minha observação chegou a ajudá-los ou se, passado o momento de perplexidade, voltaram à rotina estupefaciente.
O que sei é que, para mim, a conversa foi de uma utilidade extraordinária, num sentido que nenhum deles jamais poderia suspeitar. A partir desse dia, adquiri o hábito de examinar o problema da percepção sempre por dois lados, emissor e receptor, em vez de fazê-lo só desde o ponto de vista do sujeito, como tinha sido de praxe na filosofia ao longo de pelo menos três séculos, de Descartes a Husserl. Foi assim que me livrei não só das inibições cépticas contraídas da leitura de David Hume, mas também do remédio ainda mais profundamente inibidor constituído pelas precauções críticas de Immanuel Kant. Se a primeira lição do adestramento filosófico é o confronto com as objeções cépticas quanto à possibilidade do conhecimento, deixar-se prender na jaula do kantismo e aprender a escapulir dela já é uma etapa superior de aprendizado, na qual muitos filósofos de ofício continuam atolados até à morte. Foi no dia em que venci essa etapa que pude pela primeira vez olhar no espelho e proclamar com orgulho: “Meu filho, você já está um homenzinho.” Perto disso, aqueles que, não conseguindo evadir-se do subjetivismo cartesiano, apelaram ao subterfúgio de negar a existência do sujeito, como Foucault e Heidegger, começaram a me parecer adolescentes que, impedidos de elevar-se ao estado de homenzinhos, e mais ainda ao de homens, forjaram um arremedo de consolo mediante a negação da possibilidade de amadurecer.
A chave da jaula kantiana, invisível a tantas gerações, esteve no entanto sempre à mostra. Para encontrá-la, bastava lembrar que nenhum sujeito pode ser só e exclusivamente sujeito, sem ser jamais objeto. Na relação cognoscitiva, sujeito é aquele que recebe as informações, objeto aquele que as emite. Na relação ativa, ao contrário, sujeito é o que age, objeto o que recebe a ação; mas como toda ação é transferência de informações, nenhum ente pode ser sujeito da ação sem ser simultaneamente objeto desde o ponto de vista cognoscitivo, nem objeto da ação sem ser cognoscitivamente sujeito. Para que numa relação cognoscitiva um homem pudesse ser total e unilateralmente sujeito, sem nada de objeto, ele precisaria estar totalmente desprovido da possibilidade de agir sobre o objeto, isto é, de transferir-lhe informações e ser portanto, para ele, objeto cognoscitivo. Logicamente falando, é uma obviedade dizer que sujeito e objeto são termos relativos, que exprimem posições e relações acidentais entre os entes, e não a natureza fixa e definitiva de qualquer deles. Mas justamente essa obviedade deixou de ser levada em conta na prática filosófica durante três séculos, daí nascendo o subjetivismo que descambou inevitavelmente em cepticismo e fenomenalismo, isto é, na redução do mundo a um conjunto de aparências sem essência identificável. O erro aí foi, na verdade, primário: o sujeito foi sempre examinado como sujeito, o objeto como objeto, elevando meras posições relativas à condição de diferenças ontológicas irrecorríveis. Só graças a esse cacoete foi possível argumentar, como Montaigne, que “como nosso estado acomoda as coisas a si, e as transforma de acordo consigo próprio, não sabemos mais o que são as coisas em verdade; pois nada chega ao nosso conhecimento senão falsificado e alterado pelos nossos sentidos” (Éssais, Paris, Garnier, 1962, I, p. 632). Nesse parágrafo, o príncipe dos cépticos modernos, penetrando já no puro kantismo avant la lettre, dá por pressuposto que os sentidos humanos alteram por si as informações recebidas das coisas, sem se perguntar se as coisas, por seu lado, teriam o poder de enviá-las diversas do que as recebemos. Vejo, por exemplo, um elefante a cinqüenta metros, e ele me parece do tamanho de um coelho. Mas ele, por sua vez, teria o poder de fazer-se ver como se estivesse a cinqüenta centímetros? Em caso de dúvida, posso testar isso olhando-me a mim mesmo num espelho a várias distâncias. Se meus olhos não conseguem, a cinqüenta metros, me ver maior do que a distância admite, é porque meu corpo também não pode, a essa mesma distância, projetar de si uma imagem ampliada para que os olhos o vejam maior. A limitação não está nos olhos, mas simultaneamente neles e no corpo que vêem. Não está no sujeito, mas simultaneamente nele e no objeto. E essa limitação recíproca, obviamente, não é limitação: é a adequação da mensagem enviada à mensagem lida, é a proporcionalidade de emissão e recepção, é, em suma, percepção da realidade no seu tecido vivo de interações e perspectivas. Descartes, Hume e Kant poderiam ter feito essa experiência, mas jamais consentiram em descer da dignidade de sujeitos à humilde condição de objetos. Tomaram-se como puros olhos, desprovidos de corpos, transformando o mundo num corpo sem olho, que eles viam mas não podia vê-los. Desprovido abstrativamente da condição de objeto que é concomitante e inerente à sua possibilidade de ser sujeito, o sujeito humano se excluía da realidade ao mesmo tempo que tentava alcançá-la – exatamente como quem tentasse provar o gosto da comida sem levá-la à boca – e, naturalmente não o conseguindo, concluía pela existência de um abismo entre sujeito e objeto, entre conhecimento e realidade, sem perceber que o abismo só existia porque ele próprio o havia cavado. René Descartes desceu tão fundo nesse estado de auto-hipnose, que, vendo da janela as pessoas que caminhavam pela rua, tinha dificuldade em admitir que, como ele, fossem sujeitos cognoscentes e não simples corpos em movimento. O sujeito só pode fechar-se em si quando se esquece de sua condição de objeto, rebaixando a objetos os demais sujeitos. Tornado permanente, esse estado seria pura despersonalização esquizofrênica.
Foi mediante essas considerações que pude livrar-me do subjetivismo moderno, sem ter de recorrer ao expediente “pós-moderno” -- e ainda mais profundamente esquizofrênico -- de negar, além do conhecimento, a existência do próprio conhecedor.
Não creio que a dupla de sapientes drogados tenha tirado tanto proveito de minhas observações.
agosto 24, 2003
Confissões de um brontossauro
Na caracterologia de René Le Senne, sou um “sentimental-passional”, o que quer dizer a mistura exata de dois tipos opostos. O sentimental puro é um contemplativo romântico que, desiludido com o mundo, prefere uma derrota digna ao envolvimento com a miséria ambiente. O passional é um ambicioso calculista, frio e paciente que nunca desiste de seus objetivos e em geral acaba por alcançá-los. A mistura significa que passo noventa por cento do tempo tentando me persuadir a aceitar uma derrota digna, mas no fundo não desisti de nada e no fim dou um jeito de conseguir o que queria. Daí a demora extraordinária de tudo na minha vida. Publiquei meu primeiro livro aos 48 anos. Comecei a lecionar numa universidade aos 50. Estreei como articulista no Globo aos 53, uma idade em que as tchurma só pensa em aposentadoria. Com 56, tenho planos que requerem quatro décadas de trabalho.
Esse esquema de existência exige longas esperas, quase inconcebíveis para o imediatismo brasileiro. Conservo meus sonhos dentro de mim, em silêncio e banho-maria, longo tempo depois que o pessoal em volta acredita que os abandonei, que já estou em outra. Aos dezenove anos, maravilhado com os ensaios de Otto Maria Carpeaux que descobri em velhas edições poeirentas escondidas no fundo de uma biblioteca pública, prometi a mim mesmo reeditá-los um dia com prefácio, notas, as elegâncias todas. Comecei a realizar o plano aos 49 anos. O segundo volume está atrasado. Quando ninguém mais acreditar que ele vai sair, podem ter a certeza de que chegará às livrarias. That’s the story of my bloody life.
O destino parece que me adestrou para esse passo extravagante, de tartaruga ou brontossauro, imobilizando-me por sete anos numa cama, doente, desde o nascimento. Eu passava semanas, meses com febre, delirando. Era tanto tempo prostrado, arfando, que quando emergia das sombras e me sentava na beirada da cama, tinha de reaprender a andar. Achava duvidoso que minhas pernas obedecessem ao comando do cérebro e ficava ali, ensaiando mentalmente, incrédulo, até que elas começassem a se mover por si mesmas, restaurando minha confiança na realidade do mundo físico.
Como nunca tinha tido saúde para poder comparar com a doença, tudo me parecia inteiramente normal e eu nunca me impacientava com o estado de coisas. Ah, quanto vale a inocência! Um garoto saudável, que de repente se visse naquela situação, acrescentaria às dores e incomodidades o padecimento intolerável da revolta. Eu, que não imaginava de maneira alguma que o mundo pudesse ser melhor, me adaptava ao pior com a naturalidade de uma lagartixa plantada no teto, inconsciente de que desafia a gravidade.
Levei tanta injeção de benzetacil que, passado meio século, minha bunda ainda dói. Mas na época as picadas ardisíssimas eram rotina banal. Eu presumia que todo mundo tomava toneladas de benzetacil, e me curvava, dócil, ao que pensava ser o destino comum da espécie humana. Minha mãe conta que eu era de um bom-humor surpreendente. Quando não estava tossindo ou delirando, estava rindo.
Depois, quando repentinamente tudo passou e saí para o mundo, ele era tão feio, tedioso e miserável que aí sim comecei a me sentir doente. A reserva de sonhos e imagens acumulada ao longo de anos de torpor físico revelou, então, sua utilidade. Com grande facilidade eu me isolava interiormente do cenário em torno, fugindo para um universo mais interessante, de minha própria invenção. Mas não era do tipo avoado. Desenvolvi uma habilidade incrível de fazer uma coisa pensando em outra, de manter uma ligação mínima com o ambiente para que ninguém percebesse que eu não estava ali. Na escola, simulava atenção com um centésimo do cérebro, enquanto os noventa e nove por cento restantes ficavam pensando em coisas lindas. A coisa mais linda da galáxia era o rosto de minha prima Maria Luísa, para o qual fugia quando a chatice em torno se tornava insuportável. Não era bem uma paixão (Maria Luísa já era moça quando eu usava fraldas): era uma contemplação extática sem desejo, uma delícia sem fim que se bastava a si mesma e poderia prosseguir pela eternidade. Mas Maria Luíza não era o meu único refúgio. Cheguei a ter longas conversas com as pessoas mais chatas do universo, fingindo eficazmente um interesse que as lisonjeava, enquanto por dentro fantasiava as criações mais extraordinárias, enredos inteiros repletos de aventuras, cavaleiros, princesas, castelos e dragões.
Mais tarde arranjei os empregos mais aborrecidos e acabrunhantes que havia no mercado, e me desincumbia das tarefas com pura atenção périférica, voltado interiormente para outra coisa.
[Continua]
julho 10, 2003
Digestão intelectual
Tudo o que escrevi, incluindo o mais abstrato, nasceu direto da experiência -- do esforço de traduzir em símbolos e conceitos aquilo que a vida mesma parecia me dizer.
Não me lembro de ter jamais reagido de maneira puramente intelectual a um estímulo intelectual, muito menos de maneira verbal a um estímulo verbal. Os produtos culturais, livros, idéias, fórmulas, não exercem sobre mim nenhum impacto antes de uma longa digestão vivencial. Minha primeira leitura ou audição é inteiramente passiva e até inocente. Entrego-me indefeso e sem reação ao que estou lendo, ouvindo, vendo. Deixo que tudo se acumule na memória e que as coisas sem interesse acabem escoando sozinhas pelo ralo do esquecimento. As que sobram bóiam um tempo à superfície da consciência, afundam, somem, voltam à tona, reaparecem em sonhos ou em clarões fugazes, dias ou semanas depois. Nesse ínterim sofreram alterações, adaptaram-se de algum modo ao meu metabolismo interior. Quando voltam, já não são criaturas estranhas: são habitantes do meu cenário pessoal. Mesmo então, não me ocupo delas deliberadamente. Deixo que repousem, como livros nas estantes, até o momento em que pareçam ter alguma utilidade. Isto acontece quando algum fato, espoucando no mundo exterior ou brotando espontaneamente da memória, se aproxima delas por semelhança, contraste ou alguma outra razão, exigindo ser expresso nos termos delas ou rejeitando-os violentamente. É só quando solicitam repetidamente minha atenção que começo realmente a “pensar” nelas. “Pensar” não é bem o termo. Tento, primeiro, exprimi-las, dizer o que dizem. Se tudo vai bem, anoto-as, mas só para fins de registro. Tornaram-se minhas, mas ainda não as assumo como crenças pessoais: são só impressões, que o desenrolar da vida pode desmentir, alterar, ampliar, fundir. Às vezes, porém, não chegam sequer a esse ponto. Na hora de exprimi-las, noto que não consigo dizê-las numa voz interior que eu reconheça como minha. Fazem soar uma nota falsa. Em algum ponto estão raspando, forçando passagem, estranguladas num conduto mental que as rejeita. Isto ainda não tem nada a ver com recusa intelectual, com negação consciente. É um simples sentimento de falta de naturalidade, um desconforto quase físico, como se eu tentasse engolir um bife de plástico. Elas apenas ainda não se harmonizaram o bastante com o meu modo de ser para que eu possa fazer delas objeto de discussão interior, exame refletido, concordância ou discordância. Então decreto sumariamente que não as compreendi, e deposito-as num arquivo de encrencas, à espera de que o curso das coisas, as leituras ou a sorte as completem, as corrijam ou, de algum modo, as digam melhor. Quanto às outras, as de expressão fácil, é só quando chego a perceber claramente suas implicações na minha vida real que começam a significar algo para mim. E é somente aí que começa o trabalho verdadeiramente intelectual de examiná-las, criticá-las, conferi-las com as palavras dos mestres e o estado da ciência, julgá-las e, por fim, explicá-las oralmente ou por escrito.
Quem vê a prontidão das minhas respostas não imagina a lerdeza e a complicação do meu processo mental. É que não me meto a discutir senão assuntos longamente metabolizados, tornados familiares não só à minha memória mas ao meu modo de ser. Então as respostas vêm fáceis, parecendo improvisos, lampejos gratuitos de um dom natural de compreender num relançe. Mas não são nada disso: são frutos de um trabalhoso “saber de experiência feito”, de uma complexa e lenta ruminação bovina. Não que esta me seja desagradável e dolorosa. Ao contrário: ela sim me é natural, é meu autêntico ritmo interior, o modo de ser arraigado e renitente de um típico “secundário” da caracterologia de Le Senne.
Justamente por isso não me reconheço no “Pensador” de Rodin. Aquela concentração dolorida, aquela crispação não têm nada a ver comigo. Meu processo é lento, profundo e confortável como o silencioso operar das funções orgânicas. Tem seus percalços, suas perturbações, como todos os processos naturais. Mas recusa-se obstinadamente a sair das linhas que o giro normal do cosmos lhe prescreveu. Nada me desagrada mais do que solicitarem minha atenção para o mundo exterior quando estou imerso no meu secreto mar de símbolos. Se o tempo é a substância da vida, a atenção é a seiva do espírito. Detesto que me suguem a seiva no instante em que a estou renovando por um mergulho no fundo da natureza das coisas tal como ela se manifesta na minha própria natureza.
O “pensar”, para mim, é só a última e mais superficial etapa de um trabalho complicado que passa pelas sensações, pela memória, pelos sentimentos, pela imaginação. Pensar é fácil, depois que você já escavou o material do fundo da experiência. O problema é que nossos intelectuais de hoje, mesmo quando pensam direito, pensam sem material. Sua experiência é de superfície, de segunda mão, é experiência “cultural” colhida da conversação comum e dos “topoi”. No que escrevem há idéias, opiniões: nenhuma “impressão autêntica”, como as chamava Saul Bellow.
Por isso também é raro que eu consiga escrever algo que já não tenha falado. Com muitos escritores acontece o contrário: se falam, perdem a substância do que iam escrever, como numa ejaculação precoce, num presente-suspresa prematuramente revelado. Precisam do segredo para criar. Mas minhas palavras são secretas por natureza. Brotam de uma obscura elaboração orgânica e não poderiam sair da toca antes do tempo, mesmo que quisessem. A expressão escrita não me vem sem aquela preparação indispensável que é a tentativa oral, seja em conversas informais, seja em aula. É impossível passar direto de uma vivência quase corporal à expressão escrita. A fala em voz alta, com os gestos e entonações que a sublinham, é um intermediário indispensável. Só consigo escrever quando sei que gestos e entonações a frase escrita deve imitar para que nelas transpareça a pessoa inteira do seu autor. Pois só a pessoa inteira pode dar testemunho da realidade que presenciou.
Registro estas coisas não porque elas sejam interessantes em si mesmas, mas porque podem ajudar alguns leitores, por semelhança ou contraste, a observar e compreender melhor o seu próprio processo interior. Cada um de nós é, na orquestra das comunicações humanas, um só instrumento: um violoncelo, uma tuba, uma flauta, um tambor. Cada um tem suas exigências próprias, que é preciso compreender para poder afiná-lo.
Da minha parte, estou persuadido de ser uma trompa de caça, que não clama do alto das amuradas, como os trompetes, nem geme ao pé dos ouvidos apaixonados, como os violinos, mas ressoa do fundo da floresta, indicando o caminho aos caçadores ou alertando para a proximidade dos animais de presa.
junho 10, 2003
Da águia de Haia ao papagaio de Evian
É inacreditável. Diante das minhas observações sobre os discursos de Lula (“Um clássico e um paralelo”, O Globo, 7 jun. 2003), um petista enfezado metido a universitário me escreveu que eu ignorava ou desprezava a diferença entre gramática e lingüística. O argumento supunha, naturalmente, que esta última falava em favor do estilo presidencial. Nunca pensei ter de me rebaixar a esse tipo de explicações, que no meu tempo qualquer adolescente alcançava sozinho, por intuição imediata. A lingüística encontra uma ordem e uma estrutura por trás de qualquer discurso, inclusive o dos esquizofrênicos, o dos disléxicos, o dos chimpanzés e até o do sr. Jacques Derrida. Deve encontrá-las também, decerto, no fundo dos discursos de S. Excia., o que, como diria Groucho Marx, não melhora em nada a situação deste último.
A mensagem, em todo caso, tem o mérito da tipicidade. Na cabeça dos nossos universitários, o mais completo analfabetismo funcional convive em boa paz com um arremedo de pedantismo científico, o qual permite uma boa simulação provinciana de debate intelectual tão logo se veja reforçado por alguns chavões acadêmicos de quarenta anos atrás, que a platéia juvenil recebe como novidades arrasadoras contra os reacionários adeptos da educação clássica.
A miséria cultural deste país ultrapassa todas as possibilidades de descrição. Pode-se apenas designá-la, de longe, simbolicamente. Um bom símbolo é o nosso presidente em Evian, com um sorriso idiota nos lábios, vagando como um fantasma surdo e mudo entre as vozes anglófonas de homens vindos de nações mil vezes mais pobres que o Brasil.
A glória política de Lula não é a redenção da pobreza. É a consagração da ignorância auto-satisfeita, tão orgulhosa de seu terno Armani quanto de não saber falar inglês.
É verdade que a águia de Haia parece ter sido antes uma lenda que uma realidade. Raymundo Magalhães Júnior diz isso. Em A Torre do Orgulho, de Barbara Tuchman, a única menção ao nosso Ruy é que, entre todos os enviados à conferência, ele era o mais chato. O suposto brilho do seu desempenho parece ter passado completamente despercebido.
Mas no caso a lenda ainda podia alegar algum
fundamentum in re, pois Ruy era de fato escritor excelente,
ao menos na escala local. Um aluno meu resolveu a parada com esta
observação maravilhosa: mítica ou não, a águia de Haia continua
perfeitamente discernível do papagaio de Evian.
junho 02, 2003
Tema a desenvolver
Este país já se tornou indigno -- ou incapaz -- de ser examinado sob a ótica da filosofia política, que pressupõe, nos agentes do processo histórico, um mínimo indispensável de consistência, de realidade, de substancialidade. No Brasil de hoje tudo é simulação -- numa medida jamais vista em qualquer outro lugar ou época da história --, e por isso os únicos enfoques possíveis para estudá-lo são o da psicopatologia social e o da criminologia: o primeiro porque as conexões entre os pensamentos e a realidade, entre a vida interior e exterior dos personagens, são puramente convencionais e imaginárias; o segundo, porque não há um só ato ou decisão dos agentes que não constitua de algum modo uma violação das leis do país, para não dizer dos princípios elementares da moralidade. No fundo, a simples existência de um país como esse já é uma imoralidade, talvez um crime.
A vida pública no Brasil de hoje não pode sequer ser objeto de sátira, pois ela mesma é satírica, no sentido de que todas as falas e ações dos personagens têm duplo significado e os dois significados são igualmente ilusórios: aquele que o agente pretende impingir ao ouvinte ou espectador e aquele em que ele se baseia para se orientar no quadro daquilo que imagina ser a realidade.
O atual enredo brasileiro é totalmente composto de auto-ilusões que se sustentam na base de ilusões secundárias criadas para ludibriar o próximo, mas que não raro acabam por persuadir o próprio agente, transformando-o em instrumento inconsciente daqueles a quem pretendia enganar.
As ações aí obedecem rigorosamente à estrutura de um engano mútuo fundado num duplo auto-engano, multiplicando-se num efeito em espelho até a total impossibilidade de controlar -- ou até de narrar -- o fluxo dos acontecimentos.
Nesse panorama, qualquer discussão de idéias, doutrinas ou programas de ação nunca é o que parece, mas também não é o que os produtores da comédia desejariam que parecesse, uma vez que eles não têm domínio suficiente da realidade para projetar um efeito previsível e acabam sendo eles próprios arrastados no jogo de fantasmagorias que criaram.
É a apoteose da macaquice, que termina por macaquear-se a si mesma, na ilusão suprema de poder restabelecer contato com a realidade por meio de uma macaqueação de segundo grau.
A coisa só não descamba em tragédia porque as ações são tênues, o território é grande e os contatos sociais são ralos e epidérmicos. Comprimido num espaço mais denso, esse jogo seria explosivo. O caos das consciências só não se transmuta em caos social porque os agentes são fracos demais para romper o quadro rotineiro da vida, que, na desorientação geral, continua o único guiamento possível e adquire uma autoridade quase divina, produzindo, como efeito colateral, o culto devoto da banalidade.