Se h� um dado hist�rico do qual n�o se pode duvidar, � que
a filosofia nasceu na Gr�cia e adquiriu sua forma
cl�ssica, de uma vez por todas, com Plat�o e Arist�teles
(ambos sob a inspira��o original de S�crates). Voc� pode
chegar a ser fil�sofo ignorando Sartre, Husserl,
Nietzsche, at� mesmo Hegel, Leibniz ou Sto. Tom�s de
Aquino. Mas quem n�o tomou um banho de imers�o nos
ensinamentos dos dois pais fundadores permanecer�
eternamente alheio ao esp�rito da filosofia.
Ningu�m descreveu esse esp�rito melhor que Eric Voegelin,
quando disse que, perdido o antigo senso
“cosmol�gico” de orienta��o na vida, em que a
ordem da exist�ncia aparecia como uma imagem do cosmos, a
filosofia emergiu como tentativa de encontrar um novo
princ�pio ordenador j� n�o na contempla��o do universo
f�sico, mas na interioridade da alma. Na confus�o geral do
mundo, o fil�sofo busca ordenar a sua pr�pria alma para
tom�-la como medida de aferi��o da desordem exterior.
Dentre os m�ltiplos estilos de pensamento que a filosofia
universal nos oferece, o estudante sempre acaba, no fim
das contas, por se apegar a algum. Formal ou
informalmente, torna-se kantiano, hegeliano, marxista,
nietzscheano, estruturalista, neo-empirista ou qualquer
outra coisa. Mas nenhuma dessas linhas de orienta��o faz
por si o menor sentido, se separada do projeto ordenador
origin�rio inaugurado por Plat�o e Arist�teles.
Principalmente porque aquelas v�rias escolas se definem
umas pelas outras dentro dos limites de um debate
filos�fico “profissional”, com problemas e
termos estabelecidos por uma longa tradi��o acad�mica, ao
passo que os cl�ssicos gregos nos d�o um senso de
orienta��o muito mais abrangente, um senso de orienta��o
n�o na rede das discuss�es universit�rias, mas na vida em
geral. Descartes, Kant, Husserl ou Wittgenstein nos
ensinam “filosofia”, isto �, certos problemas
filos�ficos e certas maneiras sofisticadas de abord�-los.
Mas somente em Plat�o e Arist�teles voc� aprende o que �
ser um fil�sofo. Ser um fil�sofo n�o � a mesma coisa que
dominar apenas um conjunto de t�cnicas intelectuais que
tornem voc� um membro reconhec�vel, ou at� mesmo
respeit�vel, de uma determinada corpora��o acad�mica
(supondo-se que a universidade as ensine realmente em vez
de lhe dar somente um t�tulo destinado a encobrir a falta
delas). Essas t�cnicas permitem que voc� entenda o que os
fil�sofos est�o discutindo e at� formule seus palpites em
linguagem academicamente aceit�vel, mas ningu�m, em seu
ju�zo perfeito, pensaria em aplic�-las � vida real, � vida
de todos os dias, fora do �mbito profissional. Ningu�m, ao
tomar decis�es sobre casamento, emprego, educa��o dos
filhos, administra��o dom�stica, ou mais ainda ao lidar
com as grandes crises da exist�ncia pessoal, vai agir
baseado em Hegel ou Wittgenstein. Na verdade, a simples
id�ia de buscar na filosofia um senso de orienta��o na
vida real soa estranha nos meios universit�rios hoje em
dia. Filosofia, dizem, � atividade intelectual s�ria, n�o
auto-ajuda. Na hora da encrenca, esquecem a seriedade e
v�o buscar a ajuda de um psicoterapeuta (ou de um
pai-de-santo, como tantos professores da USP). Mas �
justamente nos momentos decisivos da vida, nas horas de
crise e perplexidade, que Plat�o e Arist�teles (e,
pairando acima deles, o esp�rito de S�crates) v�m em nosso
socorro, infundindo-nos o senso da ordem interior da alma,
que far� de cada um de n�s, n�o um profissional acad�mico,
mas um
spoudaios, um
homem verdadeiramente adulto, humanamente desenvolvido at�
o extremo limite dos seus poderes cognitivos, capaz de
perceber a realidade e tomar decis�es desde o centro e o
topo da sua consci�ncia, e n�o desde as paix�es de um
momento, desde um oportunismo profissional, desde o temor
do julgamento dos pares ou desde algum preconceito da
moda.
Em for�a pedag�gica, em poder de ordena��o da alma, os
escritos de Plat�o e Arist�teles n�o perdem sen�o para a
B�blia e as palavras dos Santos Padres e Doutores da
Igreja – com uma diferen�a a favor deles: a B�blia
est� escrita em linguagem simb�lica, �s vezes dif�cil de
interpretar, e os escritos dos Padres e Doutores lotam
bibliotecas inteiras, que voc� n�o conseguir� ler no prazo
de uma vida, mesmo supondo-se que saia inteiro das
controv�rsias teol�gicas que atravancam o caminho.
� verdade, tamb�m, que muitos estudiosos n�o enxergam, em
Plat�o e Arist�teles, sen�o aquilo que encontram tamb�m em
Descartes, Kant ou Husserl: “quest�es
filos�ficas” para alimentar a pesquisa erudita e
aquecer o debate acad�mico. Mas fazem isso porque querem,
porque amam a filosofia como profiss�o, n�o como norma e
sentido da vida. Nada os obriga a isso, exceto a decis�o,
que livremente tomaram, de buscar antes a seguran�a de uma
identidade profissional do que a ordem da vida interior,
conciliando sem maiores dramas de consci�ncia o rigor das
investiga��es acad�micas com a fragmenta��o, desarmonia e
deformidade das suas almas. Que justamente esses
tipifiquem aos olhos da multid�o a imagem de
“fil�sofos” por excel�ncia, j� que a multid�o
nada sabe da filosofia e julga tudo pela apar�ncia dos
pap�is sociais, � uma das maiores ironias da sociedade
atual. Pois a orienta��o que adotaram na exist�ncia � o
inverso exato da vida filos�fica tal como a entendiam
S�crates, Plat�o e Arist�teles. S�o “fil�sofos
profissionais” precisamente na medida em que ignoram
ou desprezam o esp�rito da filosofia.
Parte 2