Na caracterologia de Ren� Le Senne, sou um �sentimental-passional�, o que quer dizer a mistura exata de dois tipos opostos. O sentimental puro � um contemplativo rom�ntico que, desiludido com o mundo, prefere uma derrota digna ao envolvimento com a mis�ria ambiente. O passional � um ambicioso calculista, frio e paciente que nunca desiste de seus objetivos e em geral acaba por alcan��-los. A mistura significa que passo noventa por cento do tempo tentando me persuadir a aceitar uma derrota digna, mas no fundo n�o desisti de nada e no fim dou um jeito de conseguir o que queria. Da� a demora extraordin�ria de tudo na minha vida. Publiquei meu primeiro livro aos 48 anos. Comecei a lecionar numa universidade aos 50. Estreei como articulista no Globo aos 53, uma idade em que as tchurma s� pensa em aposentadoria. Com 56, tenho planos que requerem quatro d�cadas de trabalho.
Esse esquema de exist�ncia exige longas esperas, quase inconceb�veis para o imediatismo brasileiro. Conservo meus sonhos dentro de mim, em sil�ncio e banho-maria, longo tempo depois que o pessoal em volta acredita que os abandonei, que j� estou em outra. Aos dezenove anos, maravilhado com os ensaios de Otto Maria Carpeaux que descobri em velhas edi��es poeirentas escondidas no fundo de uma biblioteca p�blica, prometi a mim mesmo reedit�-los um dia com pref�cio, notas, as eleg�ncias todas. Comecei a realizar o plano aos 49 anos. O segundo volume est� atrasado. Quando ningu�m mais acreditar que ele vai sair, podem ter a certeza de que chegar� �s livrarias. That�s the story of my bloody life.
O destino parece que me adestrou para esse passo extravagante, de tartaruga ou brontossauro, imobilizando-me por sete anos numa cama, doente, desde o nascimento. Eu passava semanas, meses com febre, delirando. Era tanto tempo prostrado, arfando, que quando emergia das sombras e me sentava na beirada da cama, tinha de reaprender a andar. Achava duvidoso que minhas pernas obedecessem ao comando do c�rebro e ficava ali, ensaiando mentalmente, incr�dulo, at� que elas come�assem a se mover por si mesmas, restaurando minha confian�a na realidade do mundo f�sico.
Como nunca tinha tido sa�de para poder comparar com a doen�a, tudo me parecia inteiramente normal e eu nunca me impacientava com o estado de coisas. Ah, quanto vale a inoc�ncia! Um garoto saud�vel, que de repente se visse naquela situa��o, acrescentaria �s dores e incomodidades o padecimento intoler�vel da revolta. Eu, que n�o imaginava de maneira alguma que o mundo pudesse ser melhor, me adaptava ao pior com a naturalidade de uma lagartixa plantada no teto, inconsciente de que desafia a gravidade.
Levei tanta inje��o de benzetacil que, passado meio s�culo, minha bunda ainda d�i. Mas na �poca as picadas ardis�ssimas eram rotina banal. Eu presumia que todo mundo tomava toneladas de benzetacil, e me curvava, d�cil, ao que pensava ser o destino comum da esp�cie humana. Minha m�e conta que eu era de um bom-humor surpreendente. Quando n�o estava tossindo ou delirando, estava rindo.
Depois, quando repentinamente tudo passou e sa� para o mundo, ele era t�o feio, tedioso e miser�vel que a� sim comecei a me sentir doente. A reserva de sonhos e imagens acumulada ao longo de anos de torpor f�sico revelou, ent�o, sua utilidade. Com grande facilidade eu me isolava interiormente do cen�rio em torno, fugindo para um universo mais interessante, de minha pr�pria inven��o. Mas n�o era do tipo avoado. Desenvolvi uma habilidade incr�vel de fazer uma coisa pensando em outra, de manter uma liga��o m�nima com o ambiente para que ningu�m percebesse que eu n�o estava ali. Na escola, simulava aten��o com um cent�simo do c�rebro, enquanto os noventa e nove por cento restantes ficavam pensando em coisas lindas. A coisa mais linda da gal�xia era o rosto de minha prima Maria Lu�sa, para o qual fugia quando a chatice em torno se tornava insuport�vel. N�o era bem uma paix�o (Maria Lu�sa j� era mo�a quando eu usava fraldas): era uma contempla��o ext�tica sem desejo, uma del�cia sem fim que se bastava a si mesma e poderia prosseguir pela eternidade. Mas Maria Lu�za n�o era o meu �nico ref�gio. Cheguei a ter longas conversas com as pessoas mais chatas do universo, fingindo eficazmente um interesse que as lisonjeava, enquanto por dentro fantasiava as cria��es mais extraordin�rias, enredos inteiros repletos de aventuras, cavaleiros, princesas, castelos e drag�es.
Mais tarde arranjei os empregos mais aborrecidos e acabrunhantes que havia no mercado, e me desincumbia das tarefas com pura aten��o p�rif�rica, voltado interiormente para outra coisa.
[Continua]
Posted by Olavo at agosto 24, 2003 02:17 PM