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De S�crates a J�lio Lemos
(A filosofia e seu inverso II)

Olavo de Carvalho
7 de abril de 2012

 

I. A filosofia e seu inverso
II. De S�crates a J�lio Lemos
III. Os filodoxos perante a Hist�ria
 
 
O sr. J�lio Lemos, que n�o perde a oportunidade de puxar uma discuss�o, chama S�crates de “chato-mor” por ter praticado o mesmo costume dois mil e quatrocentos anos atr�s.[1] Mas a� cessa toda a semelhan�a. Entre outras inumer�veis diferen�as, � not�rio que S�crates chamava seus advers�rios pelos nomes, enquanto o sr. Lemos, ao criticar os v�cios da filosofia circundante, deixa sempre ao leitor a incumb�ncia de descobrir quem seriam os viciados, se � que eles existem fora da cabe�a do articulista. T�o avesso � ele � men��o de pessoas de carne e osso, que seus artigos de cr�tica deveriam vir precedidos do disclaimer: “Qualquer semelhan�a com a realidade � mera coincid�ncia.” Os di�logos socr�ticos, ao contr�rio, sempre se travam com personagens reais da vida ateniense e tratam de problemas cuja presen�a na sociedade � patente aos olhos de todos. S�crates combateu bravamente a corrup��o da polis, ao passo que o sr. Lemos se mant�m a uma prudente dist�ncia deste baixo mundo, consagrando seus talentos a especula��es l�gico-matem�ticas – ou a discuss�es com fil�sofos hipot�ticos
que n�o ofendem as autoridades constitu�das. Talvez ele se envergonhe um pouco disso no �ntimo, mas em suas declara��es p�blicas o que transparece �, ao contr�rio, aquela ostenta��o de superioridade distante, quase blas�e, do profissional tarimbado que consente, por mera caridade, em dirigir umas palavrinhas ao amador intrometido.


Todos sabemos em que consiste essa superioridade: o sr. Lemos desempenha, no teatro imagin�rio que ele desejaria lotar de uma plat�ia real, o papel do argumentador rigoroso, cient�fico, universit�rio, em contraste com os palpiteiros que “fazem filosofia de modo tosco, deixando de lado a especula��o para inculcar nos ouvintes e leitores crit�rios morais, condenar comportamentos ou provocar a indigna��o”. Entre os culpados de semelhante descalabro, ele inclui S�crates, Plat�o e Arist�teles, sempre ocupados em indicar aos incautos o caminho do bem, da sabedoria e da felicidade – tarefa que, segundo ele, cabe � “�tica pr�tica” ou �s t�cnicas de “auto-ajuda”, pouco ou nada tendo a ver com a aut�ntica e s�ria filosofia, representada eminentemente, ao que tudo indica, pelo pr�prio sr. J�lio Lemos.

Em apoio das suas singelas pretens�es, ele apela � autoridade do Bem-Aventurado Cardeal John Henry Newman, o qual, proclamando no Cap�tulo 5 de Idea of a University[2] que “o conhecimento � uma coisa, a virtude � outra” e que “a filosofia, por mais iluminada, n�o fornece nenhum comando sobre as paix�es, nem motiva��es influentes, nem princ�pios vivificantes”, cita o exemplo de um personagem do romance Rasselas, Prince of Abissinia, de Samuel Johnson – um fil�sofo que, diante da filha morta, confessava n�o receber nenhum consolo da �tica de autocontrole que havia ensinado a seus disc�pulos (o sr. Lemos, com o rigor que lhe � peculiar, conjetura que o homem � um pitag�rico, quando com toda a evid�ncia se trata de um est�ico). O epis�dio antecipa o protesto lancinante de Franz Rosenzweig, que, espremido numa trincheira da I Guerra, entre pilhas de cad�veres, notava a perfeita impot�ncia da filosofia acad�mica ante a carnificina mundializada.

Seria �timo se o sr. Lemos, antes de usar um texto cl�ssico como porrete, aprendesse a l�-lo. O trecho citado n�o contrasta a filosofia moralizante com a “filosofia cient�fica” que o sr. Lemos tanto aprecia, mas com a f� crist�. Quando Newman sugere que o ensino da filosofia, em vez de fazer falsas promessas de salva��o, deveria tratar mais modestamente de desenvolver no estudante as virtudes intelectuais, o sr. Lemos, tentando fazer do cardeal um apologista da escola anal�tica avant-la-lettre, insinua que essas virtudes consistem t�o-somente em “precis�o conceitual, clareza e rigor l�gico”, isto �, as qualidades padronizadas da comunica��o cient�fica no sentido atual. Qualquer tentativa de ir um pouco acima disso �, segundo ele, pura supersti��o. Newman, no entanto deixa claro que n�o � nada disso. O que o ensino da filosofia pode e deve desenvolver, segundo ele, � “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente c�ndida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cort�s” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid, equitable, dispassionate mind, a noble and courteous bearing in the conduct of life). Quem, lendo essas palavras, pode falhar em compreender que as virtudes intelectuais a que o cardeal alude s�o, tamb�m e intrinsecamente, virtudes morais, precisamente aquelas que, segundo o sr. Lemos, a filosofia n�o pode ensinar de maneira alguma? Pois Newman, explicitamente, faz delas o objetivo mesmo do ensino da filosofia numa universidade (they are the objects of a University).

S� o que Newman acentua � que essas virtudes s�o inferiores �s da santidade crist�. � o caso de exclamar, como o cidad�o lisboeta a quem um turista perguntava se sabia a localiza��o do Mosteiro dos Jer�nimos: “� raios, e quem � que n�o sabe?” O cardeal esclarece, com toda a raz�o, que a educa��o filos�fica “produz n�o o crist�o, n�o o cat�lico, mas o gentil-homem”. Ele est� longe de desprezar as virtudes do gentil-homem; ao contr�rio, professa advog�-las e insistir na sua import�ncia. Adverte, apenas, que elas n�o s�o garantia de santidade, nem mesmo de conscienciosidade; que podem mesmo estimular o pedantismo, a arrog�ncia e o esp�rito de controv�rsia. Tudo isso � de uma obviedade exemplar, mas s� o sr. Lemos pode enxergar a� um apelo a que a filosofia se abstenha de todo ideal moral e se concentre na pura busca da exatid�o l�gica, tomada como um fim em si. Quando Newman fala de “estudo desinteressado”, ele est� se referindo, ostensivamente, apenas � cl�ssica distin��o entre artes liberais e servis. Estas �ltimas visam a finalidades utilit�rias, aquelas ao aperfei�oamento da mente humana. Ao descrever esse aperfei�amento como uma s�ntese de valores cognitivos, �ticos, est�ticos e sociais, condensando-a no s�mbolo do “gentil-homem”, ele exclui antecipadamente, e da maneira mais categ�rica poss�vel, a interpreta��o que o sr. Lemos quer impingir �s suas palavras. O “estudo desinteressado” desinteressa-se de suas aplica��es t�cnicas, industriais e econ�micas, n�o de seus efeitos psicol�gicos e morais na mente do estudante, que s�o, segundo Newman, sua pr�pria raz�o de ser.

Tamb�m n�o escapar� ao leitor atento o detalhe altamente significativo de que, como exemplos de falsos salvadores, Newman cita somente fil�sofos de segundo time, como S�neca, C�cero e Cat�o, e tamb�m, por ironia, Lorde Francis Bacon, um dos precursores da “filosofia cient�fica” do sr. Lemos (a men��o passageira a S�crates tem outro sentido, como veremos adiante). Nem uma palavra sobre (muito menos contra) a filosofia crist� de Sto. Tom�s, de S. Boaventura, de Duns Scot, de Raimundo L�lio, cujas finalidades edificantes e at� catequ�ticas rebrilham a cada p�gina desses autores. Quanto � filosofia antiga, da qual a crist� medieval deriva em linha direta, o cardeal, em vez de fazer tro�a de seus ideais morais ou de reduzir sua contribui��o, como o desejaria o sr. Lemos, ao desenvolvimento da l�gica, das matem�ticas e das ci�ncias f�sicas, faz dela um dos pilares da pr�pria condi��o humana:

“Enquanto formos homens, n�o podemos escapar de ser, em grande medida, aristot�licos, pois... em muitos assuntos, pensar corretamente � pensar como Arist�teles; e somos seus disc�pulos querendo ou n�o, embora possamos n�o sab�-lo”. Um desses assuntos foi, decerto, a l�gica, e o que Arist�teles pensou a respeito � que ela n�o � nem mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser esquecido no fundo e deixar espa�o a modalidades menos formalizadas de investiga��o, mais compat�veis com a natureza esquiva de certas quest�es. Embora ensinando que a l�gica � a forma por excel�ncia da prova cient�fica, Arist�teles adverte que em todas as investiga��es o problema fundamental n�o � a exata demonstra��o l�gica, mas a descoberta das premissas, na qual a l�gica � absolutamente impotente, devendo ceder lugar � dial�tica, � ret�rica e at� � imagina��o po�tica. Uma filosofia que pretendesse reduzir-se � l�gica, ou mais ainda � l�gica das ci�ncias, seria no entender de Arist�teles-Newman a aberra��o das aberra��es.

Newman, seguindo nisto a tradi��o das universidades medievais, divide os estudos em tr�s n�veis: as artes utilit�rias, as artes liberais (que ele chama indiferentemente de “filosofia” ou “ci�ncia”) e a religi�o crist�. Se o segundo n�vel n�o deve usurpar as prerrogativas do terceiro, tamb�m n�o deve rebaixar-se ao primeiro – o que, observo eu, aconteceria necessariamente se a filosofia se reduzisse � l�gica e o aperfei�oamento da mente � conquista da “precis�o conceitual, clareza e rigor l�gico”, fazendo abstra��o das qualidades �ticas, est�ticas e sociais que segundo Newman comp�em a intelig�ncia bem formada. Se a filosofia n�o assegura a salva��o da alma, isso n�o significa que seja moralmente in�cua ou que a �nica qualidade requerida na sua pr�tica seja, como pretende o sr. Lemos – deformando nisto monstruosamente o pensamento de Newman
, o “amor aos estudos”. O amor aos estudos, sem o correspondente amor � verdade, � um convite �quele pedantismo, �quela presun��o acad�mica que Newman condena com tanta veem�ncia, e da qual as li��es do sr. Lemos fornecem uma amostra indisfar��vel. Pior ainda seria reduzir o amor � verdade a um simples conjunto de precau��es l�gico-t�cnicas, omitindo que sua conquista � uma luta constante de toda a alma, envolvendo sentimentos, h�bitos, valores e, acima de tudo, o esfor�o de autoconhecimento sem o qual a “verdade” se torna uma f�rmula oca, pronta para ser repetida no palco universit�rio ou numa tela de computador sem nenhum ato de consci�ncia correspondente. Se, neste como em outros assuntos, “pensar corretamente � pensar como Arist�teles”, cabe lembrar que, segundo o Estagirita, a verdade n�o est� nas proposi��es e sim no ju�zo, no ato interior da intelig�ncia humana que as aprova ou desaprova. Esse ato s� pode ser efetivado por um ser humano real: tudo o que a t�cnica l�gica pode fazer � simboliz�-lo, no papel ou num HD, por um signo negativo ou positivo.

Se � indiscut�vel que a filosofia n�o fornece nem deve prometer a salva��o da alma, menos convincente � a argumenta��o do cardeal contra os poderes consoladores da medita��o filos�fica nos instantes de perigo e sofrimento. Em primeiro lugar, ela faz caso omisso do precedente hist�rico de Bo�cio, que, condenado � morte, encontra na pris�o a consolatio philosophiae. Em segundo lugar, passa, sem a menor justificativa, ao largo da conduta her�ica de S�crates diante do tribunal que o condenou (j� veremos o que o sublime sr. Lemos tem a dizer a respeito). Em terceiro, omite que a s�ntese escol�stica de f� e raz�o implica, quase que por necessidade intr�nseca, o apelo auxiliar � raz�o como refor�o da f� nos momentos dif�ceis da vida.

O exemplo a que Newman recorre – o fil�sofo de Rasselas – � ainda mais desastroso, em primeiro lugar por ser fict�cio, em segundo lugar por presumir que o pranto diante de uma filha morta seja um v�cio redibit�rio, um argumento fulminante contra as cren�as de um pai sofredor. Se assim fosse, as l�grimas da Virgem Sant�ssima ante o cad�ver de Nosso Senhor Jesus Cristo teriam dado cabo do cristianismo de uma vez para sempre. E, caso n�o chegassem a faz�-lo de maneira convincente, a debandada dos ap�stolos, o grito de desespero do Filho abandonado no alto da Cruz e as tr�s defec��es de Pedro antes de o galo cantar completariam o servi�o para Voltaire nenhum botar defeito.

Nenhum exemplo de fraqueza humana dep�e jamais contra a dignidade de uma cren�a, religiosa ou filos�fica, nem atenua o valor da mensagem que aparenta desmentir. Reconhece-o o pr�prio sr. Lemos, ao afirmar que, se um fil�sofo “entende mais de �tica tomista que S�o Felipe N�ri e privadamente age como um irrespons�vel, a culpa n�o ser� da �tica filos�fica, mas dele”. Infelizmente, o nosso professor de rigor l�gico, ap�s admitir essa obviedade, ainda imagina dizer algo de substantivo contra a filosofia como modo de vida ao alegar que “� muito comum que o moralismo filos�fico ande de m�os dadas com a pervers�o privada”. � luz daquilo mesmo que ele disse na frase anterior, a resposta cabal a essa observa��o �: “E da�?”

J� expliquei mil vezes – pensando, nisto, como Arist�teles – que o argumentum ad hominem s� tem validade cognitiva quando � tamb�m, e inseparavalmente, um exemplum in contrarium, o desmentido factual de uma generaliza��o anterior, como por exemplo quando Hobbes, ap�s proclamar que os seres humanos s� agem por desejo de poder, professa escrever o Leviat� para o puro bem da humanidade sofredora, sem nenhuma ambi��o pessoal; ou quando Maquiavel, ensinando que o Pr�ncipe deve matar seus colaboradores t�o logo chegue ao poder, se omite de incluir nisso o principal dos colaboradores: o autor do plano, isto �, ele pr�prio; ou ainda quando o burgu�s Karl Marx, afirmando que s� os prolet�rios podem ter uma vis�o objetiva da hist�ria, passa a nos oferecer algo que ele jura ser a primeira vis�o objetiva da hist�ria. Fora desses casos, o argumentum ad hominem s� vale como truque sujo ou, no melhor dos casos, como vaga sugest�o de uma possibilidade a ser investigada.

Mesmo que todos os moralistas do mundo fossem imoralistas na pr�tica, isso em nada deporia contra a dignidade ou a necessidade da moral, sem mesmo levar em conta a possibilidade de que as den�ncias de imoralismo sejam obras de intrigantes mal intencionados. Nesse sentido, a observa��o de Newman, de que muitos fil�sofos foram ridicularizados como hip�critas, entre os quais S�crates (nas Nuvens de Arist�fanes), � o prot�tipo mesmo do argumento suicida, que se rebela contra o pr�prio argumentador, j� que a literatura sat�rica voltada � den�ncia da hipocrisia religiosa, desde os Carmina burana a Rabelais, de Bocaccio a Moli�re, de Diderot e Stendhal a Alessandro Manzoni e de Cervantes a James Joyce (sem contar os papas atirados ao Inferno de Dante), transcende infinitamente, em volume, qualidade e import�ncia hist�rica, tudo o que os gozadores de todos os tempos escreveram contra os fil�sofos. E ser� preciso lembrar que ningu�m no mundo foi (e � ainda) mais alvo de chacotas do que o pr�prio Cristo?

Um ponto que Newman n�o consegue esclarecer � o da rela��o exata que h� entre a forma��o do gentil-homem e a educa��o para a f� crist�. Dizer que a primeira n�o basta para produzir a segunda � mais pr�prio do Conselheiro Ac�cio que de algu�m que deseja elucidar o problema. Que, no entanto, toda educa��o liberal seja in�til na catequese da gente simples, do pov�o – coisa que o pr�prio Newman n�o afirma
j� � algo de bastante duvidoso, como se v� pelo fato de que os primeiros esfor�os de alfabetiza��o universal partiram da Igreja mesma, no tempo de Carlos Magno, e de que as artes mec�nicas, praticadas com afinco, terminaram por despertar na intelig�ncia alguma curiosidade de ordem cient�fica ou filos�fica que elas mesmas n�o podem, por si, satisfazer. Mas e a forma��o religiosa do erudito, do professor, do sacerdote, do monge? Ser� a educa��o preliminar da alma nas virtudes mundanas do gentil-homem uma etapa dispens�vel ou ent�o nada mais que um adestramento t�cnico sem nenhum peso moral em si mesmo?

A Hist�ria responde, decididamente, que n�o. Newman inspira-se no exemplo da universidade medieval do s�culo XIII, mas hoje sabemos, e ele na �poca n�o poderia saber, pois s� a historiografia posterior o revelou, que aquela institui��o, longe de representar o cume da educa��o na Idade M�dia, n�o constituiu sen�o a cristaliza��o tardia, institucionalizada, mais formalizada e menos vigorosa, daquilo que se ensinava nas chamadas “escolas catedrais” dos s�culos X a XII.[3] E o que nestas se ensinava eram precisamente as qualidades do gentil-homem – “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente c�ndida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cort�s” – como preparat�rias � aquisi��o das virtudes crist�s, no mesmo sentido em que Clemente de Alexandria proclamara ser a filosofia “o pedagogo que conduz ao Cristo”. O ensino a� alcan�ou tais alturas, e t�o vis�veis eram os seus frutos de bondade e sabedoria, que se afirmava, na �poca, que os anjos mesmos o invejavam. Malgrado o seu fulgurante e breve prest�gio intelectual, as universidades que vieram depois, com toda sua hist�ria de greves, arrua�as e at� mortic�nios e a sua queda posterior numa esterilidade deprimente, jamais mereceram nem mereceriam louvor semelhante. N�o � injusto dizer que os Estatutos da Universidade de Paris em 1215, transformando a filosofia em profiss�o regulamentada e meio de ascens�o social, muito contribuiram para a perda da inspira��o recebida das escolas catedrais e para o afluxo de toda sorte de carreiristas �vidos de poder e prest�gio, inflados de habilidade t�cnica e alheios aos ditames da moral religiosa e at� mesmo secular. N�o espanta que j� em 1229 eclodissem ali motins estudantis que duraram dois anos e deixaram um rastro de cad�veres por toda parte.

Relevante, para a compreens�o desse processo, � a seguinte diferen�a. Enquanto as universidades privilegiavam o ensino formalizado, baseado em textos e documentado em novos textos, criando os monumentos de exposi��o escrita que hoje representam para n�s a figura vis�vel do escolasticismo, as escolas catedrais faziam exatamente o oposto: de um lado, n�o visavam � produ��o de “obras filos�ficas”, mas de personalidades humanas que se destacassem pela beleza, for�a, equil�brio e pureza de inten��es, sem a menor preocupa��o de deixar documentos que atestassem a sua passagem sobre a Terra; de outro lado, davam menos import�ncia, na pr�tica pedag�gica, ao estudo dos textos ou � aquisi��o de t�cnicas do que � influ�ncia direta do mestre como exemplo vivo das virtudes intelectuais e morais a ser infundidas no disc�pulo.

Aproximavam-se notavelmente, sob esse aspecto, do c�rculo socr�tico e da Academia plat�nica origin�ria. Os melhores int�rpretes do platonismo – Paul Friedl�nder. A. E. Taylor, Paul Shorey, Julius Stenzel, Eric Voegelin e Giovanni Reale, entre outros – ensinam que jamais esteve nos prop�sitos de Plat�o criar uma doutrina formalizada, condensada num sistema de proposi��es que pudesse ser repassado, impessoalmente, a destinat�rios gen�ricos, como num tratado de qu�mica ou de l�gica. Escreve Stenzel: “Ele n�o concebeu jamais o aprendizado como coisa de puro intelecto, mas sempre como uma influ�ncia total de homem a homem, como um ser formado e modelado pela �ntima rela��o e sociedade com outro ser humano”[4] Mesmo no concernente aos aspectos mais aparentemente “impessoais” e “ cient�ficos” do seu ensinamento o mestre n�o prescindia do exemplo pedag�gico pessoal. Taylor: “Uma das convic��es mais firmes de Plat�o era que nada que valesse a pena aprender podia ser aprendido por mera ‘instru��o’: o �nico m�todo de ‘aprender’ a ci�ncia era engajar-se efetivamente, em companhia de uma mente mais avan�ada, na busca da verdade.”[5]

O que tornou ainda mais imprescind�vel essa influ�ncia direta de alma para alma foi a circunst�ncia social mesma em que se originou o c�rculo socr�tico. S�crates n�o entra em cena puxando discuss�o contra id�ias quaisquer, nem muito menos, como o sr. Lemos, desafiando uma corrente minorit�ria (a filosofia como “norma de vida”) que ele mesmo declara ser alheia � filosofia “s�ria”. Ao contr�rio: S�crates se volta contra tudo aquilo que, no meio ateniense, � opini�o dominante, tida como respeit�vel e s�ria no mais alto grau. Gra�as ao pr�prio empenho de S�crates e de Plat�o, a doxa ateniense nos aparece hoje coberta de rid�culo, mas na �poca ela era t�o respeitada que desafi�-la podia ser punido com a morte, como de fato o foi. � apenas um estere�tipo escolar dizer que, contra essa constela��o de cren�as estabelecidas, S�crates opunha o apelo � “raz�o”. Da raz�o faziam uso tanto ele quanto seus contendores, argumentando, silogizando e concluindo. Se S�crates o fazia com mais destreza do que eles, a superioridade qualitativa n�o implica uma diferen�a de subst�ncia. A diferen�a espec�fica de S�crates reside num estrato mais profundo da experi�ncia da discuss�o. Enquanto seus advers�rios repetem id�ias correntes, apegando-se � seguran�a dos pap�is sociais que lhes infundem a ilus�o de estar certos por pensar de acordo com a maioria, ou com a classe dominante, S�crates fala apenas como indiv�duo humano, sem respaldo em qualquer autoridade externa. E n�o apenas faz isso, mas apela ao pr�prio testemunho �ntimo de seus contendores, o que equivale a despi-los de suas identidades sociais e induzi-los � confiss�o direta, sincera, humana, de seus verdadeiros sentimentos. Um dos recursos de que ele se serve para isso � convidar cada um a imaginar sua pr�pria morte e a vida no al�m-t�mulo. A realidade da morte e a perspectiva do julgamento dissolvem as defesas  sociais – as “racionaliza��es”, diria um psicanalista – e equalizam os seres humanos na consci�ncia de seu destino concreto. O mero confronto de opini�es transfigura-se em di�logo entre as almas, culminando na periagoge, a virada de 180 graus na dire��o da consci�ncia que abandona a miragem coletiva e, voltando-se para dentro, a� descobre as bases permanentes da sua exist�ncia.

For�ar os espectadores a despir-se de sua identidade civil e pol�tica para lev�-los contemplar sem defesas a fragilidade da condi��o humana era j� o objetivo da trag�dia grega, que por isso mesmo escolhia como her�i, com freq��ncia, o estrangeiro, o desconhecido, o rejeitado e marginalizado, de modo que todo senso de identifica��o nacional ou social cedesse lugar � humanidade nua e crua das experi�ncias fundamentais. Da� que Nicole Loraux, num ensaio memor�vel, definisse a trag�dia como “o g�nero antipol�tico” por excel�ncia.[6]

Foi s� quando a trag�dia j� ia perdendo efic�cia como forma simb�lica que uma nova modalidade mais diferenciada e expl�cita de apelo � humanidade profunda se tornou necess�ria e poss�vel. Mais que pela sua t�cnica argumentativa, deficiente sob tantos pontos de vista, S�crates � not�vel pela sua arg�cia psicol�gica, ou psicopedag�gica, da qual n�o encontramos similar antes de Montaigne (s�culo XVI), de Pascal (s�culo XVII) e do advento da novel�stica moderna no s�culo XVIII. Ao longo de todos os di�logos socr�ticos, n�o se trata nunca de desmantelar argumentos simplesmente, mas de despertar o senso moral por meio de um aprofundamento cognitivo das experi�ncias fundamentais. � imposs�vel, a�, separar o que � “investiga��o filos�fica” do que � “educa��o moral”, j� que esta orienta aquela e recebe dela o seu fundamento experimental.

Acontece que nem sempre a opera��o � bem sucedida. �s vezes o ouvinte � t�o apegado � sua identidade social que n�o pode imaginar-se desprovido dela, nu e indefeso, nem por um minuto. No af� de esquivar-se da experi�ncia �ntima, de furtar-se � periagoge, ele apela a todos os subterf�gios, que v�o do racioc�nio fantasioso[7] � chacota e �s palavras amea�adoras, ou ent�o retira-se do di�logo. A� a conclus�o que se imp�e � que estamos diante da invers�o formal e paradigm�tica da figura do fil�sofo: o filodoxo, “amante da opini�o”.

Essa oposi��o n�o � casual, nem mero artif�cio de ret�rica. A estrutura inteira da Rep�blica e de outros di�logos est� montada em cima de pares de opostos aos quais Plat�o d� um sentido est�vel e que se incorporam na sua linguagem t�cnica. Nem todos esses pares, no entanto, sobreviveram na hist�ria da filosofia: alguns conceitos separaram-se de seus opostos e adquiriram uma vida ficcional aut�noma sob a forma de fetiches verbais consagrados. Explica Eric Voegelin:

“Plat�o criou seus pares de conceitos no curso da sua resist�ncia � sociedade corrupta que o rodeava. Da luta concreta contra a corrup��o circundante, no entanto, Plat�o emergiu vencedor com efetividade hist�rica mundial. Em conseq��ncia, o lado positivo dos seus pares tornou-se a ‘linguagem filos�fica’ da civiliza��o ocidental, enquanto o lado negativo perdeu seu status de vocabul�rio t�cnico... A perda da metade negativa destituiu a positiva do seu sabor de resist�ncia e oposi��o, e deixou-a com uma qualidade de abstratismo que � profundamente alheia � concretude do pensamento plat�nico... A perda mostrou-se maximamente embara�osa no par philosophos e philodoxos. Em ingl�s temos philosophers, mas n�o philodoxers. A perda �, neste caso, peculiarmente embara�osa, porque, na realidade, temos uma abund�ncia de filodoxos; e, como o termo plat�nico que os designava se perdeu, referimo-nos a eles como ‘fil�sofos’. No uso moderno, portanto, chamamos de fil�sofos precisamente as pessoas contra as quais, como fil�sofo, Plat�o se opunha. E uma compreens�o da metade positiva do par se tornou hoje praticamente imposs�vel, exceto para uns poucos eruditos, porque, quando falamos em ‘fil�sofos’, pensamos em filodoxos.”[8]

Newman, falando em “fil�sofos”, pensa precisamente em filodoxos,  sem saber que o faz. Da� a ambig�idade um tanto constrangedora com que ele deprecia as ambi��es moralizantes dos fil�sofos ao mesmo tempo que se declara adepto e seguidor de uma filosofia t�o obviamente moralizante como o � a de Arist�teles. Da� tamb�m a gafe monumental de acompanhar Samuel Johnson quando este faz tro�a das l�grimas de um pai diante do cad�ver da filha.

Mas o filodoxo n�o se define s� por sua oposi��o � pessoa do fil�sofo, e sim, ainda que sem perceb�-lo, ao pr�prio fundamento �ltimo da filosofia plat�nica (e, por extens�o, de toda a filosofia crist�): “Plat�o, explica Voegelin, fala do filodoxo como o homem que n�o pode suportar a id�ia de que ‘o belo, ou o justo, ou o que quer que seja, sejam um e o mesmo.’”[9] Voegelin lembra a senten�a de Xen�fanes: “O Um � o Deus”. Podemos tamb�m evocar os “transcendentais” de Duns Scot, Unum, Verum, Bonum, que se convertem uns nos outros. Tanto em Plat�o quanto em Arist�teles ou em toda a filosofia escol�stica, o Supremo Bem n�o � um “valor”, muito menos uma “cria��o cultural”, mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto �ltimo de todo conhecimento.

A repulsa que isso causa � sensibilidade moderna � not�ria. Desde Kant, a separa��o abissal e intranspon�vel entre “realidade” e “valor” consagrou-se como um dogma incontest�vel da mitologia universit�ria, sem que ningu�m perceba que ela se auto-anula no momento em que, professando expressar um dado incontorn�vel da realidade, se consagra como um valor cultural.

Max Weber, hipnotizado pela vis�o do abismo intranspon�vel, mas ansiando por encontrar um fundamento moral que justificasse sua busca da verdade cient�fica, chegou a cair numa crise de paralisia nervosa, ficando cinco anos inutilizado num sof�, por n�o conseguir escapar do engano tr�gico que fazia de uma situa��o hist�rica passageira um princ�pio fundante de todo conhecimento cient�fico. A “independ�ncia entre as esferas de valores”, como ele a chamava, � o dogma central da filodoxia. Ela n�o resulta da natureza das coisas, mas do fato de que, apegados a suas identidades sociais de professores, de cientistas, de artistas ou de pregadores, muitos indiv�duos, em certas �pocas, se v�em incapacitados de descer � profundidade interior em que se revela a unidade da experi�ncia humana:  confundindo a incompatibilidade entre suas linguagens profissionais respectivas com uma separa��o ontol�gica objetiva entre os dom�nios da realidade, n�o t�m sequer a hombridade weberiana de reconhecer que est�o doentes. Realizam, assim, a profecia de Her�clito, segundo a qual os homens despertos vivem num mesmo mundo, ao passo que os adormecidos refluem para seus respectivos mundos mutuamente incomunic�veis. V�rios sintomas assinalam essa patologia. Um deles � o que denomino “moral arbitr�ria”: o sujeito proclama que os valores morais n�o t�m nenhuma base cient�fica nem defesa racional poss�vel, mas continua agindo exteriormente como se acreditasse no bem e na virtude, ou naquilo que ele assim denomina. Sugere, assim, que sua conduta �tica, ou aparentemente �tica, n�o deriva do Supremo Bem, mas da sua pr�pria, misteriosa, arbitr�ria e inexplic�vel bondade pessoal. � a forma de autobeatifica��o mais querida dos intelectuais c�ticos e materialistas.

Outros, como o pr�prio sr. Lemos, preferem consagrar a separa��o abissal entre fatos e valores como se fosse ela mesma o valor supremo, da� proclamando que a “�tica pr�tica” n�o tem nada a ver com a sua “filosofia s�ria”. O sr. Lemos, com toda a evid�ncia, confunde fil�sofos com filodoxos porque ele mesmo � um destes �ltimos.

A f� inocente com que ele aceita como absoluto a intranspon�vel o div�rcio entre o real e o bem, tomando simples nomes atuais de profiss�es ou de disciplinas (“�tica pr�tica”, “auto-ajuda”, “ci�ncia”, “filosofia” etc.) como se correspondessem a divis�es objetivas e eternas na estrutura do cosmos, evidencia que ele n�o entende, nem muito menos assume como sua, a obriga��o n�mero um do fil�sofo, que � a busca da unidade para al�m e por cima de todos os abismos e dificuldades que a cultura – a doxa – pode ter espalhado ao longo do caminho. Separando o Verum e o Bonum, ou antes, aceitando acriticamente essa separa��o t�o cara � doxa contempor�nea como se fosse um dado inquestion�vel da realidade mesma e n�o a simples cristaliza��o hist�rica de uma not�ria dificuldade de comunica��o entre escolas e estilos de pensamento, ele toma a desordem da cultura como se fosse a ordem c�smica e, portanto, bloqueia – para si mesmo e para quem lhe d� ouvidos
toda possibilidade de aspira��o ao Unum. Se, depois disso, ele continua se apresentando como um porta-voz da “raz�o”, � evidente que ele jamais se perguntou o que pode haver ainda de “racional” num mundo de onde a unidade foi expulsa de uma vez para sempre e a divis�o convencional do trabalho se tornou o �nico princ�pio metaf�sico restante. Ou seja: a “raz�o” de que ele se gaba � um estere�tipo verbal apenas, n�o algo cuja experi�ncia ele tenha jamais sondado em profundidade ou sequer imaginado que devesse sondar. Raramente se viu a devo��o servil � doxa brilhar com t�o obsceno esplendor.

Desde a posi��o existencial fr�gil e vacilante em que isso o coloca, � inevit�vel que ele n�o possa argumentar sen�o falsificando o sentido dos textos que cita e cometendo, sob a ostenta��o de “rigor l�gico”, os ilogismos mais pueris e desengon�ados. Como mesmo isso n�o baste para camuflar sua inseguran�a, ele parte para a psicose historiogr�fica e, como diria uma velha express�o popular francesa, p�te plus haut que son cul: sem qualquer explica��o, sem nos dar nem a mais m�nima id�ia do que pode hav�-lo conduzido a t�o inusitada opini�o, ele declara peremptoriamente que o hero�smo de S�crates antes os ju�zes foi “uma lenda”, e inclui o fil�sofo entre os que, como o personagem de Rasselas, “fracassaram na adversidade”. A tranq�ilidade fria e como que desinteressada com que ele se dispensa de tentar justificar essa enormidade s� pode explicar-se pela confian�a absoluta que ele deposita naquilo em que cr�, como se o houvesse testemunhado com seus pr�prios olhos. N�o se preocupem, portanto: o sr. Lemos esteve l�, viu tudo, e nem todos os testemunhos do mundo o demover�o da certeza de que no momento decisivo, S�crates, em vez de dar aos disc�pulos um exemplo de coragem, como o acreditam Plat�o e outros ing�nuos, fez pipi nas cal�as.[10]

 

Richmond, VA, 7 de abril de 2012.


Notas:

[1] J�lio Lemos, “Sobre uma supersti��o”, em http://www.dicta.com.br/, 5 de abril de 2012.

[2] O texto completo encontra-se online em http://www.newmanreader.org/works/idea/.

[3] V. C. Stephen Jaeger, The Envy of the Angels. Cathedral Schools and Social Ideals In Medieval Europe, 950-1200, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.

[4] Stenzel, Platone Educatore, trad. Francesco Gabrieli, Bari, Laterza, 1966, p. 17.

[5] A. E. Taylor, Plato: The Man and His Work (1926), Mineola, NY, Dover, 2001, p. 6.

[6] V. Nicole Loraux, The Mourning Voice: An Essay on Greek Tragedy, transl. Elizabeth Trapnell Rawlings. Cornell University Press. 2002.

[7] V. as observa��es argutas de Eric Voegelin sobre a “antropologia de sonho” que est� na base das teorias contratualistas, em Plato and Aristotle. Order and History vol. III, Columbia and London, University of Missouri Press, pp. 129-131.

[8] Op. cit., pp. 119-120.

[9] Id., ibid.

[10] Mais tarde, na �rea de coment�rios, o sr. Lemos tentou justificar-se alegando que as fontes de Plat�o na Apologia de S�crates s�o duvidosas. Com base nisso ele se acredita autorizado para afirmar categoricamente, sem fonte nenhuma, o contr�rio do que Plat�o diz. � esse o homem que quer dar li��es de “rigor l�gico” a um estupefato mundo. Ainda n�o aprendeu que entre uma d�vida e a certeza do contr�rio a dist�ncia � infinita.