Tempos atr�s, quando a leitura de As Portas da Percep��o de Aldous Huxley estava fresca na mem�ria da gera��o Woodstock e ainda era moda louvar as virtudes iluminativas da ingest�o de drogas, conheci dois irm�os que faziam viagens ao menos semanais nas asas do LSD. Acreditavam com isso estar adquirindo poderes extraordin�rios, ascendendo ao pin�culo do conhecimento espiritual. Embora eu notasse que, em vez disso, eles se tornavam cada dia mais idiotas, abstive-me de qualquer esfor�o para tir�-los da ilus�o. Uma s� vez apresentei a um deles uma modesta obje��o �s suas pretens�es, e isto bastou para deix�-lo embasbacado ao ponto de esfriar por algum tempo sua devoc�o lis�rgica. Foi assim. Ele estava me contando que a droga agu�ava sua percep��o sensorial, a dele e a do irm�o, ao ponto de que este �ltimo, estando a cinq�enta metros de dist�ncia, podia ser chamado de volta com um simples cochicho, ouvindo-o com a nitidez de quem estivesse a cinq�enta cent�metros.
-- Mas, se estavam ambos drogados, -- perguntei -- como � que voc� sabe que era seu irm�o quem, estando a cinq�enta metros, ouvia como se estivesse a cinq�enta cent�metros, e n�o voc� pr�prio quem, estando a cinq�enta cent�metros dele, o enxergava como se estivesse a cinq�enta metros?
Ele arregalou os olhos, co�ou a cabe�a e confessou:
-- P�! Eu nunca havia pensado nisso.
Como logo depois ele e o irm�o sa�ram do meu c�rculo de conviv�ncia, n�o sei se minha observa��o chegou a ajud�-los ou se, passado o momento de perplexidade, voltaram � rotina estupefaciente.
O que sei � que, para mim, a conversa foi de uma utilidade extraordin�ria, num sentido que nenhum deles jamais poderia suspeitar. A partir desse dia, adquiri o h�bito de examinar o problema da percep��o sempre por dois lados, emissor e receptor, em vez de faz�-lo s� desde o ponto de vista do sujeito, como tinha sido de praxe na filosofia ao longo de pelo menos tr�s s�culos, de Descartes a Husserl. Foi assim que me livrei n�o s� das inibi��es c�pticas contra�das da leitura de David Hume, mas tamb�m do rem�dio ainda mais profundamente inibidor constitu�do pelas precau��es cr�ticas de Immanuel Kant. Se a primeira li��o do adestramento filos�fico � o confronto com as obje��es c�pticas quanto � possibilidade do conhecimento, deixar-se prender na jaula do kantismo e aprender a escapulir dela j� � uma etapa superior de aprendizado, na qual muitos fil�sofos de of�cio continuam atolados at� � morte. Foi no dia em que venci essa etapa que pude pela primeira vez olhar no espelho e proclamar com orgulho: �Meu filho, voc� j� est� um homenzinho.� Perto disso, aqueles que, n�o conseguindo evadir-se do subjetivismo cartesiano, apelaram ao subterf�gio de negar a exist�ncia do sujeito, como Foucault e Heidegger, come�aram a me parecer adolescentes que, impedidos de elevar-se ao estado de homenzinhos, e mais ainda ao de homens, forjaram um arremedo de consolo mediante a nega��o da possibilidade de amadurecer.
A chave da jaula kantiana, invis�vel a tantas gera��es, esteve no entanto sempre � mostra. Para encontr�-la, bastava lembrar que nenhum sujeito pode ser s� e exclusivamente sujeito, sem ser jamais objeto. Na rela��o cognoscitiva, sujeito � aquele que recebe as informa��es, objeto aquele que as emite. Na rela��o ativa, ao contr�rio, sujeito � o que age, objeto o que recebe a a��o; mas como toda a��o � transfer�ncia de informa��es, nenhum ente pode ser sujeito da a��o sem ser simultaneamente objeto desde o ponto de vista cognoscitivo, nem objeto da a��o sem ser cognoscitivamente sujeito. Para que numa rela��o cognoscitiva um homem pudesse ser total e unilateralmente sujeito, sem nada de objeto, ele precisaria estar totalmente desprovido da possibilidade de agir sobre o objeto, isto �, de transferir-lhe informa��es e ser portanto, para ele, objeto cognoscitivo. Logicamente falando, � uma obviedade dizer que sujeito e objeto s�o termos relativos, que exprimem posi��es e rela��es acidentais entre os entes, e n�o a natureza fixa e definitiva de qualquer deles. Mas justamente essa obviedade deixou de ser levada em conta na pr�tica filos�fica durante tr�s s�culos, da� nascendo o subjetivismo que descambou inevitavelmente em cepticismo e fenomenalismo, isto �, na redu��o do mundo a um conjunto de apar�ncias sem ess�ncia identific�vel. O erro a� foi, na verdade, prim�rio: o sujeito foi sempre examinado como sujeito, o objeto como objeto, elevando meras posi��es relativas � condi��o de diferen�as ontol�gicas irrecorr�veis. S� gra�as a esse cacoete foi poss�vel argumentar, como Montaigne, que �como nosso estado acomoda as coisas a si, e as transforma de acordo consigo pr�prio, n�o sabemos mais o que s�o as coisas em verdade; pois nada chega ao nosso conhecimento sen�o falsificado e alterado pelos nossos sentidos� (�ssais, Paris, Garnier, 1962, I, p. 632). Nesse par�grafo, o pr�ncipe dos c�pticos modernos, penetrando j� no puro kantismo avant la lettre, d� por pressuposto que os sentidos humanos alteram por si as informa��es recebidas das coisas, sem se perguntar se as coisas, por seu lado, teriam o poder de envi�-las diversas do que as recebemos. Vejo, por exemplo, um elefante a cinq�enta metros, e ele me parece do tamanho de um coelho. Mas ele, por sua vez, teria o poder de fazer-se ver como se estivesse a cinq�enta cent�metros? Em caso de d�vida, posso testar isso olhando-me a mim mesmo num espelho a v�rias dist�ncias. Se meus olhos n�o conseguem, a cinq�enta metros, me ver maior do que a dist�ncia admite, � porque meu corpo tamb�m n�o pode, a essa mesma dist�ncia, projetar de si uma imagem ampliada para que os olhos o vejam maior. A limita��o n�o est� nos olhos, mas simultaneamente neles e no corpo que v�em. N�o est� no sujeito, mas simultaneamente nele e no objeto. E essa limita��o rec�proca, obviamente, n�o � limita��o: � a adequa��o da mensagem enviada � mensagem lida, � a proporcionalidade de emiss�o e recep��o, �, em suma, percep��o da realidade no seu tecido vivo de intera��es e perspectivas. Descartes, Hume e Kant poderiam ter feito essa experi�ncia, mas jamais consentiram em descer da dignidade de sujeitos � humilde condi��o de objetos. Tomaram-se como puros olhos, desprovidos de corpos, transformando o mundo num corpo sem olho, que eles viam mas n�o podia v�-los. Desprovido abstrativamente da condi��o de objeto que � concomitante e inerente � sua possibilidade de ser sujeito, o sujeito humano se exclu�a da realidade ao mesmo tempo que tentava alcan��-la � exatamente como quem tentasse provar o gosto da comida sem lev�-la � boca � e, naturalmente n�o o conseguindo, conclu�a pela exist�ncia de um abismo entre sujeito e objeto, entre conhecimento e realidade, sem perceber que o abismo s� existia porque ele pr�prio o havia cavado. Ren� Descartes desceu t�o fundo nesse estado de auto-hipnose, que, vendo da janela as pessoas que caminhavam pela rua, tinha dificuldade em admitir que, como ele, fossem sujeitos cognoscentes e n�o simples corpos em movimento. O sujeito s� pode fechar-se em si quando se esquece de sua condi��o de objeto, rebaixando a objetos os demais sujeitos. Tornado permanente, esse estado seria pura despersonaliza��o esquizofr�nica.
Foi mediante essas considera��es que pude livrar-me do subjetivismo moderno, sem ter de recorrer ao expediente �p�s-moderno� -- e ainda mais profundamente esquizofr�nico -- de negar, al�m do conhecimento, a exist�ncia do pr�prio conhecedor.
N�o creio que a dupla de sapientes drogados tenha tirado tanto proveito de minhas observa��es.
Posted by Olavo at janeiro 2, 2004 08:34 PM