Tudo o que escrevi, incluindo o mais abstrato, nasceu direto da experi�ncia -- do esfor�o de traduzir em s�mbolos e conceitos aquilo que a vida mesma parecia me dizer.
N�o me lembro de ter jamais reagido de maneira puramente intelectual a um est�mulo intelectual, muito menos de maneira verbal a um est�mulo verbal. Os produtos culturais, livros, id�ias, f�rmulas, n�o exercem sobre mim nenhum impacto antes de uma longa digest�o vivencial. Minha primeira leitura ou audi��o � inteiramente passiva e at� inocente. Entrego-me indefeso e sem rea��o ao que estou lendo, ouvindo, vendo. Deixo que tudo se acumule na mem�ria e que as coisas sem interesse acabem escoando sozinhas pelo ralo do esquecimento. As que sobram b�iam um tempo � superf�cie da consci�ncia, afundam, somem, voltam � tona, reaparecem em sonhos ou em clar�es fugazes, dias ou semanas depois. Nesse �nterim sofreram altera��es, adaptaram-se de algum modo ao meu metabolismo interior. Quando voltam, j� n�o s�o criaturas estranhas: s�o habitantes do meu cen�rio pessoal. Mesmo ent�o, n�o me ocupo delas deliberadamente. Deixo que repousem, como livros nas estantes, at� o momento em que pare�am ter alguma utilidade. Isto acontece quando algum fato, espoucando no mundo exterior ou brotando espontaneamente da mem�ria, se aproxima delas por semelhan�a, contraste ou alguma outra raz�o, exigindo ser expresso nos termos delas ou rejeitando-os violentamente. � s� quando solicitam repetidamente minha aten��o que come�o realmente a �pensar� nelas. �Pensar� n�o � bem o termo. Tento, primeiro, exprimi-las, dizer o que dizem. Se tudo vai bem, anoto-as, mas s� para fins de registro. Tornaram-se minhas, mas ainda n�o as assumo como cren�as pessoais: s�o s� impress�es, que o desenrolar da vida pode desmentir, alterar, ampliar, fundir. �s vezes, por�m, n�o chegam sequer a esse ponto. Na hora de exprimi-las, noto que n�o consigo diz�-las numa voz interior que eu reconhe�a como minha. Fazem soar uma nota falsa. Em algum ponto est�o raspando, for�ando passagem, estranguladas num conduto mental que as rejeita. Isto ainda n�o tem nada a ver com recusa intelectual, com nega��o consciente. � um simples sentimento de falta de naturalidade, um desconforto quase f�sico, como se eu tentasse engolir um bife de pl�stico. Elas apenas ainda n�o se harmonizaram o bastante com o meu modo de ser para que eu possa fazer delas objeto de discuss�o interior, exame refletido, concord�ncia ou discord�ncia. Ent�o decreto sumariamente que n�o as compreendi, e deposito-as num arquivo de encrencas, � espera de que o curso das coisas, as leituras ou a sorte as completem, as corrijam ou, de algum modo, as digam melhor. Quanto �s outras, as de express�o f�cil, � s� quando chego a perceber claramente suas implica��es na minha vida real que come�am a significar algo para mim. E � somente a� que come�a o trabalho verdadeiramente intelectual de examin�-las, critic�-las, conferi-las com as palavras dos mestres e o estado da ci�ncia, julg�-las e, por fim, explic�-las oralmente ou por escrito.
Quem v� a prontid�o das minhas respostas n�o imagina a lerdeza e a complica��o do meu processo mental. � que n�o me meto a discutir sen�o assuntos longamente metabolizados, tornados familiares n�o s� � minha mem�ria mas ao meu modo de ser. Ent�o as respostas v�m f�ceis, parecendo improvisos, lampejos gratuitos de um dom natural de compreender num relan�e. Mas n�o s�o nada disso: s�o frutos de um trabalhoso �saber de experi�ncia feito�, de uma complexa e lenta rumina��o bovina. N�o que esta me seja desagrad�vel e dolorosa. Ao contr�rio: ela sim me � natural, � meu aut�ntico ritmo interior, o modo de ser arraigado e renitente de um t�pico �secund�rio� da caracterologia de Le Senne.
Justamente por isso n�o me reconhe�o no �Pensador� de Rodin. Aquela concentra��o dolorida, aquela crispa��o n�o t�m nada a ver comigo. Meu processo � lento, profundo e confort�vel como o silencioso operar das fun��es org�nicas. Tem seus percal�os, suas perturba��es, como todos os processos naturais. Mas recusa-se obstinadamente a sair das linhas que o giro normal do cosmos lhe prescreveu. Nada me desagrada mais do que solicitarem minha aten��o para o mundo exterior quando estou imerso no meu secreto mar de s�mbolos. Se o tempo � a subst�ncia da vida, a aten��o � a seiva do esp�rito. Detesto que me suguem a seiva no instante em que a estou renovando por um mergulho no fundo da natureza das coisas tal como ela se manifesta na minha pr�pria natureza.
O �pensar�, para mim, � s� a �ltima e mais superficial etapa de um trabalho complicado que passa pelas sensa��es, pela mem�ria, pelos sentimentos, pela imagina��o. Pensar � f�cil, depois que voc� j� escavou o material do fundo da experi�ncia. O problema � que nossos intelectuais de hoje, mesmo quando pensam direito, pensam sem material. Sua experi�ncia � de superf�cie, de segunda m�o, � experi�ncia �cultural� colhida da conversa��o comum e dos �topoi�. No que escrevem h� id�ias, opini�es: nenhuma �impress�o aut�ntica�, como as chamava Saul Bellow.
Por isso tamb�m � raro que eu consiga escrever algo que j� n�o tenha falado. Com muitos escritores acontece o contr�rio: se falam, perdem a subst�ncia do que iam escrever, como numa ejacula��o precoce, num presente-suspresa prematuramente revelado. Precisam do segredo para criar. Mas minhas palavras s�o secretas por natureza. Brotam de uma obscura elabora��o org�nica e n�o poderiam sair da toca antes do tempo, mesmo que quisessem. A express�o escrita n�o me vem sem aquela prepara��o indispens�vel que � a tentativa oral, seja em conversas informais, seja em aula. � imposs�vel passar direto de uma viv�ncia quase corporal � express�o escrita. A fala em voz alta, com os gestos e entona��es que a sublinham, � um intermedi�rio indispens�vel. S� consigo escrever quando sei que gestos e entona��es a frase escrita deve imitar para que nelas transpare�a a pessoa inteira do seu autor. Pois s� a pessoa inteira pode dar testemunho da realidade que presenciou.
Registro estas coisas n�o porque elas sejam interessantes em si mesmas, mas porque podem ajudar alguns leitores, por semelhan�a ou contraste, a observar e compreender melhor o seu pr�prio processo interior. Cada um de n�s �, na orquestra das comunica��es humanas, um s� instrumento: um violoncelo, uma tuba, uma flauta, um tambor. Cada um tem suas exig�ncias pr�prias, que � preciso compreender para poder afin�-lo.
Da minha parte, estou persuadido de ser uma trompa de ca�a, que n�o clama do alto das amuradas, como os trompetes, nem geme ao p� dos ouvidos apaixonados, como os violinos, mas ressoa do fundo da floresta, indicando o caminho aos ca�adores ou alertando para a proximidade dos animais de presa.