fevereiro 26, 2004

O fil�sofo-mirim

I. As dire��es do espa�o

"A cama � um m�vel metaf�sico." (Nelson Rodrigues)

Meu primeiro experimento de investiga��o filos�fica deu-se na cama - e n�o pelos motivos licenciosos que a palavra pode sugerir hoje em dia. Eu era apenas um garoto e, estando doente por v�rios anos, imobilizado pela febre, acostumei-me a uma perspectiva vertical do mundo, que come�ava no ch�o (prolongando-se imaginariamente at� abaixo do centro da Terra) e se erguia at� o fundo ilimitado do c�u, adivinhado para al�m do teto. De tempos em tempos, a febre me largava e eu descobria, at�nito, que tinha de reaprender a andar. J� contei isso aqui. Mas o giro de minha pessoa da posi��o horizontal para a vertical era acompanhado de um concomitante giro inverso do quadro do mundo. Formou-se assim naturalmente um esquema de propor��es, que estruturou de uma vez para sempre, para mim, o quadro relacional das coisas: acima-abaixo, adiante-atr�s, perto-longe. Estas linhas, que se cruzavam tendo como centro a minha humilde pessoinha, n�o designavam apenas dire��es do espa�o, mas diferentes sentidos da experi�ncia de viver. A horizontal era a sa�de, a vida, a a��o: brincar e correr, ir ao encontro de meus amigos, participar dos dramas e alegrias da tribo. A vertical era a solid�o, a presen�a da morte, mas tamb�m a abertura para o c�u infinito, numa paz sobre-humana.

Essas duas dire��es n�o se cruzavam apenas estaticamente: eram movimentadas pela altern�ncia irregular do longe e do perto. Na horizontal, o longe ora significava a liberdade, a aventura, ora equivalia a estar perdido e desamparado, sem encontrar o caminho de casa; o perto ora designava a estreiteza do quarto que periodicamente me aprisionava, a limita��o e o t�dio da vida dom�stica, ora o aconchego dos bra�os de minha m�e e a inesgot�vel riqueza do mundo pequeno: eu tinha dezenas de miniaturas - soldados, bichos, carros - e, ajeitando-os num caixote com areia entre plantas e pedras, ia compondo um universo mi�do, quase t�o complexo quanto o grande. Na vertical, o perto representava ora o teto que pendia sobre mim como a tampa de um t�mulo, ora a variedade interna das sensa��es e imagina��es que faziam do meu corpo um microcosmo engenhoso, onde o doente imobilizado podia se instalar por semanas a fio sem muito desconforto; o longe, �s vezes, era a imensid�o serena do c�u silencioso, �s vezes o abismo do esquecimento, uma treva confusa e agitada, sem ch�o nem fim.

Tal era, em suma, o esquema do mundo. Devo sua descoberta ao ritmo peculiar de exist�ncia que a doen�a prolongada imp�e ao corpo humano. As pessoas saud�veis vivem no mundo horizontal: quando mergulham na verticalidade, dormem e esquecem tudo. N�o percebem que h� ali outro espa�o, t�o real quanto o da agita��o cotidiana: o universo do sil�ncio. O doente percebe claramente a passagem, a pulsa��o entre o oculto e o manifesto, o latente e o patente, o mist�rio e a claridade, bem como as rota��es incessantes de sentido entre os seis p�los de uma cruz de tr�s dimens�es onde o homem est� cravado no centro da esfera armilar do mundo.

O signo da esfera armilar gravou-se em mim, sem nome, sem palavras, por fim sem imagens -- pura lat�ncia interior --, antes mesmo que eu tivesse a menor consci�ncia de qualquer �nfase religiosa que lhe estivesse associada. Reencontrei-o muitas vezes, mais tarde, nos ritos da Igreja, na arquitetura dos templos, na ordem interna das obras de arte, e em dois dos maiores livros escritos neste s�culo: O Simbolismo da Cruz, de Ren� Gu�non, e A Estrutura Absoluta, de Raymond Abellio, que, uma vez lidos, se incorporaram definitivamente � minha concep��o das coisas, como tradu��es verbais quase perfeitas de uma experi�ncia primordial e arquet�pica.

Suponho que todos os homens tenham vivido essa experi�ncia. Apenas, passando por ela demasiado rapidamente, n�o repararam nem na sua beleza, nem no seu alcance metaf�sico. T�o distra�do e f�til � o ser humano, que somente a doen�a tem o poder de for��-lo � contempla��o. Mas nem toda doen�a serve: n�o pode ser breve e intensa como um desmaio, nem t�o prolongada que leve ao entorpecimento da consci�ncia. S� a doen�a consumptiva, que derruba sem adormecer, que enfraquece sem derrotar, produz aquela imobilidade paciente e serena em que a profundidade das coisas come�a lentamente a revelar-se. Mais tarde, a senten�a de Arist�teles -- "A imobilidade gera a sabedoria" -- retiniu em minha alma como uma verdade t�o certa e t�o alta, que nela reconhe�o a marca do sagrado.

II. A realidade do mundo exterior

Minha segunda experi�ncia filos�fica foi, em contraste, banal e rasteira: retirou-me dos altos cimos da contempla��o metaf�sica para me atirar nos jogos dial�ticos vulgares que muitos tomam como se fossem a filosofia mesma, toda a filosofia. Trata-se da pergunta sobre a exist�ncia do mundo exterior. Ela surgiu em mim t�o logo, refeito da doen�a aos sete anos de idade, entrei definitivamente no mundo humano. Devia agora mover-me, orientar-me ativamente no espa�o horizontal. O esfor�o f�sico n�o me surpreendeu: era apenas a tradu��o em voz ativa do sofrimento e da dor habituais. O que me pegou desprevenido foi a s�bita necessidade de usar a vis�o, afeita � penumbra e aos longos del�rios, para mapear o espa�o f�sico em torno. Foi a� que reparei que meus olhos eram ruins. Pior: que discordavam entre si. O direito mostrava uma perspectiva afunilada, hierarquizada, onde a nitidez diminu�a com a dist�ncia. O outro mostrava-me um mundo bidimensional, chapado, onde tudo, de dois metros para diante, tinha o mesmo perfil difuso - mas suficientemente n�tido para ser reconhecido - e os objetos mais pr�ximos se esfumavam como borr�es num papel molhado. Mais tarde os m�dicos, sem corrigir o defeito, me dariam o not�vel reconforto de saber o seu nome t�cnico: eu tinha uma leve miopia no olho direito, uma pesada hipermetropia mesclada de astigmatismo no esquerdo. Bela droga! Mas, na ocasi�o, o fen�meno suscitou em mim as mais profundas e ociosas interroga��es em que o c�rebro filos�fico j� se lambuzou: Entre as duas imagens contradit�rias, qual a verdadeira? Elas devem excluir-se ou sintetizar-se num terceiro quadro? E, em caso de ser imposs�vel a s�ntese, a aporia tomava a forma cl�ssica: N�o estarei totalmente enganado quanto ao que vejo? Posso confiar em meus sentidos? Existe, afinal, o mundo sens�vel, ou � tudo ilus�o e fantasmagoria?

Confirmei assim por experi�ncia, em toda a linha, aquilo que dizia Fontenelle, que para ser fil�sofo � preciso ter um c�rebro saud�vel e olhos doentes.

O curioso � que eu me fazia essas perguntas v�rias vezes por dia, mas ao mesmo tempo tinha o sentimento vivo da sua fatuidade. Embrulhava-me nelas como um peixe na rede, sentindo que estava me deixando envolver numa singular e requintada forma de perda de tempo.

Como resolvi a aporia? A solu��o j� foi exposta em meus escritos e aulas. Mas o ponto de partida foi o seguinte.

Observei que a duplicidade de vis�es n�o era permanente; ela se desfazia t�o logo eu deixava de prestar-lhe aten��o, voltando �s ocupa��es verdadeiramente s�rias, como alinhar soldadinhos de chumbo ou levar minhas tartarugas de estima��o (eram sete) para nadar no tanque. Ora, mesmo vistos com a duplicidade de perspectivas, os soldadinhos que eu punha � esquerda ficavam � esquerda, os da direita na direita. Do mesmo modo, olhadas alternadamente pelos dois olhos, as tartarugas, se pareciam duplicar-se em n�mero, conservavam fielmente, as da tela esquerda e as da tela direita, um comportamento homog�neo: quando a tartaruga n�mero 1 da tela esquerda ia para o fundo, ou boiava, ou ia em frente, o mesmo fazia o seu equivalente da tela direita; e assim todas as seis, ou melhor, as doze restantes. Num dia em que estava inteiramente absorvido em ocupa��es anf�bias, totalmente alheio a perguntas filos�ficas, repentinamente atinei que a duplicidade de vis�es se recortava sobre o fundo comum de um mesmo sistema de dire��es do espa�o. Se eu n�o tivesse claramente a no��o intuitiva de direita, esquerda, frente, fundo, perto, longe, acima, abaixo, nunca teria podido sequer perceber a diferen�a entre as vis�es que me eram mostradas por um olho e pelo outro, j� que essa diferen�a consistia precisamente em dist�ncias medidas nessas dire��es. � claro que n�o percebi a coisa com essas palavras, e na verdade n�o foi nem com palavras, mas com uma repentina superposi��o de esquemas geom�tricos na tela da consci�ncia. Levei d�cadas para poder expressar isso em palavras, mas na hora, em linguagem de figuras, tudo ficou perfeitamente claro e confirmei instantaneamente minha impress�o de que as d�vidas quanto a forma e � exist�ncia do mundo exterior eram um s�rdido e f�til auto-engano.

O mundo real n�o era nem o da tela esquerda nem o da direita. N�o era nem mesmo uma tela, mas sim o espa�o no qual eu me movia, o qual continuava rigorosamente organizado em torno de mim, desdobrando-se em inumer�veis perspectivas que se sucediam � medida que eu me movia e jamais se desligavam umas das outras. O mundo, em suma, era aquilo que depois eu soube chamar-se um "continuum espa�o-tempo" -- um tipo de coisa que tinha pelo menos duas propriedades: (1) a de compor-se de uma infinidade de �ngulos, que se mesclavam conforme a gente se movia, sempre encaixados uns nos outros sem salto ou ruptura, e (2) a de aparecer diferente, sem deixar de ser o mesmo, conforme os olhos que o vissem. Ora, era precisamente esse continuum que eu rompia sempre que come�ava a examinar a duplicidade de vis�es e me expunha � humilhante d�vida c�tica, paralisando a sucess�o vivente das perspectivas para deter-me em duas delas, isolando-as de todas as outras e opondo uma � outra em suas respectivas reivindica��es de uma realidade soberana. Essa ruptura n�o acontecia sem que eu a desejasse ou, pelo menos, a consentisse: era eu quem a produzia, era a minha vontade que partia o mundo em peda�os para depois se queixar de n�o poder col�-los de volta; era a minha vontade que exigia injustamente, de duas fatias de mundo, as propriedades de um mundo inteiro. A d�vida c�tica n�o era imposta pela realidade, mas criada artificialmente por uma consci�ncia que, levada por algum instinto maligno, apreciava prender-se a si mesma na cumbuca de uma pergunta idiota. Mais tarde, a experi�ncia da vida me confirmou que toda d�vida c�tica, toda contesta��o do poder da intelig�ncia humana para conhecer o real parte sempre de uma decis�o da vontade, ou melhor, de uma m�-vontade, que se recusa a conhecer e se deleita em seguida em demonstrar a validade universal da sua impot�ncia. O ceticismo � sempre um abstracionismo p�rfido, que se engana por medo de enganar-se.

Tamb�m n�o precisei de muito esfor�o para afastar mais tarde a obje��o kantiana de que as dire��es do espa�o eram proje��es da minha mente. Como, afinal, as tartarugas haveriam de mover-se numa proje��o da minha mente, em vez de faz�-lo na �gua do tanque? Minha mente n�o projetava uma tela, e sim duas: e quem as unificava n�o era eu mesmo, pensando, mas as tartarugas, nadando. Era o contr�rio do que dizia Kant: em vez de a mente dar unidade aos fragmentos sens�veis colhidos do mundo exterior, era a unidade do mundo exterior que se sobrepunha, imperiosa, � confus�o da mente fragmentada. Estar no mundo n�o � costurar com formas a priori um caos atom�stico de sensa��es, mas conquistar aos poucos a unidade da consci�ncia pela participa��o na unidade do real.

Posted by Olavo at fevereiro 26, 2004 06:19 PM