Com poucos dias de intervalo, publica��es cient�ficas noticiaram que os chimpanz�s s�o geneticamente humanos e que os beb�s em gesta��o reconhecem as vozes de suas m�es. N�o � preciso ser muito esperto para antever as rea��es dos intelelectuais: a primeira not�cia ser� aceita com entusiasmo, a segunda suscitar� fortes rea��es de protesto ou pelo menos uma epidemia de pondera��es atenuantes. L�gico: para os representantes da classe esclarecida, � muito mais f�cil admitir a humanidade dos chimpanz�s que a de seus pr�prios filhos ainda n�o nascidos.�
O sr. Peter Singer, por exemplo, acha que comer galinhas � um crime t�o grande quanto o Holocausto, e o prof. Renato Janine Ribeiro julga uma desumanidade adestrar os c�es para que n�o fa�am pipi na sala.
Os inimigos da pena de morte para crimes hediondos celebram a execu��o de beb�s culpados do crime de n�o ter nascido em tempo de escapar do aborto.
A condi��o de pessoa humana �, segundo os cientistas sociais, uma conven��o cultural, de modo que n�o h� contradi��o em atribu�-la aos chimpanz�s e ao mesmo tempo neg�-la ao beb� humano em gesta��o, reduzindo-o � condi��o de excrec�ncia do corpo da m�e que, assim, tem o direito de cort�-lo como se fosse uma unha ou um joanete -- pr�tica que, aplicada aos chimpanz�s, seria considerada extremamente desumana.
Mas a diferen�a espec�fica do humano ante o n�o-humano � gen�tica ou
cultural? Se � gen�tica, est� presente desde a concep��o, sem
esperar pelo nascimento. Se � cultural, n�o pode beneficiar os
chimpanz�s. Por isso veremos doravante imperar nas discuss�es
letradas uma dupla concep��o do humano: gen�tica, para sustentar os
direitos humanos dos chimpanz�s; cultural, para legitimar o
assassinato dos beb�s no ventre de suas m�es.
Uma das vantagens deste di�rio � que, se muitas das suas entradas podem virar artigos, outras podem complementar e corrigir os artigos publicados. Posso tamb�m aqui relacionar um artigo com outro, mostrando a continuidade do racioc�nio, que escapa por vezes aos leitores de jornal.
Este di�rio ser� meu ant�doto � fragmenta��o do jornalismo.
Nenhum di�rio � di�rio. O mais longo deles, em dezessete volumes, que Julien Green iniciou aos 26 anos e terminou aos 96, pula dias, semanas, meses. N�o obstante, fica a inten��o: documentar as impress�es que passam, os pensamentos que talvez n�o voltem nunca mais. Green fazia isso porque, como Proust, tinha a obsess�o do tempo que se esvai, mergulhando a cada instante no nada, � maneira das redondilhas,
�que quanto da vida passa
est� recitando a morte�.
Se h� um sentimento que nunca tive, � esse. Sou a menos proustiana das criaturas. Nunca tive saudades dos mortos, dos tempos idos, dos lugares vistos ou do que quer que fosse. Dou gra�as a Deus de que os anos n�o tragam mais a tal inf�ncia querida. Desde pequeno, tive indelevelmente a sensa��o de eternidade, a certeza de que tudo quanto � bom nesta vida est� guardado no supratempo e n�o passa nunca. O que passa � o baga�o dos dias.
A imagem mais forte que me ficou dos primeiros anos -- eu tinha uns sete ou oito -- � a de uma c�pula de igreja, azul e branca, sem pinturas, com uma pomba que entrara por uma das altas janelas semi-abertas, esvoa�ando entre suaves raios de sol. Posso estar maluco, mas asseguro que, n�o sei como, a pomba me sorria.
Nesse instante tudo o que viera antes se apagou, e muito do que viria depois. Que me importa, pois, a minha inf�ncia? Todas as inf�ncias nos aguardam na inf�ncia eterna do Menino Jesus.
Da� minha pouca disposi��o de embalsamar o tempo. O �nico tempo de que tenho saudades � o tempo al�m do tempo, aquele do qual viemos e ao qual retornaremos, um dia, na esperan�a do perd�o eterno.
No entanto, nem tudo o que se registra � para fins proustianos. H� impress�es e id�ias que devem ser registradas n�o porque passaram, mas precisamente porque n�o se passaram, porque se passaram incompletamente e n�o chegaram propriamente � exist�ncia. S�o vislumbres, pressentimentos, intui��es em germe, mal esbo�adas num limbo de sombras. Essas devem ser conservadas, n�o como monumentos do passado, mas como sementes de intelec��es poss�veis.
Desde h� tempos tomei o h�bito de guard�-las, e volta e meia a elas retorno, convocando-as a vir � luz. Quase tudo o que publiquei em livro ou expliquei em aula deriva dessas notas.
S�o o di�rio de meus pensamentos futuros.