De S�crates a J�lio Lemos (A filosofia e seu inverso
II)
Olavo de Carvalho 7 de abril de
2012
I. A filosofia e seu inverso II. De S�crates a J�lio Lemos III. Os filodoxos perante a Hist�ria
O sr. J�lio Lemos, que n�o perde a oportunidade de puxar uma
discuss�o, chama S�crates de “chato-mor” por ter
praticado o mesmo costume dois mil e quatrocentos anos
atr�s.[1] Mas a� cessa toda a semelhan�a. Entre outras
inumer�veis diferen�as, � not�rio que S�crates chamava seus
advers�rios pelos nomes, enquanto o sr. Lemos, ao criticar
os v�cios da filosofia circundante, deixa sempre ao leitor a
incumb�ncia de descobrir quem seriam os viciados, se � que
eles existem fora da cabe�a do articulista. T�o avesso � ele
� men��o de pessoas de carne e osso, que seus artigos de
cr�tica deveriam vir precedidos do
disclaimer:
“Qualquer semelhan�a com a realidade � mera
coincid�ncia.” Os di�logos socr�ticos, ao contr�rio,
sempre se travam com personagens reais da vida ateniense e
tratam de problemas cuja presen�a na sociedade � patente aos
olhos de todos. S�crates combateu bravamente a corrup��o da
polis, ao passo que
o sr. Lemos se mant�m a uma prudente dist�ncia deste baixo
mundo, consagrando seus talentos a especula��es
l�gico-matem�ticas – ou a discuss�es com fil�sofos
hipot�ticos –
que n�o ofendem as autoridades constitu�das. Talvez ele se
envergonhe um pouco disso no �ntimo, mas em suas declara��es
p�blicas o que transparece �, ao contr�rio, aquela
ostenta��o de superioridade distante, quase
blas�e, do
profissional tarimbado que consente, por mera caridade, em
dirigir umas palavrinhas ao amador intrometido.
Todos sabemos em que consiste essa superioridade: o sr.
Lemos desempenha, no teatro imagin�rio que ele desejaria
lotar de uma plat�ia real, o papel do argumentador rigoroso,
cient�fico, universit�rio, em contraste com os palpiteiros
que “fazem filosofia de modo tosco, deixando de lado a
especula��o para inculcar nos ouvintes e leitores crit�rios
morais, condenar comportamentos ou provocar a
indigna��o”. Entre os culpados de semelhante
descalabro, ele inclui S�crates, Plat�o e Arist�teles,
sempre ocupados em indicar aos incautos o caminho do bem, da
sabedoria e da felicidade – tarefa que, segundo ele,
cabe � “�tica pr�tica” ou �s t�cnicas de
“auto-ajuda”, pouco ou nada tendo a ver com a
aut�ntica e s�ria filosofia, representada eminentemente, ao
que tudo indica, pelo pr�prio sr. J�lio Lemos.
Em apoio das suas singelas pretens�es, ele apela �
autoridade do Bem-Aventurado Cardeal John Henry Newman, o
qual, proclamando no Cap�tulo 5 de
Idea of a University[2] que “o conhecimento � uma coisa, a virtude �
outra” e que “a filosofia, por mais iluminada,
n�o fornece nenhum comando sobre as paix�es, nem motiva��es
influentes, nem princ�pios vivificantes”, cita o
exemplo de um personagem do romance
Rasselas, Prince of Abissinia, de Samuel Johnson – um fil�sofo que, diante da
filha morta, confessava n�o receber nenhum consolo da �tica
de autocontrole que havia ensinado a seus disc�pulos (o sr.
Lemos, com o rigor que lhe � peculiar, conjetura que o homem
� um pitag�rico, quando com toda a evid�ncia se trata de um
est�ico). O epis�dio antecipa o protesto lancinante de Franz
Rosenzweig, que, espremido numa trincheira da I Guerra,
entre pilhas de cad�veres, notava a perfeita impot�ncia da
filosofia acad�mica ante a carnificina mundializada.
Seria �timo se o sr. Lemos, antes de usar um texto cl�ssico
como porrete, aprendesse a l�-lo. O trecho citado n�o
contrasta a filosofia moralizante com a “filosofia
cient�fica” que o sr. Lemos tanto aprecia, mas com a
f� crist�. Quando Newman sugere que o ensino da filosofia,
em vez de fazer falsas promessas de salva��o, deveria tratar
mais modestamente de desenvolver no estudante as virtudes
intelectuais, o sr. Lemos, tentando fazer do cardeal um
apologista da escola anal�tica
avant-la-lettre,
insinua que essas virtudes consistem t�o-somente em
“precis�o conceitual, clareza e rigor l�gico”,
isto �, as qualidades padronizadas da comunica��o cient�fica
no sentido atual. Qualquer tentativa de ir um pouco acima
disso �, segundo ele, pura supersti��o. Newman, no entanto
deixa claro que n�o � nada disso. O que o ensino da
filosofia pode e deve desenvolver, segundo ele, � “um
intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente c�ndida,
equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e
cort�s” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid,
equitable, dispassionate mind, a noble and courteous
bearing in the conduct of life). Quem, lendo essas palavras, pode falhar em compreender
que as virtudes intelectuais a que o cardeal alude s�o,
tamb�m e intrinsecamente, virtudes morais, precisamente
aquelas que, segundo o sr. Lemos, a filosofia n�o pode
ensinar de maneira alguma? Pois Newman, explicitamente, faz
delas o objetivo mesmo do ensino da filosofia numa
universidade (they are the objects of a University).
S� o que Newman acentua � que essas virtudes s�o inferiores
�s da santidade crist�. � o caso de exclamar, como o cidad�o
lisboeta a quem um turista perguntava se sabia a localiza��o
do Mosteiro dos Jer�nimos: “� raios, e quem � que n�o
sabe?” O cardeal esclarece, com toda a raz�o, que a
educa��o filos�fica “produz n�o o crist�o, n�o o
cat�lico, mas o gentil-homem”. Ele est� longe de
desprezar as virtudes do gentil-homem; ao contr�rio,
professa advog�-las e insistir na sua import�ncia. Adverte,
apenas, que elas n�o s�o garantia de santidade, nem mesmo de
conscienciosidade; que podem mesmo estimular o pedantismo, a
arrog�ncia e o esp�rito de controv�rsia. Tudo isso � de uma
obviedade exemplar, mas s� o sr. Lemos pode enxergar a� um
apelo a que a filosofia se abstenha de todo ideal moral e se
concentre na pura busca da exatid�o l�gica, tomada como um
fim em si. Quando Newman fala de “estudo
desinteressado”, ele est� se referindo,
ostensivamente, apenas � cl�ssica distin��o entre artes
liberais e servis. Estas �ltimas visam a finalidades
utilit�rias, aquelas ao aperfei�oamento da mente humana. Ao
descrever esse aperfei�amento como uma s�ntese de valores
cognitivos, �ticos, est�ticos e sociais, condensando-a no
s�mbolo do “gentil-homem”, ele exclui
antecipadamente, e da maneira mais categ�rica poss�vel, a
interpreta��o que o sr. Lemos quer impingir �s suas
palavras. O “estudo desinteressado”
desinteressa-se de suas aplica��es t�cnicas, industriais e
econ�micas, n�o de seus efeitos psicol�gicos e morais na
mente do estudante, que s�o, segundo Newman, sua pr�pria
raz�o de ser.
Tamb�m n�o escapar� ao leitor atento o detalhe altamente
significativo de que, como exemplos de falsos salvadores,
Newman cita somente fil�sofos de segundo time, como S�neca,
C�cero e Cat�o, e tamb�m, por ironia, Lorde Francis Bacon,
um dos precursores da “filosofia cient�fica” do
sr. Lemos (a men��o passageira a S�crates tem outro sentido,
como veremos adiante). Nem uma palavra sobre (muito menos
contra) a filosofia crist� de Sto. Tom�s, de S. Boaventura,
de Duns Scot, de Raimundo L�lio, cujas finalidades
edificantes e at� catequ�ticas rebrilham a cada p�gina
desses autores. Quanto � filosofia antiga, da qual a crist�
medieval deriva em linha direta, o cardeal, em vez de fazer
tro�a de seus ideais morais ou de reduzir sua contribui��o,
como o desejaria o sr. Lemos, ao desenvolvimento da l�gica,
das matem�ticas e das ci�ncias f�sicas, faz dela um dos
pilares da pr�pria condi��o humana:
“Enquanto formos homens, n�o podemos escapar de ser,
em grande medida, aristot�licos, pois... em muitos assuntos,
pensar corretamente � pensar como Arist�teles; e somos seus
disc�pulos querendo ou n�o, embora possamos n�o
sab�-lo”. Um desses assuntos foi, decerto, a l�gica, e
o que Arist�teles pensou a respeito � que ela n�o � nem
mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um
treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser
esquecido no fundo e deixar espa�o a modalidades menos
formalizadas de investiga��o, mais compat�veis com a
natureza esquiva de certas quest�es. Embora ensinando que a
l�gica � a forma por excel�ncia da prova cient�fica,
Arist�teles adverte que em todas as investiga��es o problema
fundamental n�o � a exata demonstra��o l�gica, mas a
descoberta das premissas, na qual a l�gica � absolutamente
impotente, devendo ceder lugar � dial�tica, � ret�rica e at�
� imagina��o po�tica. Uma filosofia que pretendesse
reduzir-se � l�gica, ou mais ainda � l�gica das ci�ncias,
seria no entender de Arist�teles-Newman a aberra��o das
aberra��es.
Newman, seguindo nisto a tradi��o das universidades
medievais, divide os estudos em tr�s n�veis: as artes
utilit�rias, as artes liberais (que ele chama
indiferentemente de “filosofia” ou
“ci�ncia”) e a religi�o crist�. Se o segundo
n�vel n�o deve usurpar as prerrogativas do terceiro, tamb�m
n�o deve rebaixar-se ao primeiro – o que, observo eu,
aconteceria necessariamente se a filosofia se reduzisse �
l�gica e o aperfei�oamento da mente � conquista da
“precis�o conceitual, clareza e rigor l�gico”,
fazendo abstra��o das qualidades �ticas, est�ticas e sociais
que segundo Newman comp�em a intelig�ncia bem formada. Se a
filosofia n�o assegura a salva��o da alma, isso n�o
significa que seja moralmente in�cua ou que a �nica
qualidade requerida na sua pr�tica seja, como pretende o sr.
Lemos – deformando nisto monstruosamente o pensamento
de Newman –, o “amor aos estudos”. O amor aos estudos, sem
o correspondente amor � verdade, � um convite �quele
pedantismo, �quela presun��o acad�mica que Newman condena
com tanta veem�ncia, e da qual as li��es do sr. Lemos
fornecem uma amostra indisfar��vel. Pior ainda seria reduzir
o amor � verdade a um simples conjunto de precau��es
l�gico-t�cnicas, omitindo que sua conquista � uma luta
constante de toda a alma, envolvendo sentimentos, h�bitos,
valores e, acima de tudo, o esfor�o de autoconhecimento sem
o qual a “verdade” se torna uma f�rmula oca,
pronta para ser repetida no palco universit�rio ou numa tela
de computador sem nenhum ato de consci�ncia correspondente.
Se, neste como em outros assuntos, “pensar
corretamente � pensar como Arist�teles”, cabe lembrar
que, segundo o Estagirita, a verdade n�o est� nas
proposi��es e sim no ju�zo, no ato interior da intelig�ncia
humana que as aprova ou desaprova. Esse ato s� pode ser
efetivado por um ser humano real: tudo o que a t�cnica
l�gica pode fazer � simboliz�-lo, no papel ou num HD, por um
signo negativo ou positivo.
Se � indiscut�vel que a filosofia n�o fornece nem deve
prometer a salva��o da alma, menos convincente � a
argumenta��o do cardeal contra os poderes consoladores da
medita��o filos�fica nos instantes de perigo e sofrimento.
Em primeiro lugar, ela faz caso omisso do precedente
hist�rico de Bo�cio, que, condenado � morte, encontra na
pris�o a
consolatio philosophiae.
Em segundo lugar, passa, sem a menor justificativa, ao largo
da conduta her�ica de S�crates diante do tribunal que o
condenou (j� veremos o que o sublime sr. Lemos tem a dizer a
respeito). Em terceiro, omite que a s�ntese escol�stica de
f� e raz�o implica, quase que por necessidade intr�nseca, o
apelo auxiliar � raz�o como refor�o da f� nos momentos
dif�ceis da vida.
O exemplo a que Newman recorre – o fil�sofo de
Rasselas – �
ainda mais desastroso, em primeiro lugar por ser fict�cio,
em segundo lugar por presumir que o pranto diante de uma
filha morta seja um v�cio redibit�rio, um argumento
fulminante contra as cren�as de um pai sofredor. Se assim
fosse, as l�grimas da Virgem Sant�ssima ante o cad�ver de
Nosso Senhor Jesus Cristo teriam dado cabo do cristianismo
de uma vez para sempre. E, caso n�o chegassem a faz�-lo de
maneira convincente, a debandada dos ap�stolos, o grito de
desespero do Filho abandonado no alto da Cruz e as tr�s
defec��es de Pedro antes de o galo cantar completariam o
servi�o para Voltaire nenhum botar defeito.
Nenhum exemplo de fraqueza humana dep�e jamais contra a
dignidade de uma cren�a, religiosa ou filos�fica, nem atenua
o valor da mensagem que aparenta desmentir. Reconhece-o o
pr�prio sr. Lemos, ao afirmar que, se um fil�sofo
“entende mais de �tica tomista que S�o Felipe N�ri e
privadamente age como um irrespons�vel, a culpa n�o ser� da
�tica filos�fica, mas dele”. Infelizmente, o nosso
professor de rigor l�gico, ap�s admitir essa obviedade,
ainda imagina dizer algo de substantivo contra a filosofia
como modo de vida ao alegar que “� muito comum que o
moralismo filos�fico ande de m�os dadas com a pervers�o
privada”. � luz daquilo mesmo que ele disse na frase
anterior, a resposta cabal a essa observa��o �: “E
da�?”
J� expliquei mil vezes – pensando, nisto, como
Arist�teles – que o
argumentum ad hominem
s� tem validade cognitiva quando � tamb�m, e
inseparavalmente, um
exemplum in contrarium, o desmentido factual de uma generaliza��o anterior, como
por exemplo quando Hobbes, ap�s proclamar que os seres
humanos s� agem por desejo de poder, professa escrever o
Leviat� para o puro
bem da humanidade sofredora, sem nenhuma ambi��o pessoal; ou
quando Maquiavel, ensinando que o Pr�ncipe deve matar seus
colaboradores t�o logo chegue ao poder, se omite de incluir
nisso o principal dos colaboradores: o autor do plano, isto
�, ele pr�prio; ou ainda quando o burgu�s Karl Marx,
afirmando que s� os prolet�rios podem ter uma vis�o objetiva
da hist�ria, passa a nos oferecer algo que ele jura ser a
primeira vis�o objetiva da hist�ria. Fora desses casos, o
argumentum ad hominem
s� vale como truque sujo ou, no melhor dos casos, como vaga
sugest�o de uma possibilidade a ser investigada.
Mesmo que todos os moralistas do mundo fossem imoralistas na
pr�tica, isso em nada deporia contra a dignidade ou a
necessidade da moral, sem mesmo levar em conta a
possibilidade de que as den�ncias de imoralismo sejam obras
de intrigantes mal intencionados. Nesse sentido, a
observa��o de Newman, de que muitos fil�sofos foram
ridicularizados como hip�critas, entre os quais S�crates
(nas Nuvens de
Arist�fanes), � o prot�tipo mesmo do
argumento suicida,
que se rebela contra o pr�prio argumentador, j� que a
literatura sat�rica voltada � den�ncia da hipocrisia
religiosa, desde os
Carmina burana a
Rabelais, de Bocaccio a Moli�re, de Diderot e Stendhal a
Alessandro Manzoni e de Cervantes a James Joyce (sem contar
os papas atirados ao
Inferno de Dante),
transcende infinitamente, em volume, qualidade e import�ncia
hist�rica, tudo o que os gozadores de todos os tempos
escreveram contra os fil�sofos. E ser� preciso lembrar que
ningu�m no mundo foi (e � ainda) mais alvo de chacotas do
que o pr�prio Cristo?
Um ponto que Newman n�o consegue esclarecer � o da rela��o
exata que h� entre a forma��o do gentil-homem e a educa��o
para a f� crist�. Dizer que a primeira n�o basta para
produzir a segunda � mais pr�prio do Conselheiro Ac�cio que
de algu�m que deseja elucidar o problema. Que, no entanto,
toda educa��o liberal seja in�til na catequese da gente
simples, do pov�o – coisa que o pr�prio Newman n�o
afirma –
j� � algo de bastante duvidoso, como se v� pelo fato de que
os primeiros esfor�os de alfabetiza��o universal partiram da
Igreja mesma, no tempo de Carlos Magno, e de que as artes
mec�nicas, praticadas com afinco, terminaram por despertar
na intelig�ncia alguma curiosidade de ordem cient�fica ou
filos�fica que elas mesmas n�o podem, por si, satisfazer.
Mas e a forma��o religiosa do erudito, do professor, do
sacerdote, do monge? Ser� a educa��o preliminar da alma nas
virtudes mundanas do gentil-homem uma etapa dispens�vel ou
ent�o nada mais que um adestramento t�cnico sem nenhum peso
moral em si mesmo?
A Hist�ria responde, decididamente, que n�o. Newman
inspira-se no exemplo da universidade medieval do s�culo
XIII, mas hoje sabemos, e ele na �poca n�o poderia saber,
pois s� a historiografia posterior o revelou, que aquela
institui��o, longe de representar o cume da educa��o na
Idade M�dia, n�o constituiu sen�o a cristaliza��o tardia,
institucionalizada, mais formalizada e menos vigorosa,
daquilo que se ensinava nas chamadas “escolas
catedrais” dos s�culos X a XII.[3] E o que nestas se
ensinava eram precisamente as qualidades do gentil-homem
– “um intelecto cultivado, um gosto delicado,
uma mente c�ndida, equitativa e desapaixonada, uma conduta
nobre e cort�s” – como preparat�rias � aquisi��o
das virtudes crist�s, no mesmo sentido em que Clemente de
Alexandria proclamara ser a filosofia “o pedagogo que
conduz ao Cristo”. O ensino a� alcan�ou tais alturas,
e t�o vis�veis eram os seus frutos de bondade e sabedoria,
que se afirmava, na �poca, que os anjos mesmos o invejavam.
Malgrado o seu fulgurante e breve prest�gio intelectual, as
universidades que vieram depois, com toda sua hist�ria de
greves, arrua�as e at� mortic�nios e a sua queda posterior
numa esterilidade deprimente, jamais mereceram nem
mereceriam louvor semelhante. N�o � injusto dizer que os
Estatutos da Universidade de Paris em 1215, transformando a
filosofia em profiss�o regulamentada e meio de ascens�o
social, muito contribuiram para a perda da inspira��o
recebida das escolas catedrais e para o afluxo de toda sorte
de carreiristas �vidos de poder e prest�gio, inflados de
habilidade t�cnica e alheios aos ditames da moral religiosa
e at� mesmo secular. N�o espanta que j� em 1229 eclodissem
ali motins estudantis que duraram dois anos e deixaram um
rastro de cad�veres por toda parte.
Relevante, para a compreens�o desse processo, � a seguinte
diferen�a. Enquanto as universidades privilegiavam o ensino
formalizado, baseado em textos e documentado em novos
textos, criando os monumentos de exposi��o escrita que hoje
representam para n�s a figura vis�vel do escolasticismo, as
escolas catedrais faziam exatamente o oposto: de um lado,
n�o visavam � produ��o de “obras filos�ficas”,
mas de personalidades humanas que se destacassem pela
beleza, for�a, equil�brio e pureza de inten��es, sem a menor
preocupa��o de deixar documentos que atestassem a sua
passagem sobre a Terra; de outro lado, davam menos
import�ncia, na pr�tica pedag�gica, ao estudo dos textos ou
� aquisi��o de t�cnicas do que � influ�ncia direta do mestre
como exemplo vivo das virtudes intelectuais e morais a ser
infundidas no disc�pulo.
Aproximavam-se notavelmente, sob esse aspecto, do c�rculo
socr�tico e da Academia plat�nica origin�ria. Os melhores
int�rpretes do platonismo – Paul Friedl�nder. A. E.
Taylor, Paul Shorey, Julius Stenzel, Eric Voegelin e
Giovanni Reale, entre outros – ensinam que jamais
esteve nos prop�sitos de Plat�o criar uma doutrina
formalizada, condensada num sistema de proposi��es que
pudesse ser repassado, impessoalmente, a destinat�rios
gen�ricos, como num tratado de qu�mica ou de l�gica. Escreve
Stenzel: “Ele n�o concebeu jamais o aprendizado como
coisa de puro intelecto, mas sempre como uma influ�ncia
total de homem a homem, como um ser formado e modelado pela
�ntima rela��o e sociedade com outro ser humano”[4]
Mesmo no concernente aos aspectos mais aparentemente
“impessoais” e “ cient�ficos” do seu
ensinamento o mestre n�o prescindia do exemplo pedag�gico
pessoal. Taylor: “Uma das convic��es mais firmes de
Plat�o era que nada que valesse a pena aprender podia ser
aprendido por mera ‘instru��o’: o �nico m�todo
de ‘aprender’ a ci�ncia era engajar-se
efetivamente, em companhia de uma mente mais avan�ada, na
busca da verdade.”[5]
O que tornou ainda mais imprescind�vel essa influ�ncia
direta de alma para alma foi a circunst�ncia social mesma em
que se originou o c�rculo socr�tico. S�crates n�o entra em
cena puxando discuss�o contra id�ias quaisquer, nem muito
menos, como o sr. Lemos, desafiando uma corrente minorit�ria
(a filosofia como “norma de vida”) que ele mesmo
declara ser alheia � filosofia “s�ria”. Ao
contr�rio: S�crates se volta contra tudo aquilo que, no meio
ateniense, � opini�o dominante, tida como respeit�vel e
s�ria no mais alto grau. Gra�as ao pr�prio empenho de
S�crates e de Plat�o, a
doxa ateniense nos
aparece hoje coberta de rid�culo, mas na �poca ela era t�o
respeitada que desafi�-la podia ser punido com a morte, como
de fato o foi. � apenas um estere�tipo escolar dizer que,
contra essa constela��o de cren�as estabelecidas, S�crates
opunha o apelo � “raz�o”. Da raz�o faziam uso
tanto ele quanto seus contendores, argumentando, silogizando
e concluindo. Se S�crates o fazia com mais destreza do que
eles, a superioridade qualitativa n�o implica uma diferen�a
de subst�ncia. A diferen�a espec�fica de S�crates reside num
estrato mais profundo da experi�ncia da discuss�o. Enquanto
seus advers�rios repetem id�ias correntes, apegando-se �
seguran�a dos pap�is sociais que lhes infundem a ilus�o de
estar certos por pensar de acordo com a maioria, ou com a
classe dominante, S�crates fala apenas como indiv�duo
humano, sem respaldo em qualquer autoridade externa. E n�o
apenas faz isso, mas apela ao pr�prio testemunho �ntimo de
seus contendores, o que equivale a despi-los de suas
identidades sociais e induzi-los � confiss�o direta,
sincera, humana, de seus verdadeiros sentimentos. Um dos
recursos de que ele se serve para isso � convidar cada um a
imaginar sua pr�pria morte e a vida no al�m-t�mulo. A
realidade da morte e a perspectiva do julgamento dissolvem
as defesas sociais – as
“racionaliza��es”, diria um psicanalista –
e equalizam os seres humanos na consci�ncia de seu destino
concreto. O mero confronto de opini�es transfigura-se em
di�logo entre as almas, culminando na
periagoge, a virada
de 180 graus na dire��o da consci�ncia que abandona a
miragem coletiva e, voltando-se para dentro, a� descobre as
bases permanentes da sua exist�ncia.
For�ar os espectadores a despir-se de sua identidade civil e
pol�tica para lev�-los contemplar sem defesas a fragilidade
da condi��o humana era j� o objetivo da trag�dia grega, que
por isso mesmo escolhia como her�i, com freq��ncia, o
estrangeiro, o desconhecido, o rejeitado e marginalizado, de
modo que todo senso de identifica��o nacional ou social
cedesse lugar � humanidade nua e crua das experi�ncias
fundamentais. Da� que Nicole Loraux, num ensaio memor�vel,
definisse a trag�dia como “o g�nero
antipol�tico” por excel�ncia.[6]
Foi s� quando a trag�dia j� ia perdendo efic�cia como forma
simb�lica que uma nova modalidade mais diferenciada e
expl�cita de apelo � humanidade profunda se tornou
necess�ria e poss�vel. Mais que pela sua t�cnica
argumentativa, deficiente sob tantos pontos de vista,
S�crates � not�vel pela sua arg�cia psicol�gica, ou
psicopedag�gica, da qual n�o encontramos similar antes de
Montaigne (s�culo XVI), de Pascal (s�culo XVII) e do advento
da novel�stica moderna no s�culo XVIII. Ao longo de todos os
di�logos socr�ticos, n�o se trata nunca de desmantelar
argumentos simplesmente, mas de despertar o senso moral por
meio de um aprofundamento cognitivo das experi�ncias
fundamentais. � imposs�vel, a�, separar o que �
“investiga��o filos�fica” do que �
“educa��o moral”, j� que esta orienta aquela e
recebe dela o seu fundamento experimental.
Acontece que nem sempre a opera��o � bem sucedida. �s vezes
o ouvinte � t�o apegado � sua identidade social que n�o pode
imaginar-se desprovido dela, nu e indefeso, nem por um
minuto. No af� de esquivar-se da experi�ncia �ntima, de
furtar-se �
periagoge, ele apela
a todos os subterf�gios, que v�o do racioc�nio fantasioso[7]
� chacota e �s palavras amea�adoras, ou ent�o retira-se do
di�logo. A� a conclus�o que se imp�e � que estamos diante da
invers�o formal e paradigm�tica da figura do fil�sofo: o
filodoxo,
“amante da opini�o”.
Essa oposi��o n�o � casual, nem mero artif�cio de ret�rica.
A estrutura inteira da
Rep�blica e de
outros di�logos est� montada em cima de pares de opostos aos
quais Plat�o d� um sentido est�vel e que se incorporam na
sua linguagem t�cnica. Nem todos esses pares, no entanto,
sobreviveram na hist�ria da filosofia: alguns conceitos
separaram-se de seus opostos e adquiriram uma vida ficcional
aut�noma sob a forma de fetiches verbais consagrados.
Explica Eric Voegelin:
“Plat�o criou seus pares de conceitos no curso da sua
resist�ncia � sociedade corrupta que o rodeava. Da luta
concreta contra a corrup��o circundante, no entanto, Plat�o
emergiu vencedor com efetividade hist�rica mundial. Em
conseq��ncia, o lado positivo dos seus pares tornou-se a
‘linguagem filos�fica’ da civiliza��o ocidental,
enquanto o lado negativo perdeu seu
status de
vocabul�rio t�cnico... A perda da metade negativa destituiu
a positiva do seu sabor de resist�ncia e oposi��o, e
deixou-a com uma qualidade de abstratismo que �
profundamente alheia � concretude do pensamento plat�nico...
A perda mostrou-se maximamente embara�osa no par
philosophos e
philodoxos. Em
ingl�s temos
philosophers, mas
n�o philodoxers. A
perda �, neste caso, peculiarmente embara�osa, porque, na
realidade, temos uma abund�ncia de filodoxos; e, como o
termo plat�nico que os designava se perdeu, referimo-nos a
eles como ‘fil�sofos’. No uso moderno, portanto,
chamamos de fil�sofos precisamente as pessoas contra as
quais, como fil�sofo, Plat�o se opunha. E uma compreens�o da
metade positiva do par se tornou hoje praticamente
imposs�vel, exceto para uns poucos eruditos, porque, quando
falamos em ‘fil�sofos’, pensamos em
filodoxos.”[8]
Newman, falando em “fil�sofos”, pensa
precisamente em filodoxos, sem saber que o faz. Da� a
ambig�idade um tanto constrangedora com que ele deprecia as
ambi��es moralizantes dos fil�sofos ao mesmo tempo que se
declara adepto e seguidor de uma filosofia t�o obviamente
moralizante como o � a de Arist�teles. Da� tamb�m a gafe
monumental de acompanhar Samuel Johnson quando este faz
tro�a das l�grimas de um pai diante do cad�ver da filha.
Mas o filodoxo n�o se define s� por sua oposi��o � pessoa do
fil�sofo, e sim, ainda que sem perceb�-lo, ao pr�prio
fundamento �ltimo da filosofia plat�nica (e, por extens�o,
de toda a filosofia crist�): “Plat�o, explica
Voegelin, fala do filodoxo como o homem que n�o pode
suportar a id�ia de que ‘o belo, ou o justo, ou o que
quer que seja, sejam um e o mesmo.’”[9] Voegelin
lembra a senten�a de Xen�fanes: “O Um � o Deus”.
Podemos tamb�m evocar os “transcendentais” de
Duns Scot, Unum,
Verum,
Bonum, que se
convertem uns nos outros. Tanto em Plat�o quanto em
Arist�teles ou em toda a filosofia escol�stica, o Supremo
Bem n�o � um “valor”, muito menos uma
“cria��o cultural”, mas a realidade suprema, o
ens realissimum,
fundamento primeiro e objeto �ltimo de todo conhecimento.
A repulsa que isso causa � sensibilidade moderna � not�ria.
Desde Kant, a separa��o abissal e intranspon�vel entre
“realidade” e “valor” consagrou-se
como um dogma incontest�vel da mitologia universit�ria, sem
que ningu�m perceba que ela se auto-anula no momento em que,
professando expressar um dado incontorn�vel da realidade, se
consagra como um valor cultural.
Max Weber, hipnotizado pela vis�o do abismo intranspon�vel,
mas ansiando por encontrar um fundamento moral que
justificasse sua busca da verdade cient�fica, chegou a cair
numa crise de paralisia nervosa, ficando cinco anos
inutilizado num sof�, por n�o conseguir escapar do engano
tr�gico que fazia de uma situa��o hist�rica passageira um
princ�pio fundante de todo conhecimento cient�fico. A
“independ�ncia entre as esferas de valores”,
como ele a chamava, � o dogma central da filodoxia. Ela n�o
resulta da natureza das coisas, mas do fato de que, apegados
a suas identidades sociais de professores, de cientistas, de
artistas ou de pregadores, muitos indiv�duos, em certas
�pocas, se v�em incapacitados de descer � profundidade
interior em que se revela a unidade da experi�ncia
humana: confundindo a incompatibilidade entre suas
linguagens profissionais respectivas com uma separa��o
ontol�gica objetiva entre os dom�nios da realidade, n�o t�m
sequer a hombridade weberiana de reconhecer que est�o
doentes. Realizam, assim, a profecia de Her�clito, segundo a
qual os homens despertos vivem num mesmo mundo, ao passo que
os adormecidos refluem para seus respectivos mundos
mutuamente incomunic�veis. V�rios sintomas assinalam essa
patologia. Um deles � o que denomino “moral
arbitr�ria”: o sujeito proclama que os valores morais
n�o t�m nenhuma base cient�fica nem defesa racional
poss�vel, mas continua agindo exteriormente como se
acreditasse no bem e na virtude, ou naquilo que ele assim
denomina. Sugere, assim, que sua conduta �tica, ou
aparentemente �tica, n�o deriva do Supremo Bem, mas da sua
pr�pria, misteriosa, arbitr�ria e inexplic�vel bondade
pessoal. � a forma de autobeatifica��o mais querida dos
intelectuais c�ticos e materialistas.
Outros, como o pr�prio sr. Lemos, preferem consagrar a
separa��o abissal entre fatos e valores como se fosse ela
mesma o valor supremo, da� proclamando que a “�tica
pr�tica” n�o tem nada a ver com a sua “filosofia
s�ria”. O sr. Lemos, com toda a evid�ncia, confunde
fil�sofos com filodoxos porque ele mesmo � um destes
�ltimos.
A f� inocente com que ele aceita como absoluto a
intranspon�vel o div�rcio entre o real e o bem, tomando
simples nomes atuais de profiss�es ou de disciplinas
(“�tica pr�tica”, “auto-ajuda”,
“ci�ncia”, “filosofia” etc.) como se
correspondessem a divis�es objetivas e eternas na estrutura
do cosmos, evidencia que ele n�o entende, nem muito menos
assume como sua, a obriga��o n�mero um do fil�sofo, que � a
busca da unidade para al�m e por cima de todos os abismos e
dificuldades que a cultura – a
doxa – pode
ter espalhado ao longo do caminho. Separando o
Verum e o
Bonum, ou antes,
aceitando acriticamente essa separa��o t�o cara �
doxa contempor�nea
como se fosse um dado inquestion�vel da realidade mesma e
n�o a simples cristaliza��o hist�rica de uma not�ria
dificuldade de comunica��o entre escolas e estilos de
pensamento, ele toma a desordem da cultura como se fosse a
ordem c�smica e, portanto, bloqueia – para si mesmo e
para quem lhe d� ouvidos
–
toda possibilidade de aspira��o ao
Unum. Se, depois
disso, ele continua se apresentando como um porta-voz da
“raz�o”, � evidente que ele jamais se perguntou
o que pode haver ainda de “racional” num mundo
de onde a unidade foi expulsa de uma vez para sempre e a
divis�o convencional do trabalho se tornou o �nico princ�pio
metaf�sico restante. Ou seja: a “raz�o” de que
ele se gaba � um estere�tipo verbal apenas, n�o algo cuja
experi�ncia ele tenha jamais sondado em profundidade ou
sequer imaginado que devesse sondar. Raramente se viu a
devo��o servil �
doxa brilhar com t�o
obsceno esplendor.
Desde a posi��o existencial fr�gil e vacilante em que isso o
coloca, � inevit�vel que ele n�o possa argumentar sen�o
falsificando o sentido dos textos que cita e cometendo, sob
a ostenta��o de “rigor l�gico”, os ilogismos
mais pueris e desengon�ados. Como mesmo isso n�o baste para
camuflar sua inseguran�a, ele parte para a psicose
historiogr�fica e, como diria uma velha express�o popular
francesa,
p�te plus haut que son cul: sem qualquer explica��o, sem nos dar nem a mais m�nima
id�ia do que pode hav�-lo conduzido a t�o inusitada opini�o,
ele declara peremptoriamente que o hero�smo de S�crates
antes os ju�zes foi “uma lenda”, e inclui o
fil�sofo entre os que, como o personagem de
Rasselas,
“fracassaram na adversidade”. A tranq�ilidade
fria e como que desinteressada com que ele se dispensa de
tentar justificar essa enormidade s� pode explicar-se pela
confian�a absoluta que ele deposita naquilo em que cr�, como
se o houvesse testemunhado com seus pr�prios olhos. N�o se
preocupem, portanto: o sr. Lemos esteve l�, viu tudo, e nem
todos os testemunhos do mundo o demover�o da certeza de que
no momento decisivo, S�crates, em vez de dar aos disc�pulos
um exemplo de coragem, como o acreditam Plat�o e outros
ing�nuos, fez pipi nas cal�as.[10]
Richmond, VA, 7 de abril de 2012.
Notas:
[1] J�lio Lemos, “Sobre uma supersti��o”, em
http://www.dicta.com.br/, 5 de abril de 2012.
[2] O texto completo encontra-se
online em
http://www.newmanreader.org/works/idea/.
[3] V. C. Stephen Jaeger,
The Envy of the Angels. Cathedral Schools and Social
Ideals In Medieval Europe, 950-1200, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.
[4] Stenzel,
Platone Educatore,
trad. Francesco Gabrieli, Bari, Laterza, 1966, p. 17.
[5] A. E. Taylor,
Plato: The Man and His Work
(1926), Mineola, NY, Dover, 2001, p. 6.
[6] V. Nicole Loraux,
The Mourning Voice: An Essay on Greek Tragedy, transl. Elizabeth Trapnell Rawlings. Cornell University
Press. 2002.
[7] V. as observa��es argutas de Eric Voegelin sobre a
“antropologia de sonho” que est� na base das
teorias contratualistas, em
Plato and Aristotle. Order and History
vol. III, Columbia and London, University of Missouri Press,
pp. 129-131.
[8] Op. cit., pp.
119-120.
[9] Id., ibid.
[10] Mais tarde, na �rea de coment�rios, o sr. Lemos tentou
justificar-se alegando que as fontes de Plat�o na
Apologia de S�crates
s�o duvidosas. Com base nisso ele se acredita autorizado
para afirmar categoricamente,
sem fonte nenhuma, o
contr�rio do que Plat�o diz. � esse o homem que quer dar
li��es de “rigor l�gico” a um estupefato mundo.
Ainda n�o aprendeu que entre uma d�vida e a certeza do
contr�rio a dist�ncia � infinita.
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