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A filosofia e seu inverso

Olavo de Carvalho
15 de fevereiro de 2012

 

I. A filosofia e seu inverso
II. De S�crates a J�lio Lemos
III. Os filodoxos perante a Hist�ria


“A hist�ria da filosofia � uma cole��o
de notas-de-rodap� a Plat�o e Arist�teles.”
(Arthur O. Lovejoy)
             
 

Se h� um dado hist�rico do qual n�o se pode duvidar, � que a filosofia nasceu na Gr�cia e adquiriu sua forma cl�ssica, de uma vez por todas, com Plat�o e Arist�teles (ambos sob a inspira��o original de S�crates). Voc� pode chegar a ser fil�sofo ignorando Sartre, Husserl, Nietzsche, at� mesmo Hegel, Leibniz ou Sto. Tom�s de Aquino. Mas quem n�o tomou um banho de imers�o nos ensinamentos dos dois pais fundadores permanecer� eternamente alheio ao esp�rito da filosofia.

Ningu�m descreveu esse esp�rito melhor que Eric Voegelin, quando disse que, perdido o antigo senso “cosmol�gico” de orienta��o na vida, em que a ordem da exist�ncia aparecia como uma imagem do cosmos, a filosofia emergiu como tentativa de encontrar um novo princ�pio ordenador j� n�o na contempla��o do universo f�sico, mas na interioridade da alma. Na confus�o geral do mundo, o fil�sofo busca ordenar a sua pr�pria alma para tom�-la como medida de aferi��o da desordem exterior.

Dentre os m�ltiplos estilos de pensamento que a filosofia universal nos oferece, o estudante sempre acaba, no fim das contas, por se apegar a algum. Formal ou informalmente, torna-se kantiano, hegeliano, marxista, nietzscheano, estruturalista, neo-empirista ou qualquer outra coisa. Mas nenhuma dessas linhas de orienta��o faz por si o menor sentido, se separada do projeto ordenador origin�rio inaugurado por Plat�o e Arist�teles. Principalmente porque aquelas v�rias escolas se definem umas pelas outras dentro dos limites de um debate filos�fico “profissional”, com problemas e termos estabelecidos por uma longa tradi��o acad�mica, ao passo que os cl�ssicos gregos nos d�o um senso de orienta��o muito mais abrangente, um senso de orienta��o n�o na rede das discuss�es universit�rias, mas na vida em geral. Descartes, Kant, Husserl ou Wittgenstein nos ensinam “filosofia”, isto �, certos problemas filos�ficos e certas maneiras sofisticadas de abord�-los. Mas somente em Plat�o e Arist�teles voc� aprende o que � ser um fil�sofo. Ser um fil�sofo n�o � a mesma coisa que dominar apenas um conjunto de t�cnicas intelectuais que tornem voc� um membro reconhec�vel, ou at� mesmo respeit�vel, de uma determinada corpora��o acad�mica (supondo-se que a universidade as ensine realmente em vez de lhe dar somente um t�tulo destinado a encobrir a falta delas). Essas t�cnicas permitem que voc� entenda o que os fil�sofos est�o discutindo e at� formule seus palpites em linguagem academicamente aceit�vel, mas ningu�m, em seu ju�zo perfeito, pensaria em aplic�-las � vida real, � vida de todos os dias, fora do �mbito profissional. Ningu�m, ao tomar decis�es sobre casamento, emprego, educa��o dos filhos, administra��o dom�stica, ou mais ainda ao lidar com as grandes crises da exist�ncia pessoal, vai agir baseado em Hegel ou Wittgenstein. Na verdade, a simples id�ia de buscar na filosofia um senso de orienta��o na vida real soa estranha nos meios universit�rios hoje em dia. Filosofia, dizem, � atividade intelectual s�ria, n�o auto-ajuda. Na hora da encrenca, esquecem a seriedade e v�o buscar a ajuda de um psicoterapeuta (ou de um pai-de-santo, como tantos professores da USP). Mas � justamente nos momentos decisivos da vida, nas horas de crise e perplexidade, que Plat�o e Arist�teles (e, pairando acima deles, o esp�rito de S�crates) v�m em nosso socorro, infundindo-nos o senso da ordem interior da alma, que far� de cada um de n�s, n�o um profissional acad�mico, mas um spoudaios, um homem verdadeiramente adulto, humanamente desenvolvido at� o extremo limite dos seus poderes cognitivos, capaz de perceber a realidade e tomar decis�es desde o centro e o topo da sua consci�ncia, e n�o desde as paix�es de um momento, desde um oportunismo profissional, desde o temor do julgamento dos pares ou desde algum preconceito da moda.

Em for�a pedag�gica, em poder de ordena��o da alma, os escritos de Plat�o e Arist�teles n�o perdem sen�o para a B�blia e as palavras dos Santos Padres e Doutores da Igreja – com uma diferen�a a favor deles: a B�blia est� escrita em linguagem simb�lica, �s vezes dif�cil de interpretar, e os escritos dos Padres e Doutores lotam bibliotecas inteiras, que voc� n�o conseguir� ler no prazo de uma vida, mesmo supondo-se que saia inteiro das controv�rsias teol�gicas que atravancam o caminho.

� verdade, tamb�m, que muitos estudiosos n�o enxergam, em Plat�o e Arist�teles, sen�o aquilo que encontram tamb�m em Descartes, Kant ou Husserl: “quest�es filos�ficas” para alimentar a pesquisa erudita e aquecer o debate acad�mico. Mas fazem isso porque querem, porque amam a filosofia como profiss�o, n�o como norma e sentido da vida. Nada os obriga a isso, exceto a decis�o, que livremente tomaram, de buscar antes a seguran�a de uma identidade profissional do que a ordem da vida interior, conciliando sem maiores dramas de consci�ncia o rigor das investiga��es acad�micas com a fragmenta��o, desarmonia e deformidade das suas almas. Que justamente esses tipifiquem aos olhos da multid�o a imagem de “fil�sofos” por excel�ncia, j� que a multid�o nada sabe da filosofia e julga tudo pela apar�ncia dos pap�is sociais, � uma das maiores ironias da sociedade atual. Pois a orienta��o que adotaram na exist�ncia � o inverso exato da vida filos�fica tal como a entendiam S�crates, Plat�o e Arist�teles. S�o “fil�sofos profissionais” precisamente na medida em que ignoram ou desprezam o esp�rito da filosofia.


Parte 2