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Os filodoxos perante a Hist�ria
(A filosofia e seu inverso - III)

Olavo de Carvalho
17 de abril de 2012

 

I. A filosofia e seu inverso
II. De S�crates a J�lio Lemos
III. Os filodoxos perante a Hist�ria
 

Entre os t�tulos que conferem a seus estudantes, as universidades brasileiras deveriam ter o de Ph. D. na ci�ncia de n�o entender nada.

Em nota publicada no site Ad Hominem, o sr. Joel Pinheiro, comentando o meu artigo “A filosofia e seu inverso II” e concordando comigo em que n�o existe filosofia sem implica��es morais e existenciais, dedica-se em seguida a refutar a id�ia, que ele atribui a mim, de que “o escolasticismo medieval j� era um per�odo de decad�ncia filos�fica se comparado � educa��o dada nas escolas de catedral, que consistia no exemplo e no carisma do mestre e era veiculada por meio de doutrinas n�o-escritas, passadas primariamente pela conviv�ncia e ao se assistir o mestre filosofando in loco”.[1]

Contra essa id�ia, ele alega que “esse tipo de educa��o moral e prepara��o espiritual, embora muito louv�vel, n�o � propriamente filosofia. Ela n�o pode questionar suas pr�prias bases, e nem debater a s�rio, pois sua finalidade de formar um certo tipo de homem virtuoso j� est� dada de antem�o; e portanto n�o resultar� em grandes fil�sofos”.

Prossegue ele: “A rela��o carism�tica, ou mesmo inici�tica,[2] entre mestre e pupilo n�o substitui o debate racional. � rid�culo e ing�nuo imaginar que ‘s�bios’ semi-an�nimos do s�culo XII que n�o deixaram obra escrita tivessem pensamento superior ao dos grandes escol�sticos. Os poucos registros escritos que sobraram deles mostram que, muito pelo contr�rio, seus pensamentos eram muito mais conservadores e convencionais, ainda que belos e nobres.”
 
I
 
Antes de averiguar se o sr. Pinheiro tem ou n�o raz�o nessas coisas,[3] � preciso notar que elas n�o t�m nada a ver com o que eu disse no artigo que ele imagina estar refutando. O que ali coloquei em discuss�o n�o foi a qualidade da “filosofia propriamente dita” (no sentido que o sr. Pinheiro d� a esta express�o) que se produziu nas escolas dos s�culos X a XII e da que se veio a produzir em seguida nas universidades. Foram, em vez disso, as concep��es educacionais do Cardeal Newman, o posto que nelas ele atribuia � filosofia e, por isso mesmo, a interpreta��o falsa que o sr. J�lio Lemos dera �s palavras do Cardeal. O sr. Lemos afirmava que o ensino da filosofia n�o deve ter objetivos morais, e, por in�pcia ou safadeza, citava em favor dessa opini�o um trecho em que Newman dizia precisamente o contr�rio.

Na segunda parte do artigo, analiso um pouco aquelas concep��es em si mesmas, assinalando que me pareciam falhar porque esperavam da institui��o universit�ria precisamente aquele resultado que o advento dela tinha tornado invi�vel: a forma��o gentil-homem, marcado pelas virtudes de “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente c�ndida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cort�s” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid, equitable, dispassionate mind, a noble and courteous bearing in the conduct of life). Esse resultado era precisamente o que haviam alcan�ado, com grande sucesso, as escolas catedrais e monacais dos s�culos X a XII, fazendo um contraste chocante com o que veio em seguida, a atmosfera de carreirismo, pedantismo, corrup��o e viol�ncia pol�tica que imperou nas universidades do s�culo XIII em diante. Na mesma medida em que os alunos das escolas catedrais e monacais chegaram, pelo brilho das suas virtudes, a ser conhecidos popularmente como “a inveja dos anjos”, o t�pico estudante universit�rio que lhe sucedeu tinha antes a fama de presun�oso, beberr�o e arruaceiro, sendo c�lebre a hostilidade dos habitantes das cidades � horda de estrangeiros arrogantes que ali desembarcavam imunizados contra as leis locais por toda sorte de privil�gios corporativos.

O Cardeal Newman, contra o sr. J�lio Lemos, tinha toda a raz�o em afirmar que o estudo da filosofia podia e devia contribuir para a forma��o moral dos estudantes, como o fizera nas escolas catedrais e monacais, mas tamb�m era verdade que a filosofia havia come�ado a fracassar nesse objetivo desde o momento mesmo em que se constitu�ra como profiss�o universit�ria e meio de ascens�o social. Se essa trajet�ria de decad�ncia humana veio acompanhada de prodigiosos aperfei�oamentos da t�cnica l�gico-dial�tica e da abertura de novos espa�os de livre discuss�o, propiciando assim o advento das grandes realiza��es intelectuais da escol�stica, isso mostra, com toda a evid�ncia, que esses avan�os, em vez de somar-se �s conquistas das escolas catedrais em mat�ria de educa��o moral, a elas se substitu�ram e acabaram por preencher todo o espa�o da atividade educacional superior. N�o foi a primeira nem a �ltima vez na Hist�ria que a degrada��o moral fez contraste com o progresso intelectual. O apogeu mesmo da filosofia na Gr�cia, com S�crates, Plat�o e Arist�teles, s� aconteceu quando j� iam longe os belos dias de P�ricles e a polis afundava na roubalheira e na viol�ncia. Na Viena dos anos 20-30 do s�culo XX, o florescimento espetacular da filosofia e das ci�ncias humanas coincidiu com a debilita��o do imp�rio rom�ntico dos Habsburgos, sacudido pela agita��o comunista e nazista e ro�do desde dentro pela corrup��o dos pol�ticos. Nenhum desses exemplos � motivo para negar que seria melhor a moralidade e a cultura do intelecto superior progredirem juntas, mas eles mostram que isso n�o acontece facilmente.

Em nenhum momento coloquei em discuss�o a filosofia escol�stica enquanto tal, que o sr. Pinheiro se empenha em defender contra quem n�o a atacou. Lembro-me de haver-me referido a ela como “monumentos de exposi��o escrita”, o que n�o � uma express�o nada pejorativa, e at� de haver assinalado que o Cardeal Newman, ao referir-se negativamente a fil�sofos do passado, n�o dissera “nem uma palavra sobre (muito menos contra) a filosofia crist� de Sto. Tom�s, de S. Boaventura, de Duns Scot”. De que raio de coisa, pois, est� falando o sr. Pinheiro? De algo que ele pensou ter lido, mas n�o leu. Inventou. Uns vinte anos o educador Cl�udio de Moura Castro j� advertia que no Brasil ningu�m l� o que os autores escrevem: l� o que imagina que eles pensaram, o que gostaria que eles tivessem pensado, seja para aplaudi-los, seja para depreci�-los. Tal como o c�lebre ingl�s da anedota, o leitor brasileiro, nesse �nterim, n�o mudou em nada.[4]

O que confundiu a cabe�a do sr. Pinheiro foi ter lido o meu artigo � luz da cren�a rotineira de que a grande filosofia do s�culo XIII foi um fruto natural da universidade. Vistas as coisas por esse �ngulo, da� decorrem duas conseq��ncias. Primeira: o sr. Pinheiro acaba entendendo a minha cr�tica �s universidades medievais como se implicasse uma deprecia��o da filosofia escol�stica, o que s� acontece na sua imagina��o. Segunda: dessa confus�o ele � levado, como em ricochete, a proclamar que as realiza��es not�veis da escol�stica s� n�o apareceram mais cedo porque nas escolas catedrais e monacais vigorava um modelo pronto de homem virtuoso, do qual n�o podiam resultar grandes fil�sofos. Foi s� quando aquele modelo se dissolveu na “livre discuss�o” que uma “filosofia propriamente dita” p�de florescer. Ele diz isso com toda a franqueza.

S�o erros, naturalmente, mas pelos quais sou muito grato, porque me permitem levar a discuss�o para al�m das mancadas do sr. J�lio Lemos que constitu�am o seu assunto inicial, e explicar-me sobre pontos incomparavelmente mais importantes.

Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escol�stico � constru�da com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tom�s, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apag�ssemos dos registros, o escolasticismo n�o teria passado de um epis�dio curioso na hist�ria da educa��o. E esses n�o s�o nomes s� de fil�sofos, mas de Doutores da Igreja: tr�s santos canonizados e um bem-aventurado. N�o existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. N�o vejo em que a dissolu��o do modelo pela “discuss�o racional” poderia ter contribu�do nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de intelig�ncia ao mesmo tempo filos�fica e m�stica que os caracteriza, aquele n�o cresce fora e independentemente da gra�a santificante, mas decorre dela como um dom especial do Esp�rito.

Tamb�m � ingenuidade supor que essas encarna��es m�ximas do g�nio escol�stico fossem produtos t�picos do novo meio acad�mico, no qual, bem ao contr�rio, n�o se ajustaram confortavelmente jamais. Sua intelig�ncia, sua r�gida idoneidade, sua compreens�o superior dos mist�rios da f� e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledic�ncias de seus colegas.

Alberto pulou como um cabrito para que a congrega��o engolisse, de m� vontade, suas teorias aristot�licas sobre o mundo f�sico. Boaventura sofreu ataques medonhos de Guilherme de Saint-Amour, um potentado universit�rio da �poca, no curso de uma campanha s�rdida movida pelo clero secular contra os Frades Mendicantes. Quem o defendeu foi Tom�s, que depois, tamb�m gra�as a intrigas de acad�micos, foi por seu turno denunciado como her�tico duas vezes (uma delas depois de morto). Duns Scot foi expulso da universidade e teve de fugir de cidade em cidade, amea�ado de morte, por defender doutrinas impopulares e tomar o partido do Papa na disputa com o poder real, hegem�nico entre os intelectuais na ocasi�o. S� cinco s�culos depois da sua morte ele foi retirado da lista dos indesej�veis, quando sua grande doutrina da Imaculada Concep��o de Maria foi finalmente aceita e se tornou dogma da Igreja. Sua beatifica��o s� veio ainda um s�culo depois disso, em 1993.

No m�nimo, no m�nimo, o sr. Pinheiro, ao enaltecer as vit�rias intelectuais da escol�stica acima das virtudes “meramente morais” do monaquismo que a antecedeu, deveria ter tido a prud�ncia de notar que os quatro autores maiores daquelas vit�rias, aqueles que acabo de mencionar, n�o podiam de maneira alguma ser universit�rios t�picos, pelo simples fato de que n�o eram membros do clero secular que dominava as universidades, e sim, bem ao contr�rio, vieram das ordens mon�sticas, nas quais se conservava ainda a disciplina moral das velhas escolas. O contraste entre as mentalidades desses dois grupos era t�o pronunciado, que os professores ofereceram uma resist�ncia feroz ao ingresso de monges no corpo docente das universidades (v. o epis�dio de Boaventura que mencionei acima). Bem, sem esse ingresso, a universidade medieval estaria desprovida de Alberto, Tom�s, Boaventura e Duns Scot – de tudo aquilo que para n�s, hoje, mais nitidamente caracteriza e mais merecidamente enobrece a imagem da filosofia escol�stica.

Sim, porca mis�ria, os quatro eram monges, intrusos na comunidade universit�ria! Como poderiam ser t�picos da corpora��o que rejeitava sua presen�a? Longe de ser produtos caracter�sticos da universidade da �poca, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e devotos, provindo de um meio social diferente, com h�bitos e valores contrastantes, se sobrepunham de tal modo �quele ambiente que s� a duras penas puderam ali sobreviver e, �s vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas realiza��es intelectuais deve-se menos � atmosfera universit�ria do que � for�a de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na f� e na integridade de prop�sitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus colegas, muitas vezes tecnicamente admir�vel, mas com tanta freq��ncia inspirada em motivos f�teis e na sedu��o das novidades her�ticas. Quando hoje enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na hist�ria da educa��o, � em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam retroativamente sobre ela o brilho da sua gl�ria, e n�o ao inverso. E essa gl�ria, sem d�vida, vem mais das ordens mon�sticas que os formaram, que do meio social onde ingressaram j� adultos, fortes o bastante para desafi�-lo e, a longo prazo, venc�-lo. Se, quando critico a universidade medieval, o sr. Pinheiro entende que estou falando mal da filosofia dos grandes escol�sticos, �, em parte, por seu desconhecimento da hist�ria, em parte por seguir o consagrado erro de �tica que coletiviza os m�ritos individuais e toma as exce��es como regras, como se as c�tedras universit�rias na �poca estivessem superlotadas de homens da estatura de Tom�s e Alberto, e n�o de t�cnicos, burocratas, agitadores, doutrin�rios de dedinho em riste, bed�is e uma infinidade de puxa-sacos.

N�o � culpa do sr. Pinheiro, � do v�cio generalizado de entender os grandes homens como “produtos do seu tempo”, quando justamente a grandeza deles consistiu em quebrar a redoma da ideologia de �poca e injetar no organismo da cultura, a um tempo e contra a resist�ncia do ambiente, a sabedoria esquecida de um passado remot�ssimo e as mais inimagin�veis perspectivas de futuro.

No caso da filosofia escol�stica, toda ela inspirada por aberturas para a eternidade que nenhum condicionamento hist�rico-social jamais poderia explicar, isso deveria ser percept�vel � primeira vista.

S� os med�ocres s�o filhos do seu tempo. Os s�bios, os her�is e os santos inspirados s�o pais dele; s�o canais por onde a luz da transcend�ncia  rompe as limita��es do tempo e abre possibilidades que a mente coletiva, por si, jamais poderia conceber. Se a opini�o corrente n�o enxerga isso, � porque o acesso de milh�es de incapazes �s altas esferas das profiss�es universit�rias obriga hoje a conceber a Hist�ria sub specie mediocritatis. Que Alberto e Tom�s revivificassem uma filosofia velha de mil e setecentos anos, fazendo-a enfim predominar sobre o r�gido agustinismo dominante, e que Duns Scot, contra vento e mar�, antecipasse em cinco s�culos um dogma da Igreja, s�o fatos que deveriam fazer os devotos do condicionamento hist�rico pelo menos co�ar as cabe�as, se alguma tivessem.

Mas a esse erro de perspectiva generalizado, que se disseminou ao  ponto de infectar at� mesmo os manuais escolares, o sr. Pinheiro acrescenta um outro que, se n�o � de sua pr�pria inven��o, tamb�m n�o � compartilhado pela massa ignara, mas t�o somente por uma parte da elite profissional de filodoxos: a id�ia de que s� existe filosofia na doutrina expl�cita, desenvolvida, organizada, publicada, racionalmente verbalizada e argumentada at� seus �ltimos detalhes.

A id�ia tem origem ilustre. Remonta a Georg W. F. Hegel, o que, convenhamos, imp�e algum respeito. Mas, como tantas outras opini�es que herdamos desse genial embrulh�o, � completamente falsa. Sem mencion�-la expressamente nem citar-lhe a fonte (que talvez nem mesmo conhe�a), escreve o sr. Pinheiro, como se impelido mediunicamente pelo esp�rito de Hegel:

O foco na rela��o mestre-disc�pulo e na sabedoria n�o-verbal (e que, por isso, n�o pode ser escrito sem ser, em alguma medida, tra�do)[5] nos aproxima novamente dos sonhos tradicionalistas e perenialistas, dos sistemas simb�licos esot�ricos e da imers�o em tradi��es orais.[6] Mas Filosofia � perseguir avidamente o real; e isso � a fuga consumada... � estranho que ele [Olavo de Carvalho] e tantos de seus seguidores continuem a ter esse tipo de fantasia como ideal de vida e de forma��o filos�fica.

Na galeria universal das condutas vexaminosas, poucas se comparam ao gosto que os brasileiros t�m de se fazer de superiores �quilo que n�o entendem. Nem todos os nossos compatriotas padecem desse v�cio, menos ainda s�o os que o trazem do ber�o, mas muitos o adquirem logo no come�o da vida adulta, sob o nome de “forma��o universit�ria”.

As palavras do sr. Pinheiro, que soam t�o �bvias e inquestion�veis aos seus pr�prios ouvidos, cont�m embutida uma multid�o de problemas cabeludos que ele nem mesmo percebe.
 
II
 
Desde logo, se excluirmos da �rea de estudos filos�ficos s�rios as tradi��es orais, teremos de dizer adeus n�o s� a boa parte do platonismo, mas a todo o ensino universit�rio que n�o esteja registrado em textos. A �nica raz�o de ser das universidades, ali�s, � justamente aquela parte do treinamento intelectual superior que n�o pode ser obtida por mera leitura, mas requer o contato direto entre mestre e disc�pulo. Se n�o fosse assim, as institui��es universit�rias poderiam, com vantagem, ser fechadas e substitu�das pela ind�stria editorial. Isso vale n�o s� para o aprendizado filos�fico, mas tamb�m para as artes, as t�cnicas e as ci�ncias. E, em todos esses casos, falar de contato direto � incluir a� uma parcela indispens�vel de comunica��o n�o verbal. Hoje em dia n�o h� pesquisa cient�fica que n�o exija o uso de instrumentos cujo manejo requer longa pr�tica junto a um t�cnico habilitado que pouco poderia transmitir a seus alunos s� pela instru��o verbal, sem o contato visual e manual com os equipamentos e sem socorrer-se de gestos, posturas, entona��es e olhares cuja tradu��o em palavras seria praticamente imposs�vel. Se n�o fosse assim, qualquer um poderia formar-se t�cnico em tomografia cumputadorizada, em microscopia estereosc�pica ou em galvanometria bal�stica pela simples leitura de manuais de instru��es. Poderia tamb�m tornar-se cantor de �pera, pintor ou dan�arino sem ter jamais presenciado um exemplo vivo de como se canta, se pinta ou se dan�a.

O peso desse fator � t�o crucial na investiga��o cient�fica, que negligenci�-lo pode destruir as mais belas esperan�as das ci�ncias de constituir-se em conhecimento objetivamente verific�vel. Uma verdade, em ci�ncia, n�o vale nada enquanto n�o se transforma numa cren�a coletiva subscrita pela comunidade dos cientistas profissionais, mas, assinala Theodore M. Porter, “a pr�tica cient�fica di�ria tem tanto a ver com a transmiss�o de habilidades e pr�ticas quanto com o estabelecimento de doutrinas te�ricas”. Nos anos 50 do s�culo passado, Michael Polanyi j� enfatizava que a pesquisa cient�fica envolve um tipo de “conhecimento t�cito” que n�o pode sequer ser formulado em regras. “Na pr�tica, prossegue Porter, isso significa que os livros e os artigos de revistas cient�ficas s�o ve�culos necessariamente inadequados para a comunica��o desse conhecimento, uma vez que aquilo que mais interessa n�o pode ser comunicado em palavras (grifo meu)”[7] Elimine-se a transmiss�o n�o-verbal, portanto, e toda via de acesso � investiga��o cient�fica estar� fechada de uma vez por todas.

Como se v�, a investida do sr. Pinheiro contra o n�o-verbal nasce da ojeriza irracional ante puros estere�tipos da cultura vulgar e n�o reflete nenhum exame s�rio da quest�o substantiva.

2. No caso espec�fico da filosofia, o papel do contato pessoal, dos c�rculos de amizade e das lealdades corporativas na forma��o das escolas e correntes filos�ficas, bem como na assimila��o e modelagem mental dos rec�m-chegados, � hoje um consenso amplamente admitido nesse important�ssimo ramo de estudos que � a sociologia da filosofia.[8] Important�ssimo n�o s� para os soci�logos como para os fil�sofos mesmos: o fil�sofo que ignore as bases sociais da sua exist�ncia profissional � como um boneco de ventr�loquo limitado � triste fun��o de fazer eco a influ�ncias que n�o sabe de onde vieram nem para onde levam. Ouso dizer que na classe acad�mica brasileira essa ignor�ncia � quase obrigat�ria.

Mais relevante ainda, sob esse aspecto, � o estudo de como se formam e se desfazem os prest�gos pessoais que marcam indelevelmente o perfil hist�rico da filosofia num dado per�odo. Como foi poss�vel, por exemplo, que certos fil�sofos (ou filodoxos) alcan�assem uma audi�ncia muito maior, nas universidades e fora delas, do que seus contempor�neos mais habilitados, produzindo linhas de influ�ncia dur�veis e verdadeiras tradi��es de pensamento, enquanto as obras de seus concorrentes ca�am no completo esquecimento? Seria uma ingenuidade imperdo�vel pensar que se trata a� de puros “fatores externos” alheios ao “valor intr�nseco” ou ao “conte�do filos�fico propriamente dito” das obras em quest�o. A popula��o estudantil s� tem acesso ao  “conte�do filos�fico propriamente dito” das obras que l�, n�o das que ignora – e a sele��o refor�a, automaticamente, as influ�ncias intelectuais dominantes, consagrando como decretos inquestion�veis da natureza das coisas os crit�rios de “valor intr�nseco” que a� prevalecem e, portanto a vis�o da hist�ria da filosofia, �s vezes barbaramente subjetiva e enviezada, que a� se toma como express�o direta e �bvia da verdade dos fatos.

Ora, quando procuramos investigar como se formam aqueles prest�gios, descobrimos que o mecanismo principal que os origina s�o os c�rculos de rela��es pessoais, onde os interesses corporativos e as lealdades politicamente interesseiras se mesclam indissoluvelmente ao culto devoto de personalidades carism�ticas envolvidas, no mais das vezes sem merecimentos objetivos que o justifiquem, numa aura de sapi�ncia m�stica que separa rigidamente os iniciados e os profanos.

Estudando a carreira de quatro dos mais prestigiosos pensadores do s�culo XX que ele denomina “os mestres malignos” – Wittgenstein, Luk�cs, Heidegger e Gentile –, e perguntando por que suas sombras encobriram os vultos de seus contempor�neos igualmente capazes, ou mais capazes, o fil�sofo australiano Harry Redner conclui:

    “Em �ltima an�lise, o que distinguia os mestres malignos de seus colegas n�o menos capacitados era uma personalidade carism�tica que acabou por fazer tantas gera��es de amigos, seguidores e estudantes prosternar-se diante deles com temor reverencial. Quase todos os que encontraram um mestre maligno sentiram estar em presen�a de um g�nio. Eles tinham essa capacidade de impressionar desde o in�cio de suas carreiras... � dif�cil pensar em qualquer grande fil�sofo do passado que tenha sido t�o revenciado no seu tempo como eles o foram.

    “Os seguidores que formavam em torno de cada um dos mestres malignos t�m alguns dos tra�os dos c�rculos mais estreitos e mais amplos de qualquer movimento carism�tico. Cada um deles esteve rodeado de c�rculos esot�ricos e exot�ricos de amigos e seguidores. Mais perto do mestre estava um grupo de disc�pulos ou companheiros pr�ximos; mais � dist�ncia havia os simpatizantes e companheiros-de-viagem; e em volta desse n�cleo estava a massa dos estudantes e leitores interessados.”[9]

    Na forma��o desse culto n�o faltava jamais a for�a do elemento m�gico, manipulado com requintes c�nicos de sedutores profissionais. Na ascens�o de Martin Heidegger, Karl L�with destaca o poder da sua “arte de encantamento” que “atra�a personalidades mais ou menos psicop�ticas”. Nas confer�ncias que proferia, “seu m�todo consistia em construir um edif�cio de id�ias que em seguida ele mesmo desmantelava, de novo e de novo, para desnortear os ouvintes fascinados, s� para no fim deix�-los completamente no ar”.[10] Qualquer semelhan�a com os procedimentos ret�ricos do esoterista arm�nio George Ivanovitch Gurdjieff n�o � mera coincid�ncia. Gurdjieff levava seus disc�pulos � mais completa impot�ncia intelectual mediante a pr�tica de expor complexos sistemas cosmol�gicos, acompanhados das demonstra��es matem�ticas mais sofisticadas e, quando a plat�ia se sentia  diante mais s�lida verdade cient�fica, desmantelar tudo com refuta��es arrasadoras. A �nica diferen�a que tais casos revelam entre essa pedagogia e a dos antigos monges � que estes usavam o poder do carisma para infundir virtudes, ao passo que as celebridades filos�ficas ou esot�ricas do s�culo XX o empregam como instrumento de domina��o ps�quica para instituir o culto de suas pr�prias pessoas.

Mas, evidentemente, a fun��o dos c�rculos de conviv�ncia direta n�o se resume em criar �dolos. Tem tamb�m uma utilidade menos personalizada, mais coletiva, que � a de impor a hegemonia de grupos de influ�ncia mediante a interprote��o mafiosa, a promo��o m�tua, o boicote dos advers�rios, o rateio dos melhores empregos entre os membros da gangue e, em resultado de tudo isso, o controle da opini�o p�blica, especialmente em ambientes limitados e abarc�veis como o s�o as universidades e as institui��es de cultura.

As filosofias dos “mestres malignos”, segundo Redner,

tendiam a gravitar em dire��o �s elites universit�rias porque, na luta pelo poder acad�mico, o status de elite interessa muito para atrair disc�pulos e lan�ar movimentos de influ�ncia. Dessas posi��es de alto status era f�cil supervisionar e dominar todos os postos nas universidades colocadas mais em baixo. Nas escolas de elite dos pa�ses dominantes, como a �cole Normale na Fran�a e a Ivy League na Am�rica, a filosofia podia ser cultivada como uma m�stica para os privilegiados e iniciados. S� aqueles que ingressavam nessas institui��es e passavam por elas como estudantes e professores tinham alguma chance de adquirir o conhecimento filos�fico ‘apropriado’ e de ser considerados qualificados nele. Por esses meios, umas poucas universidades foram capazes de monopolizar o ensino da filosofia e usar esse poder para colonizar o sistema acad�mico inteiro de determinados pa�ses. Uma t�pica rela��o colonialista centro-periferia se instaurou entre a elite e o resto; com isso as universidades de elite se habilitaram a perpetuar e consolidar sua exclusividade e seu status superior.

O “conte�do propriamente dito” das filosofias n�o era de maneira alguma indiferente ao papel que desempenhavam na estrutura do poder universit�rio:

As filosofias que serviam a essa fun��o de preservar o monop�lio profissional tinham de ser aquelas que ningu�m podia aprender por meio de livros somente. Tinham de ser aquelas que ningu�m fora do quadro institucional privilegiado podia adquirir, transmitir ou praticar. Elas podiam ser aprendidas somente se fossem adquiridas atrav�s dos canais corretos e recebidas das m�os apropriadas. Tais eram, de fato, as filosofias que os pr�prios mestres malignos e, por direito de sucess�o, seus disc�pulos, vieram a ministrar desde as escolas de elite onde haviam conquistado posi��es de poder. Ningu�m que n�o passasse pelas suas m�os podia praticar, ensinar ou mesmo discutir suas filosofias.”[11]

Um exemplo muit�ssimo bem documentado de como esse processo funciona num pa�s em particular � dado no livro de Herv� Hamon e Patrick Rotman, Les Intellocrates,[12] que estuda a composi��o social da elite que comanda a vida universit�ria e a imprensa cultural na Fran�a. Essa elite inteira mora em Paris, distribu�da nuns poucos quarteir�es vizinhos, e tem na conviv�ncia pessoal constante um dos seus mecanismos essenciais de autopreserva��o e crescimento.

O contato direto entre mestres, colaboradores e disc�pulos, como se v�, n�o perdeu nada da import�ncia essencial que tinha nos s�culos X a XII. Apenas mudou de fun��o: de gerador de santos transmutou-se em f�brica de carreiristas, agitadores, gerentes da ind�stria cultural, bajuladores e militantes. Talvez por isso mesmo tenha se tornado menos vis�vel a  observadores desatentos como os srs. Lemos e Pinheiro: � da natureza mesma dos c�rculos de poder o h�bito de manter a sua exist�ncia o mais discreta poss�vel, de modo a fazer com que os efeitos de suas a��es apare�am como resultados acidentais e an�nimos do processo hist�rico. 

N�o por coincid�ncia, uma das correntes filos�ficas que mais veio a se beneficiar da luta dos grupos de influ�ncia pelo dom�nio monopol�stico das universidades foi, precisamente, a “filosofia cient�fica”, ou neopositivista,  que o sr. J�lio Lemos coloca t�o celestialmente acima do mundo humano.

N�o h� nisso, ali�s, nada de estranho. O neopositivismo �, como o pr�prio nome diz, continua��o do positivismo, que nasceu n�o como pura filosofia teor�tica para uso dos anjos, mas como projeto de poder, um dos mais ambiciosos e totalit�rios de todos os tempos.

Quando, ap�s a II Guerra, o crescimento vertiginoso da economia ocidental acelerou o processo de transforma��o da filosofia em profiss�o universit�ria, eliminando da cena, pouco a pouco, os “intelectuais p�blicos” que antes davam o tom dos debates culturais,[13] nem todas as filosofias se adequavam igualmente ao novo ambiente em que as discuss�es filos�ficas tinham de imitar o mais fielmente poss�vel o mecanismo altamente regulamentado e burocratizado da intercomunica��o cient�fica.

Na Europa continental, onde a discuss�o filos�fica estava imantada de uma carga partid�ria e militante consagrada por d�cadas de confronto ideol�gico, a solu��o foi infundir no discurso tradicional da esquerda uns toques de linguagem cient�fica extra�dos principalmente da ling��stica e da matem�tica. Da� nasceram o estruturalismo e o desconstrucionismo que logo ocuparam o lugar do existencialismo e da fenomenologia nas aten��es do p�blico.

Nos pa�ses anglo-sax�nicos, ao contr�rio, onde a tend�ncia dominante era manter as universidades bem integradas no funcionamento geral da economia e imunizadas contra o risco das rotula��es ideol�gicas de direita e de esquerda, esse foi o grande momento da “filosofia cient�fica”. O processo foi bem estudado por C. Wright Mills,[14] mas, como a descri��o que oferece � muito detalhada e complexa, recorro, novamente, ao indispens�vel Redner, que assim a resume:

A antiga gera��o de fil�sofos, que era uma estranha mistura de advogados, bibliotec�rios e cientistas, foi desalojada pelos professores acad�micos que se organizaram numa corpora��o profissional com suas confer�ncias, revistas especializadas, escadas de promo��o e todos os outros adornos das disciplinas acad�micas. Nessas condi��es, os fil�sofos j� n�o podiam ser considerados livres-pensadores ou intelectuais, como Russel Jacoby argumenta num estudo mais recente. Para esses profissionais acad�micos, a filosofia melhor adaptada �s suas exig�ncias era uma que n�o dependesse de teorias, de id�ias ou de nenhum fundo de conhecimentos de ci�ncia ou das humanidades, e que n�o se engajasse em quest�es contenciosas da vida social e pol�tica. O que eles queriam era um modo de filosofar que pudesse ser praticado como uma habilidade t�cnica a ser aprendida pragmaticamente por meio de um treinamento no pr�prio ambiente profissional por meio da discuss�o, mais ou menos como o dos advogados.”[15]


Que � o “treinamento no pr�prio ambiente profissional” sen�o o t�o desprez�vel, t�o dispens�vel contato direto entre professor e aluno? Afinal, por que os advogados, entre os quais o sr. J�lio Lemos, n�o est�o habilitados para o exerc�cio profissional t�o logo recebem seu diplominha, mas t�m de fazer est�gios em escrit�rios de advocacia, ver com seus pr�prios olhos como funcionam os tribunais, cart�rios, registros de im�veis e delegacias de pol�cia, aprender por experi�ncia viva como se aborda um juiz de direito, como se obt�m os favores de um escriv�o, como se persuade um cliente a negociar com a parte contr�ria? E quem n�o sabe que, na pr�tica, o profissional investido dessas habilidades levar� infinita vantagem sobre o bacharel erudit�ssimo sem experi�ncia direta?

Se a “filosofia anal�tica” pode prescindir do contato direto entre mestre e disc�pulo, por que teria sido justamente essa a modalidade preferencial de ensino usada para impor o prest�gio dessa escola nas universidades americanas?

Tal como a ojeriza ao n�o-verbal, o desprezo ao ensino direto � uma afeta��o, uma pose, adotada como rea��o irracional de momento, n�o uma opini�o maduramente pensada com conhecimento do assunto.
 
III
 
� pura fantasia do sr. Pinheiro acreditar que atribu� �s escolas catedrais e monacais a posse de uma “filosofia” superior � escol�stica do s�culo XIII. Mas ele n�o erraria tanto se afirmasse que enxergo nas primeiras uma sabedoria crist� superior � da m�dia dos professores e estudantes universit�rios que vieram depois e que entendo a grande filosofia de Tom�s, Alberto, Boaventura e Scot menos como um “produto” do meio universit�rio e mais como o desenvolvimento natural e, por assim dizer, a exterioriza��o intelectual da cultura crist� herdada das escolas catedrais e monacais atrav�s da forma��o mon�stica recebida na juventude por esses quatro grandes mestres, que os imunizou contra a tagarelice pedante, n�o raro her�tica, do meio universit�rio.

Que o florescimento de uma grande filosofia n�o surja do nada, mas se produza como desenvolvimento intelectualmente diferenciado de uma vis�o do mundo j� anteriormente cristalizada em formas simb�licas na cultura vigente � algo que n�o deveria surpreender ningu�m. Quem ignora que a concep��o central da filosofia plat�nica, a das leis eternas que se sobrep�em � ordem aparente de uma “natureza” concebida � imagem e semelhan�a da ordem social vigente, j� estava prefigurada na poesia hom�rica e no teatro de �squilo e de S�focles?

Aprendi em Paul Friedl�nder, Julius Stenzel e Eric Voegelin que compreender uma filosofia n�o � s� apreender o sentido expl�cito das suas “teses”, nem discernir a estrutura do seu “sistema”, nem muito menos saber compar�-la com outros “sistemas” (embora tudo isso seja uma prepara��o escolar indispens�vel), mas desencavar, da sua formula��o em conceitos e doutrinas, as experi�ncias reais que as inspiraram, a subst�ncia humana e hist�rica que transmutaram em id�ias abstratas.

N�o se trata, evidentemente, de um preceito v�lido somente para os historiadores e fil�logos, mas de uma exig�ncia b�sica indispens�vel para quem quer que pretenda “discutir” essas filosofias com base no sentido real que tinham para os seus criadores e n�o apenas na sua formula��o expl�cita, estabilizada em textos, ainda que apreendida para al�m da sua superf�cie verbal e visualizada na unidade profunda da sua ordem interna.

Reporto-me aqui �s breves explica��es orais que dei sobre o “argumento de Sto. Anselmo”. Esse argumento � apresentado originariamente sob a forma de uma prece. Como ningu�m em seu ju�zo perfeito – muito menos um monge experiente
pode orar a um Deus duvidoso, est� claro que o argumento n�o � oferecido como uma resposta � d�vida quanto � exist�ncia ou inexist�ncia de Deus, mas como um aprofundamento intelectual da experi�ncia da prece. O esquema l�gico do argumento, no entanto, pode ser abstra�do – separado imaginariamente – do seu contexto origin�rio e ser discutido “em si mesmo”. Mas a� ele j� n�o ser� o argumento de Sto. Anselmo e sim uma c�pia esquem�tica esvaziada de seu conte�do experiencial, apta a ser reproduzida sob uma infinidade de formula��es verbais diferentes e at� mesmo codificada em s�mbolos matem�ticos para fins de an�lise computadorizada. E ent�o os debates quanto � sua validade ou invalidade l�gica poder�o prosseguir indefinidamente, animando os ser�es dos amadores de argumentos, enriquecendo o mercado editorial e alimentando carreiras universit�rias, sem que isso aumente em um grama sequer a compreens�o do pensamento de Sto. Anselmo ou, mais ainda, da t�cnica anselmiana da convers�o de uma pr�tica devocional em experi�ncia intelectual – t�cnica sem a qual nada se pode entender n�o apenas da filosofia do pr�prio Anselmo, mas de toda a tradi��o escol�stica que se lhe seguiu.

Esse exemplo ilustra a diferen�a entre o que eu e o sr. Lemos chamamos de “filosofia”. Ele d� esse nome a algo que, do meu ponto de vista, � apenas uma t�cnica de argumenta��o, bela e sofisticada o quanto seja. Prefiro reservar o termo para aquilo que este sempre designou: a elabora��o intelectual da experi�ncia com vistas a alcan�ar, na m�xima medida poss�vel num dado momento hist�rico, a unidade do conhecimento na unidade da consci�ncia e vice-versa. Nesse sentido, a unidade interna de uma filosofia, isto �, sua coer�ncia sist�mica e l�gica, vale menos por si mesma do que pela sua efici�ncia em dar conta, ainda que com imperfei��es l�gicas inevit�veis, da variedade e confus�o da experi�ncia humana – pessoal, cultural e hist�rica
que lhe serviu de ponto de partida. Por isso, chamamos de grandes fil�sofos, n�o aqueles que se esmeraram no esfor�o v�o de chegar � prova l�gica mais detalhada, e sim aqueles que conseguiram abranger, num olhar unificante, o horizonte de problemas mais amplo e complexo, criando assim um senso de orienta��o que permanece �til para muitas gera��es subseq�entes. Nesse sentido, a lista de fil�sofos verdadeiramente grandes � bem reduzida. Sem querer resolver agora a quest�o de quais merecem ou n�o entrar nessa classifica��o, parece-me evidente que ningu�m negar� um lugar nela aos nomes de Plat�o, Arist�teles, Sto. Tom�s e Leibniz. Enquanto fil�sofos bem posteriores j� viram suas contribui��es essenciais esgotadas ou impugnadas pelo avan�o do conhecimento (ningu�m mais pode ser cartesiano, baconiano ou hobbesiano de carteirinha sem entrar em conflito com o estado atual das ci�ncias), esses quatro, exclu�dos erros de detalhe que possam ter cometido num ou noutro ponto, continuam dando inspira��o a novas descobertas em todos os setores do conhecimento, e parece que n�o v�o parar de faz�-lo t�o cedo. N�o erraremos, portanto, se os tomarmos como modelos supremamente t�picos daquilo que se entende pelo termo “fil�sofo”.

O crit�rio a� adotado implica que nada se entende de uma filosofia sem uma vis�o efetiva das experi�ncias de fundo �s quais ela responde com um vigoroso esfor�o de express�o, ordena��o unifica��o e clarifica��o (a palavra “esclarecimento” tem outras conota��es que desejo evitar).

Se se tratasse de artistas, de poetas, predominaria em suas obras o esfor�o de express�o direta da experi�ncia. Os fil�sofos tomam o seu material de base num estado mais elaborado, que inclui os aspectos da experi�ncia j� trabalhados na cultura art�stica (assim como nas leis, institui��es, cren�as estabelecidas etc.). Com freq��ncia a arte se antecipa aos fil�sofos, fornecendo-lhes em forma compacta de s�mbolos concretos os esquemas estruturadores aos quais eles dar�o express�o intelectual mais diferenciada, mais clara, mais acess�vel � discrimina��o racional. � puro  estere�tipo ginasiano acreditar, como os srs. Lemos e Pinheiro, que a filosofia � “discuss�o racional”. A possibilidade da discuss�o racional s� aparece depois que o grande empreendimento de organiza��o unificante da experi�ncia chegou ao seu termo. Esse empreendimento pode incluir tamb�m, no caminho, uma parcela de discuss�o, que visa sobretudo a retificar ou completar certos aspectos das tentativas anteriores, mas � evidente que ela n�o constitui o ponto forte de nenhuma filosofia digna do nome. Como observava John Stuart Mill, a cr�tica, indispens�vel o quanto seja, � a faculdade mais baixa da intelig�ncia. Mesmo quando uma filosofia assuma a apar�ncia externa de uma discuss�o, como acontece nos di�logos plat�nicos, o objetivo ali n�o � “provar” coisa nenhuma, mas trazer � mostra, tornar vis�vel, algo que est� para muito al�m da discuss�o e da prova. Plat�o parte do material da experi�ncia tal como o encontra na cultura da �poca e, atrav�s de sucessivas marchas ascensionais e clarifica��es parciais, vai se erguendo – e, quando possivel, erguendo seus interlocutores – � antevis�o do mundo das formas, princ�pios e leis eternas que unificam e estruturam a experi�ncia. � esta escalada, e n�o a “discuss�o racional”, que d� a forma e o sentido do empreendimento plat�nico. Uma vez alcan�ado o cume, o conjunto da obra escrita que documenta a trajet�ria assume a forma aparente de um “sistema doutrinal” que ent�o pode alimentar “discuss�es racionais” pelos s�culos dos s�culos. As discuss�es podem ser mais �teis ou menos �teis, mas, na maior parte dos casos, nada de substancial acrescentam � filosofia origin�ria. Quando Alfred Whitehead observou que vinte e quatro s�culos de filosofia n�o passavam de uma cole��o de notas de rodap� a Plat�o e Arist�teles, ele quis dizer exatamente isso. Como aquelas  discuss�es s�o o ganha-p�o dos acad�micos, alguns deles s�o bobos – ou vaidosos
o bastante para achar que elas constituem “a” filosofia, mas isso � como se, num livro, as notas de rodap� tomassem o lugar do texto.

“A” filosofia n�o � discuss�o racional nem sistema doutrinal. � uma estrutura��o simb�lica intelectualmente diferenciada na qual o mundo da experi�ncia deve adquirir uma visibilidade, uma claridade, que n�o tinha nem no material bruto da experi�ncia nem nas suas elabora��es culturais pr�vias (sociais, pol�ticas, art�sticas, religiosas).[16]

Por isso mesmo � que a arte, com tanta freq��ncia, se antecipa �s filosofias. No caso dos escol�sticos, isso n�o poderia ser mais evidente. O exame deste ponto mostrar� quanto os srs. Lemos e Pinheiro, juntos ou separados, e todos os que pensam como eles, est�o longe de compreender a rela��o entre as grandes filosofias do s�culo XIII e o ensino pr�tico que as antecedeu nas escolas catedrais e monacais.

Vamos por partes.

Qual foi a realiza��o maior e mais caracter�stica dos fil�sofos escol�sticos? A cria��o das Sumas – um g�nero liter�rio totalmente novo, apropriado �s necessidades expositivas do pensamento crist�o, o qual, ap�s ter durante doze s�culos respondido �s d�vidas externas e internas com improvisa��es apolog�ticas e pol�micas soltas, espor�dicas e assistem�ticas, que se acumulavam numa massa confusa e inabarc�vel, se viu levado, pelas pr�prias exig�ncias do ensino e por outros fatores que n�o interessa analisar aqui (entre os quais o impacto da filosofia �rabe), a empreender um gigantesco esfor�o de organiza��o e unifica��o.[17] A f�rmula liter�ria encontrada foram as “sumas”.

A primeira grande Summa foi a de Alexandre de Hales, que come�ou a escrev�-la em 1231 mas a deixou incompleta. N�o sei a data certa da segunda, mas n�o saiu antes de 1245, quando Sto. Alberto come�a a ensinar na Universidade de Paris. Em 1260 come�am as aulas de S. Boaventura sobre os ensinamentos de Pedro Lombardo, das quais ele extrair� uma summa sob o t�tulo de Coment�rios ao Livro das Senten�as de Pedro Lombardo. Por fim, o g�nero chega � perfei��o com a Summa contra Gentiles de Sto. Tom�s de Aquino (1264), logo seguida da Suma Teol�gica, redigida entre 1265 e 1274.

A estrutura das Sumas n�o tem precedentes na hist�ria dos g�neros liter�rios. Elas comp�em-se de partes hierarquicamente organizadas, que v�o desde os princ�pios mais universais at� suas aplica��es aos entes particulares, como num longo racioc�nio dedutivo. Mas cada parte subdivide-se em “quest�es”. Colocada uma quest�o, o autor faz uma breve resenha das respostas anteriormente oferecidas por varios fil�sofos e te�logos, atualizando o status quaestionis. A� ele acrescenta � lista algumas outras respostas poss�veis e passa a examinar os pr�s e contras de cada uma, at� chegar a uma conclus�o. Por fim ele concebe e responde algumas obje��es, refor�ando a conclus�o, que em seguida servir� de premissa para a solu��o das quest�es subseq�entes.

Tecnicamente, essa estrutura constitui-se de um longo discurso anal�tico composto, por dentro, de v�rios discursos dial�ticos. Ela articula assim duas modalidades de discurso que Arist�teles havia distinguido cuidadosamente, uma empenhada em montar a demonstra��o e a prova cient�fica, outra em  buscar, entre as incertezas do debate e da experi�ncia, as premissas especiais sobre os diversos pontos em investiga��o. Num n�vel mais profundo, essa articula��o sintetiza duas atitudes mentais opostas: a dogm�tica, ou construtiva, e a zet�tica, ou investigativa. Nada de similar encontra-se em toda a literatura filos�fica anterior.

Mediante essa combina��o original, as Sumas sintetizam e unificam n�o s� o conjunto dos dados cient�ficos, teol�gicos e hist�ricos dispon�veis que interessavam � doutrina crist�, mas todas as t�cnicas que compunham o ensino universit�rio, as quais assim ficavam vacinadas contra a possibilidade de desenvolvimentos independentes an�rquicos e se integravam harmoniosamente na ordem total do conhecimento.

Mais ainda, as Sumas inauguraram a pr�tica da distribui��o racional dos textos em partes, se��es, cap�tulos, par�grafos e subpar�grafos, totalmente desconhecida na antig�idade, que viria a se universalizar no Ocidente ao ponto de tornar-se uma banalidade. Mas, se hoje essa divis�o corresponde mais a conven��es editoriais ou a arranjos pedag�gicos, nas Sumas ela tinha uma fun��o muito mais ambiciosa e org�nica. A organiza��o do texto correspondia rigidamente � estrutura das realidades ali analisadas, de modo que a obra como um todo funcionava como s�mbolo da hierarquia do mundo divino, c�smico e humano. As an�lises dial�ticas espalhavam-se em muitas dire��es, indo at� os �ltimos detalhes (princ�pio de manifestatio,  “exterioriza��o” ou “clarifica��o”) e voltavam a unificar-se nas conclus�es parciais que, por sua vez, articuladas umas �s outras pelo princ�pio da concordantia, ou reconcilia��o hierarquizada das m�ltiplas possibilidades contradit�rias, funcionavam como colunas que sustentavam a estrutura do todo.

A imagem um tanto idealizada que hoje temos da organiza��o hier�rquica dos estudos universit�rios medievais reflete menos a realidade do ensino di�rio do que a estrutura das Sumas, em que os v�rios aspectos desse ensino convergem para um ponto culminante que os transcende.

A pr�tica da disputatio, por exemplo, adestrava os alunos na arte da confronta��o dial�tica ordenada, enquanto o estudo comentado da sacra pagina lhes infundia os necess�rios conhecimentos das Escrituras, mas s� nas Sumas esses dois aspectos se articulavam na unidade de uma concep��o abrangente.

Se perguntarmos de onde Alexandre de Hales e seus sucessores obtiveram a inspira��o para esse empreendimento t�o original e poderoso, n�o encontramos nenhuma fonte escrita, ali�s nem oral. Plat�o desenvolvera a t�cnica dial�tica de S�crates, mas n�o se encontra nele a arte da constru��o dogm�tica. Arist�teles sobrep�e � dial�tica a t�cnica da prova cient�fica, l�gico-anal�tica, mas n�o deixa nenhum exemplo escrito de discurso l�gico-anal�tico com come�o, meio e fim: tudo o que nos sobrou dele foram rascunhos de aulas, constru�dos na base de investiga��es e confronta��es dial�ticas, num esp�rito ferozmente zet�tico. O que seria uma constru��o dogm�tica do aristotelismo, a estrutura formal e hierarquizada da “doutrina aristot�lica”, � um problema em que at� hoje os sucessores e comentaristas se engalfinham sem encontrar nenhuma solu��o satisfat�ria. Para fazer uma id�ia da dificuldade: ningu�m deu uma resposta cabal � quest�o de saber se a filosofia do Arist�teles maduro � um desenvolvimento coerente do seu platonismo de juventude ou uma nega��o completa dele e o in�cio de uma filosofia diferente.[18]

Na bibliografia filos�fica que vai da� at� Alexandre de Hales, nada se encontra que se pare�a nem de longe com a estrutura das Sumas. S� h� portanto duas alternativas: ou a cria��o ex nihilo ou a inspira��o recebida de alguma fonte n�o filos�fica, nem liter�ria. A primeira hip�tese sendo prerrogativa divina, temos de nos voltar para a experi�ncia vivida, para o impacto que os fil�sofos escol�sticos receberam da cultura da �poca, para averiguar se algo, nela, pode ter-lhe sugerido a id�ia de estruturar a cosmovis�o crist� numa s�ntese de todos os conhecimentos e de todas as t�cnicas intelectuais dispon�veis, em que as inumer�veis buscas zet�ticas lan�adas em dire��es diversas fossem convergindo pouco a pouco e se unificando numa grande constru��o dogm�tica de conjunto. O �nico precedente n�o vem da filosofia, nem de qualquer g�nero liter�rio: vem das artes e, especialmente da arquitetura.

Em 1948 o grande historiador da arte, Erwin Panofsky, lan�ou nas Confer�ncias Wimmer a tese depois publicada em 1951 sob o t�tulo de Gothic Architecture and Scholasticism,[19] segundo a qual o estilo g�tico na constru��o das grandes catedrais medievais refletia a influ�ncia do pensamento escol�stico, ilustrando, no verticalismo, no uso da luz e no tran�ado dos arcos que sustentavam as ab�badas, os mesmos princ�pios da manifestatio e da concordantia que estruturavam as Sumas.

A tese nunca foi totalmente aceita nem totalmente rejeitada. O primeiro problema com ela � que n�o havia o menor ind�cio de que os arquitetos an�nimos das catedrais houvessem jamais estudado a filosofia escol�stica. O segundo e principal problema � que o essencial do estilo g�tico j� estava delineado fazia tempo, na Abadia de Saint Denis, nas catedrais de Laon, Bourges e Chartres, quando Alexandre de Hales come�a a redigir o primeiro esbo�o de uma Summa em 1231. E o novo g�nero liter�rio s� se aproxima do seu m�ximo esplendor a partir de 1264, com a Summa contra Gentiles de Sto. Tom�s de Aquino, quando j� fazia vinte e tr�s anos que uma das obras-primas maiores do estilo g�tico, a Sainte Chapelle, estava � vista de todos bem no centro de Paris (s� no ano seguinte Tom�s come�a a redigir a Suma Teol�gica).[20] � poss�vel que o pensamento escol�stico tenha vindo a exercer alguma influ�ncia sobre a arquitetura das catedrais posteriores ao s�culo XIII, mas, at� o tempo de Sto. Tom�s, “influ�ncia”, se houve, foi no sentido inverso.

Em cima, � esquerda: Sainte Chapelle; � direita: catedral de Laon. No meio, � esquerda, catedral de Bourges; � direita, bas�lica de Saint Denis. Em baixo, � esquerda: Catedral de Chartres.

No entanto, se a teoria, como assinalaram seus cr�ticos, falhava em estabelecer qualquer nexo causal entre filosofia escol�stica e arquitetura g�tica, ela tinha uma parcela de verdade que ningu�m jamais negou: havia, com toda a evid�ncia, uma semelhan�a estrutural entre os catedrais g�ticas e as Sumas. Tanto estas quanto aquelas apareciam como grandes resumos simb�licos da concep��o crist� do mundo e a ordem da sua estrutura��o interna era praticamente a mesma: o arranjo das partes, as conex�es entre os m�nimos detalhes e a ordem do conjunto, a busca da luminosidade e da transpar�ncia, o movimento de subida e descida entre os v�rios n�veis ou planos de realidade, a sustenta��o m�tua entre os arcos opostos como teses dial�ticas articuladas na sua contradi��o – tudo exibia, em pedra como em palavras, os mesmos princ�pios da manifestatio e da concordantia. N�o � nenhum exagero dizer que as catedrais eram como que um esquema gr�fico da estrutura das Sumas. Ademais, tanto o novo estilo arquitet�nico quanto o novo g�nero liter�rio eram marcados pelo ineditismo dos seus princ�pios, moldados, pela primeira vez, segundo necessidades espec�ficas do ensinamento crist�o, irredut�veis a qualquer exemplo anterior. As semelhan�as eram tantas, e t�o fundamentais, que n�o cabia reduzi-las ao padr�o de uma mera “analogia”: era preciso falar, isto sim, de homologia, de identidade de estruturas.

A coisa tornou-se mais evidente ainda quando, em 1998, o catedr�tico de Budismo Tibetano do Departamento de Estudios Religiosos da Universidade da Calif�rnia, Jos� Ign�cio Cabez�n, descobriu que homologia id�ntica existia entre os tratados da escol�stica budista e os templos religiosos da Idade M�dia tibetana.[21] Nos dois casos, assinalava Cabez�n, era t�o imposs�vel estabelecer qualquer nexo causal direto quanto negar a exist�ncia de uma similaridade estrutural cujo detalhamento ia muito al�m da possibilidade da mera coincid�ncia.

Sem entrar agora nos detalhes da controv�rsia, algumas observa��es parecem-me evidentes e praticamente inquestion�veis:

1. Se os arquitetos n�o estudavam filosofia escol�stica e as catedrais g�ticas antecederam as grandes Sumas, n�o se pode falar de influ�ncia destas sobre aquelas, mas precisamente do oposto.

2. A palavra “influ�ncia” descreveria adequadamente a transmuta��o de uma doutrina filos�fica em obra de arte, mas n�o o inverso. Aqui s� cabe falar, mais vagamente, de “inspira��o”.

3. Os arquitetos an�nimos das catedrais n�o eram alunos das universidades. Aprendiam a t�cnica da constru��o nas corpora��es do of�cio e a doutrina crist� nas escolas monacais e catedrais, mais provavelmente nas mesmas catedrais em que trabalhavam ou viriam a trabalhar como construtores. Suas concep��es arquitet�nicas n�o refletiam a doutrina escol�stica, mas a cultura crist� das escolas monacais e catedrais, de cuja riqueza e for�a davam testemunho em pedra.

4. Pela novidade do estilo; pelo contraste entre sua luminosidade e a escurid�o dos templos anteriores; pela beleza deslumbrante dos vitrais e a multid�o de detalhes esculturais e pict�ricos maravilhosamente integrados no conjunto; por parecerem desafiar o senso comum ao manter-se de p� sobre estruturas aparentemente fr�geis, as catedrais atra�am visitantes e peregrinos de toda parte porque constituiam, literalmente, o mais contundente impacto visual a que a popula��o europ�ia tinha sido submetida ao longo de mais de um mil�nio.

5. � praticamente imposs�vel que algu�m em Paris, na �poca de Alberto e Tom�s, n�o conhecesse a Sainte Chapelle, ou, conhecendo-a, ficasse imune ao impacto do edif�cio sobre os seus sentimentos, a sua imagina��o e a sua devo��o religiosa.

6. � inveross�mil que pensadores altamente qualificados e devotos, imbu�dos da ambi��o de dar maior visibilidade intelectual aos s�mbolos da f�, permanecessem imunes ao impacto imaginativo daqueles tratados de cosmologia crist� em pedra e n�o obtivessem dele alguma inspira��o e  motiva��o para tentar empreendimento semelhante no n�vel mais diferenciado da conceptualiza��o te�rica e da exposi��o doutrinal, passando da linguagem muda dos edif�cios � plena explicita��o verbal das Sumas.

Costumo usar o termo geol�gico extrus�o, e o verbo correspondente extrudar, para descrever o processo de extra��o e exposi��o da subst�ncia cognitiva da experi�ncia. Como aprendemos em Arist�teles, e at� hoje ningu�m desmentiu, que a intelig�ncia abstrata n�o opera diretamente com os dados dos sentidos, mas com as imagens gravadas e repetidas na mem�ria, � normal que esse processo, no n�vel da hist�ria cultural, se d� em duas etapas: primeiro a experi�ncia � condensada nas formas simb�licas compactas da arte, do mito e do ritual, e s� depois verbalizada, quando poss�vel, como conceito e teoria.[22] Dito de outro modo: a cria��o art�stica forma e delimita o terreno imaginativo em cima do qual se erguer�o as constru��es teorizantes da ci�ncia e da filosofia. Os exemplos que ilustram essa constante s�o inumer�veis, desde as trag�dias de �squilo e S�focles que deram a S�crates e Plat�o o modelo das leis eternas, at� a perspectiva de Giotto sem a qual a nova cosmologia de Galileu e Kepler seria inconceb�vel, a Divina Com�dia de Dante que inaugura a possibilidade do intelectual moderno como juiz soberano da sociedade, a Com�dia Humana de Balzac de onde Karl Marx obteve sua primeira vis�o da estrutura do capitalismo, e assim por diante. N�o h� nada, pois de estranho, em concluir que o impacto visual e humano das catedrais g�ticas deu aos fil�sofos escol�sticos a inspira��o inicial para a extrus�o do conte�do intelectual impl�cito no imagin�rio crist�o, ao qual elas davam, pela primeira vez, uma visibilidade t�o completa e integrada.[23]

Se a imagina��o arquitet�nica e pict�rica dos construtores gravava em pedra e vidro a riqueza da experi�ncia interior obtida nas escolas monacais e catedrais, � preciso ressaltar que isso s� aconteceu numa fase em que essas escolas j� iam cedendo o passo, como modelos de educa��o, ao sucesso das universidades nascentes, onde a sofistica��o das t�cnicas intelectuais se desenvolvia pari passu com a degrada��o dos costumes e a perda do fervor religioso. Decorridos cento e poucos anos da remodela��o g�tica de Saint Denis, a constru��o do edif�cio intelectual das Sumas se d� numa etapa ainda mais avan�ada da dissolu��o da s�ntese cultural crist�, prenunciando, j� para os dois s�culos seguintes, a difus�o da moda nominalista, o florescimento de mil e uma correntes her�ticas e a degrada��o da pr�pria escol�stica num formalismo doutrin�rio sufocante. Nada disso � estranho. Enquanto a riqueza da vida interior � uma realidade de todos os dias, o impulso de cristaliz�-la em pedra n�o � uma necessidade premente. As catedrais g�ticas s�o, por assim dizer, o canto de cisne de uma modalidade de educa��o que j� tinha os seus dias contados. No s�culo XII, � medida que se erguem edif�cios cada vez mais impressionantes, a inveja dos anjos desce dos c�us e se torna admira��o das multid�es.

Mais compreens�vel ainda � que a s�ntese intelectual das Sumas s� viesse � luz numa �poca em que as possibilidades civilizacionais que elas condensavam j� iam chegando ao fim. Do mesmo modo que as catedrais fixam em pedra o �ltimo apelo da educa��o monacal e catedral, as Sumas s�o o cume, e por isso mesmo o cap�tulo final, da grande civiliza��o crist� na Europa, do mesmo modo que as filosofias de Plat�o e Arist�teles s�o a express�o m�xima e �ltima da polis em agonia. Como observou Hegel, a ave de Minerva s� levanta v�o ao entardecer.

Nesse sentido, as grandes cria��es novas que, para as �pocas futuras, vir�o a representar a for�a espiritual das civiliza��es extintas documentam a depaupera��o da vida interior e sua substitui��o pelo testemunho exteriorizado e vis�vel, legado �s gera��es vindouras na vaga esperan�a de que um dia a f�rmula gravada em pedra ou em palavras possa ser novamente descompactada e restaurada como experi�ncia vivida, se n�o em escala civilizacional, ao menos nas almas dos indiv�duos interessados e capacitados. A passagem do impl�cito ao expl�cito, do compacto ao diferenciado, marca ao mesmo tempo a gl�ria e o fim das civiliza��es. Apogeu e decad�ncia n�o s�o termos excludentes, mas polos dial�ticos de uma tens�o a que n�o faltam, no seu desenvolvimento interno, as ambig�idades e as invers�es.


Notas:

[1] Este par�grafo j� revela o estado de not�vel confus�o mental a que a leitura mal feita dos meus artigos atirou o pobre Sr. Pinheiro. Por eu ter dito, em outro lugar, que o aprendizado direto, ver e ouvir um fil�sofo filosofando, � condi��o indispens�vel do aprendizado da filosofia, ele imaginou, sabe-se l� por que, que ao louvar as escolas catedrais eu o estaria fazendo justamente por acreditar que nelas predominaria essa modalidade de ensino, abandonada ou negligenciada depois. O sr. Pinheiro atribui a mim uma bobagem de sua pr�pria inven��o. O ensino direto da filosofia jamais cessou, nas universidades medievais ou depois; ele � mesmo a �nica raz�o de ser das universidades. O que distingue as escolas catedrais e monacais dos s�culos X-XII n�o � isso: � a presen�a do mestre como encarna��o viva das virtudes crist�s, n�o como explicador de filosofia. N�o se tratava de formar fil�sofos, mas gentis-homens. Este foi o objetivo negligenciado nas universidades do s�culo XIII, e por isso julguei que o Cardeal Newman errara ao tom�-las como modelo, precisamente, de um tipo de ensino que elas haviam abandonado.

[2] O desejo de me associar � escola perenialista, ou tradicionalista, com toda a sua parafern�lia de rituais inici�ticos, � mesmo uma obsess�o dos srs. Lemos e Pinheiro, que, a cada linha de minha autoria que l�em, saem logo procurando um perenialista embaixo da cama. Pergunto eu o que o carisma das virtudes crist�s, exemplificado pelos professores das escolas catedrais e monacais, poderia ter de inici�tico no sentido de Gu�non, que reserva essa palavra para designar as pr�ticas de organiza��es esot�ricas em sentido estrito, distinguindo-as rigorosamente de tudo quanto seja “religioso”. Pode ter havido algum elemento inici�tico nas corpora��es de of�cios, mas n�o nas escolas catedrais e monacais. Lemos e Pinheiro empregam esse termo e o de “esoterismo” n�o porque estes sejam adequados ao t�pico em discuss�o, mas porque sabem que eles t�m conota��es negativas para o p�blico a que se dirigem e imaginam que, usando-os, podem criar uma aura de m� impress�o em torno da minha pessoa. O sr. Lemos, num descarada ostenta��o de superioridade ol�mpica, montada, por involunt�ria ironia, com um erro de gram�tica que faz contraste grotesco com o pedantismo de um termo latino desnecess�rio, declara: “Faz muito sentido que gente vinda do jornalismo e do esoterismo, pace Olavo, confundam as bolas.” Podem dizer at� que venho do com�rcio de amendoins em pra�a p�blica; n�o ligo; mas o sr. Lemos vem da advocacia, aquela profiss�o j� amaldi�oada em Lucas 11:52, cujos praticantes, segundo uma piada c�lebre, s� se distinguem dos urubus porque ganham certificados de milhagem.

[3] V., adiante, nota 22.

[4] Para os que n�o a conhecem, j� que as novas gera��es perderam o melhor do passado, a� vai a piada. Dois ingleses, Paul e Peter, estavam tomando ch� e conversando numa tarde apraz�vel, quando Peter observou:
            -- Sabe, Paul, eu sonhei com voc� ontem.
            -- N�o diga! Como foi o sonho?
            -- Sonhei que voc� morreu, foi enterrado, no seu t�mulo nasceu uma plantinha, veio uma vaca, comeu a plantinha, fez coc�, e eu, ao ver o coc�, exclamei: “Oh, Paul, como voc� est� mudado!”
            Paul, imperturb�vel, respondeu:
            -- Que interessante! Sabe que eu tamb�m sonhei com voc�?
            -- N�o diga! Como foi?
            -- Sonhei que voc� morreu, foi enterrado, no seu t�mulo nasceu uma plantinha, veio uma vaca, comeu a plantinha, fez coc�, e eu, ao ver o coc�, exclamei: “Oh, Peter, voc� n�o mudou em nada.”

[5] Perdoem a ruindade gramatical. Nem o sr. Pinheiro nem o sr. Lemos s�o muito bons de concord�ncia.

[6] � objetivamente estranho, mas tamb�m significativo da mentalidade com que estamos lidando, que, ap�s quase um s�culo de estudos cient�ficos sobre o substrato n�o-verbal da comunica��o verbal, que teve entre seus pioneiros o psicoterapeuta Milton Erickson (1901-1980), a express�o n�o evoque, na cabe�a do sr. Pinheiro, sen�o os “sonhos tradicionalistas e perenialistas”, como se fossem a �nica refer�ncia hist�rica a respeito. A obsess�o de fazer de mim um perenialista, um gu�noniano, essa sim � que � um sonho: o sonho de fazer de mim uma figura suspeita, de modo que as pessoas n�o ou�am o que digo e s� me enxerguem atrav�s de uma rede de preven��es bobocas tecidas em torno da minha pessoa pelos srs. Lemos e Pinheiros.

[7] Theodore M. Porter, Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1995, pp, 13-13.

[8] Sobre as bases dessa disciplina, V. Randall Collins, The Sociology of Philosophies: A Global Theory of Intellectual Change, Harvard University Press, 1998.

[9] Harry Redner, The Malign Masters: Gentile, Heidegger, Luk�cs, Wittgenstein. Philosophy and Politics in the Twentieth Century, New York, St. Martin’s, 1997, pp. 178-9.

[10] Karl L�with, My Life in Germany before and after 1933, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1994, pp. 28-9.

[11] Redner, op. cit., p. 189.

[12] Herv� Hamon et Patrick Rotman, Les Intellocrates. Exp�dition em Haute Intelligentsia, Paris, Ramsay, 1981.

[13] Processo eficazmente descrito por Russel Jacoby em The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe, New York, Basic Books, 2000.

[14] C. Wright Mills, Sociology and Pragmatism. The Higher Learning in America, ed. Irving Louis Horowitz, New York, Galaxy Books, 1966.

[15] Redner, op. cit., p. 190.

[16] Isso n�o significa que a filosofia seja uma “cosmovis�o”. Ao contr�rio: a cosmovis�o j� est� dada, de algum modo, no material cultural recebido pelo fil�sofo. A filosofia � um elaborac�o clarificante e corretiva da cosmovis�o. Posso dar explica��es mais detalhadas sobre isso num outro contexto, mas aqui isso nos levaria para longe do assunto.

[17] V. Alois Dempf, Die Hauptformen mittelalterlicher Weltanschauung, M�nchen-Berlin, Oldenburg, 1925.

[18] A quest�o surgiu em 1923 com o livro de Werner Jaeger, Aristoteles: Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung (tradu��o inglesa de Richard Robinson, Aristotle: Fundamentals of the History of His Development, 1934).

[19] Trad. francesa, Architecture Gothique et Pens�e Scholastique, Paris, �ditions de Minuit, 1981.

[20] Eis aqui a ordem cronol�gica dos fatos:
1140 Reconstru��o do coro da Abadia de Saint Denis em estilo g�tico.
1160 Catedral g�tica de Laon.
1195 Come�a a constru��o da catedral g�tica de Bourges.
1220 Fica pronta a estrutura principal da catedral g�tica de Chartres.
1231 Alexandre de Hales come�a a escrever a Summa Universae Theologiae, deixada incompleta.
1241 Planos da Sainte-Chapelle, que come�a a ser constru�da em 1246 e, rapidamente completada, � consagrada em 26 de abril de 1248.
1245 Sto. Alberto chega a Paris.
1260 Boaventura come�a a lecionar sobre o Livro das Senten�as de Pedro Lombardo, de onde sair� seu Coment�rio.
1264 Summa contra Gentiles, de Sto. Tom�s de Aquino.
1265-1274 Tom�s redige a Suma Teol�gica.
1266-1308 Vida de John Duns Scot.

[21] V. Jos� Ignacio Cabez�n, Scholasticism: Cross-Cultural and Comparative Perspectives, Herndon, VA, State University of New York Press, 1998.

[22] V. maiores explica��es no meu livro Arist�teles em Nova Perspectiva. Introdu��o � Teoria dos Quatro Discursos, Rio, Topbooks, 1996 (2�. ed., S�o Paulo, � Realiza��es, 2006).

[23] Isso j� basta para mostrar quanto o sr. Pinheiro, ao contrapor o n�o-verbal ao verbal como se fossem incompat�veis um com o outro, e ao qualificar o primeiro de “fuga consumada”, s� exemplifica o seu despreparo de amador para lidar com essas quest�es. Para ele, a busca da “realidade” come�a da abstra��o verbal para cima, como se a realidade existisse s� nos conceitos e discuss�es filos�ficas, sem o suporte do mundo f�sico e cultural em torno e sem a imers�o do fil�sofo no tecido vivo da sociedade humana. O que ele chama de “realidade” � o que eu chamo de “fuga” e vice-versa.