� inacredit�vel. Diante das minhas observa��es sobre os discursos de Lula (“Um cl�ssico e um paralelo”, O Globo, 7 jun. 2003), um petista enfezado metido a universit�rio me escreveu que eu ignorava ou desprezava a diferen�a entre gram�tica e ling��stica. O argumento supunha, naturalmente, que esta �ltima falava em favor do estilo presidencial. Nunca pensei ter de me rebaixar a esse tipo de explica��es, que no meu tempo qualquer adolescente alcan�ava sozinho, por intui��o imediata. A ling��stica encontra uma ordem e uma estrutura por tr�s de qualquer discurso, inclusive o dos esquizofr�nicos, o dos disl�xicos, o dos chimpanz�s e at� o do sr. Jacques Derrida. Deve encontr�-las tamb�m, decerto, no fundo dos discursos de S. Excia., o que, como diria Groucho Marx, n�o melhora em nada a situa��o deste �ltimo.
A mensagem, em todo caso, tem o m�rito da tipicidade. Na cabe�a dos nossos universit�rios, o mais completo analfabetismo funcional convive em boa paz com um arremedo de pedantismo cient�fico, o qual permite uma boa simula��o provinciana de debate intelectual t�o logo se veja refor�ado por alguns chav�es acad�micos de quarenta anos atr�s, que a plat�ia juvenil recebe como novidades arrasadoras contra os reacion�rios adeptos da educa��o cl�ssica.
A mis�ria cultural deste pa�s ultrapassa todas as possibilidades de descri��o. Pode-se apenas design�-la, de longe, simbolicamente. Um bom s�mbolo � o nosso presidente em Evian, com um sorriso idiota nos l�bios, vagando como um fantasma surdo e mudo entre as vozes angl�fonas de homens vindos de na��es mil vezes mais pobres que o Brasil.
A gl�ria pol�tica de Lula n�o � a reden��o da pobreza. � a consagra��o da ignor�ncia auto-satisfeita, t�o orgulhosa de seu terno Armani quanto de n�o saber falar ingl�s.
� verdade que a �guia de Haia parece ter sido antes uma lenda que uma realidade. Raymundo Magalh�es J�nior diz isso. Em A Torre do Orgulho, de Barbara Tuchman, a �nica men��o ao nosso Ruy � que, entre todos os enviados � confer�ncia, ele era o mais chato. O suposto brilho do seu desempenho parece ter passado completamente despercebido.
Mas no caso a lenda ainda podia alegar algum
fundamentum in re, pois Ruy era de fato escritor excelente,
ao menos na escala local. Um aluno meu resolveu a parada com esta
observa��o maravilhosa: m�tica ou n�o, a �guia de Haia continua
perfeitamente discern�vel do papagaio de Evian.
Este pa�s j� se tornou indigno -- ou incapaz -- de ser examinado sob a �tica da filosofia pol�tica, que pressup�e, nos agentes do processo hist�rico, um m�nimo indispens�vel de consist�ncia, de realidade, de substancialidade. No Brasil de hoje tudo � simula��o -- numa medida jamais vista em qualquer outro lugar ou �poca da hist�ria --, e por isso os �nicos enfoques poss�veis para estud�-lo s�o o da psicopatologia social e o da criminologia: o primeiro porque as conex�es entre os pensamentos e a realidade, entre a vida interior e exterior dos personagens, s�o puramente convencionais e imagin�rias; o segundo, porque n�o h� um s� ato ou decis�o dos agentes que n�o constitua de algum modo uma viola��o das leis do pa�s, para n�o dizer dos princ�pios elementares da moralidade. No fundo, a simples exist�ncia de um pa�s como esse j� � uma imoralidade, talvez um crime.
A vida p�blica no Brasil de hoje n�o pode sequer ser objeto de s�tira, pois ela mesma � sat�rica, no sentido de que todas as falas e a��es dos personagens t�m duplo significado e os dois significados s�o igualmente ilus�rios: aquele que o agente pretende impingir ao ouvinte ou espectador e aquele em que ele se baseia para se orientar no quadro daquilo que imagina ser a realidade.
O atual enredo brasileiro � totalmente composto de auto-ilus�es que se sustentam na base de ilus�es secund�rias criadas para ludibriar o pr�ximo, mas que n�o raro acabam por persuadir o pr�prio agente, transformando-o em instrumento inconsciente daqueles a quem pretendia enganar.
As a��es a� obedecem rigorosamente � estrutura de um engano m�tuo fundado num duplo auto-engano, multiplicando-se num efeito em espelho at� a total impossibilidade de controlar -- ou at� de narrar -- o fluxo dos acontecimentos.
Nesse panorama, qualquer discuss�o de id�ias, doutrinas ou programas de a��o nunca � o que parece, mas tamb�m n�o � o que os produtores da com�dia desejariam que parecesse, uma vez que eles n�o t�m dom�nio suficiente da realidade para projetar um efeito previs�vel e acabam sendo eles pr�prios arrastados no jogo de fantasmagorias que criaram.
� a apoteose da macaquice, que termina por macaquear-se a si mesma, na ilus�o suprema de poder restabelecer contato com a realidade por meio de uma macaquea��o de segundo grau.
A coisa s� n�o descamba em trag�dia porque as a��es s�o t�nues, o territ�rio � grande e os contatos sociais s�o ralos e epid�rmicos. Comprimido num espa�o mais denso, esse jogo seria explosivo. O caos das consci�ncias s� n�o se transmuta em caos social porque os agentes s�o fracos demais para romper o quadro rotineiro da vida, que, na desorienta��o geral, continua o �nico guiamento poss�vel e adquire uma autoridade quase divina, produzindo, como efeito colateral, o culto devoto da banalidade.