maio 20, 2003

Di�rio do futuro

Nenhum di�rio � di�rio. O mais longo deles, em dezessete volumes, que Julien Green iniciou aos 26 anos e terminou aos 96, pula dias, semanas, meses. N�o obstante, fica a inten��o: documentar as impress�es que passam, os pensamentos que talvez n�o voltem nunca mais. Green fazia isso porque, como Proust, tinha a obsess�o do tempo que se esvai, mergulhando a cada instante no nada, � maneira das redondilhas,

�que quanto da vida passa
est� recitando a morte�.

Se h� um sentimento que nunca tive, � esse. Sou a menos proustiana das criaturas. Nunca tive saudades dos mortos, dos tempos idos, dos lugares vistos ou do que quer que fosse. Dou gra�as a Deus de que os anos n�o tragam mais a tal inf�ncia querida. Desde pequeno, tive indelevelmente a sensa��o de eternidade, a certeza de que tudo quanto � bom nesta vida est� guardado no supratempo e n�o passa nunca. O que passa � o baga�o dos dias.

A imagem mais forte que me ficou dos primeiros anos -- eu tinha uns sete ou oito -- � a de uma c�pula de igreja, azul e branca, sem pinturas, com uma pomba que entrara por uma das altas janelas semi-abertas, esvoa�ando entre suaves raios de sol. Posso estar maluco, mas asseguro que, n�o sei como, a pomba me sorria.

Nesse instante tudo o que viera antes se apagou, e muito do que viria depois. Que me importa, pois, a minha inf�ncia? Todas as inf�ncias nos aguardam na inf�ncia eterna do Menino Jesus.

Da� minha pouca disposi��o de embalsamar o tempo. O �nico tempo de que tenho saudades � o tempo al�m do tempo, aquele do qual viemos e ao qual retornaremos, um dia, na esperan�a do perd�o eterno.

No entanto, nem tudo o que se registra � para fins proustianos. H� impress�es e id�ias que devem ser registradas n�o porque passaram, mas precisamente porque n�o se passaram, porque se passaram incompletamente e n�o chegaram propriamente � exist�ncia. S�o vislumbres, pressentimentos, intui��es em germe, mal esbo�adas num limbo de sombras. Essas devem ser conservadas, n�o como monumentos do passado, mas como sementes de intelec��es poss�veis.

Desde h� tempos tomei o h�bito de guard�-las, e volta e meia a elas retorno, convocando-as a vir � luz. Quase tudo o que publiquei em livro ou expliquei em aula deriva dessas notas.

S�o o di�rio de meus pensamentos futuros.

Posted by Olavo at maio 20, 2003 06:22 PM