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O chuchu que virou pepino

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 10 de outubro de 2006

 

Começo por chamar a atenção dos leitores para a seguinte nota publicada na coluna de Mônica Bérgamo (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0410200609.htm)

“De um dos parlamentares mais bem votados do PT em jantar com empresários, anteontem: ‘Vamos ser claros. Existia um acordo entre nós [PT] e o PSDB: o próximo governo era nosso, do Lula. O de 2010 seria do José Serra ou do Aécio Neves, sem problemas. Com a vitória do Alckmin, esse acordo será rompido. E o Alckmin vai ter derrotado o Serra, o Aécio, o Fernando Henrique Cardoso, o Lula, todo mundo.’ A platéia ouvia, algo perplexa. O parlamentar continuou: ‘O Alckmin, se eleito, não vai governar. O PT não vai dar trégua no Congresso. A CUT, o MST, os movimentos sociais, não vão dar trégua nas ruas.’ A perplexidade só aumentou. No mesmo jantar foi dito que o PT está preparado para uma má notícia nas próximas pesquisas: a de que Alckmin tenha empatado ou até superado o presidente Lula nas intenções de votos. ‘Mas o PT vai para as ruas’, disse o parlamentar.”

Se a informação é veraz (e confesso que sinto dificuldade em contestá-la), ela significa que:

1) Os dois partidos fingem enfrentar-se em público, quando em segredo já dividiram o bolo do poder. Isso seria a maior fraude eleitoral de todos os tempos.

2) O acordo criminoso tem autoridade superior à decisão do eleitorado, que pode ser revogada à força caso venha a se desviar do que ele determina. Isso seria mais que uma ameaça de golpe. Seria a confissão de que o golpe já está armado.

A informação pode parecer chocante demais para ser verdadeira, mas, no país do Mensalão, do dinheiro na cueca, dos 50 mil homicídios por ano, das testemunhas judiciais assassinadas em série e dos narcotraficantes recebidos como hóspedes oficiais de um governador de Estado, a diferença entre o chocante e o banal se tornou um detalhe filológico sem maior interesse. 

A notícia, aliás, tem antecedentes, e bastante numerosos.

Tempos atrás, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o então teórico petista Cristovam Buarque reconheceram, numa declaração conjunta, que seus respectivos partidos não tinham nenhuma divergência no que diz respeito a ideologia e metas; que a única disputa ali existente era de cargos. Em qualquer país decente, essas duas belezinhas teriam sido imediatamente aposentadas da atividade política. No Brasil, receberam mimos e afagos como se tivessem acabado de recitar “Batatinha quando nasce”. Já naquela época ninguém se escandalizava ante a confissão de que a mais vistosa disputa em cartaz no circo político nacional era uma farsa. A identidade de política e farsa parecia, ao contrário, uma lei da natureza. Por que deveríamos então surpreender-nos com sua confirmação tardia?  

A suspeita explícita de algum acordo secreto remonta pelo menos à declaração de Fernando Henrique, feita ao candidato Lula poucos dias antes da eleição de 2002: “Você sabe que esta cadeira é sua.” Por que o presidente, em vez de ajudar o seu candidato nominal, apostava tudo no cavalo do adversário? Não sei, mas o fato é que, eleito para deter o avanço da extrema esquerda, Fernando Henrique havia tratado é de favorecê-lo por todos os meios, alimentando o MST com as verbas federais que o transmutaram de grupelho folclórico em temível organização de massas, desmoralizando e demolindo as Forças Armadas, institucionalizando o assalto revanchista aos cofres do Estado e oficializando a doutrinação politicamente correta nas escolas. Não é de espantar que a direita militar tenha acabado por nutrir mais ódio aos tucanos do que aos petistas, oferecendo a estes o seu apoio eleitoral em 2002. Nada no mundo me convencerá de que tudo isso foram resultados imprevistos de erros inocentes, cometidos com a mais pura intenção de sepultar o comunismo sob as glórias de uma democracia capitalista. No instante mesmo em que os cometia, Fernando Henrique gabava-se de ser melhor conhecedor da estratégia revolucionária gramsciana do que seus concorrentes petistas. E era mesmo. Mas, nesse sentido, seus erros não foram erros. foram uma espertíssima política de esquerda camuflada como política direitista sonsa. Todos os aparentes paradoxos do governo Fernando Henrique se resolvem quando os encaramos sob esse prisma. Inclusive as famosas privatizações, conduzidas com espírito premeditadamente clientelista que as inutilizou como instrumentos de higiene administrativa e comprometeu para sempre a imagem do “liberalismo” aos olhos do eleitorado, dando um poderoso reforço ao discurso estatista da esquerda – resultado óbvio que um cientista político habilitado como Fernando Henrique jamais teria podido deixar de prever, e do qual, aliás, tirou ainda um belo proveito secundário, o enriquecimento de seus amigos.     

A existência da parceria oculta entre as duas agremiações pareceu confirmada por um sinal indireto nas eleições de 2002, quando o candidato José Serra, alimentado de informações sobre o Foro de São Paulo capazes de fazer em cacos o prestígio do oponente, se recusou a divulgá-las, preferindo antes ser usado como sparring para o maior sucesso do adversário e tornando-se, por omissão, cúmplice dos crimes inumeráveis cometidos por aquela organização subversiva.

O mesmo silêncio é observado agora pelo sr. Geraldo Alckmin, cuja imagem de conservador e católico só engana a quem desconheça a contribuição dada por ele ao avanço da ditadura politicamente correta entre nós, mediante um decreto abominável que proíbe padres, pastores ou rabinos de vetarem o ingresso de homens vestidos de mulheres nos seus templos, como se cultos religiosos fossem bailes do Scala Gay.

Como se isso não bastasse, o candidato ainda sai proclamando que Lula está à sua direita, dando assim um formidável impulso a que a identificação do esquerdismo com a vontade de Deus se arraigue um pouco mais na imaginação popular, e confessando que, à imagem do seu antecessor de 2002, não enfrenta o oponente como a direita enfrenta a esquerda, mas apenas concorre com ele num campeonato de esquerdismo. Se é verdade que o contrato secreto sugerido na notícia da Folha não compromete o PSDB inteiro, mas apenas alguns grupos dentro dele, é claro que entre a facção de Alckmin e o grupo Serra-Aécio-FHC a divergência também não é ideológica, mas mera disputa de poder, reproduzindo em miniatura, na escala tucana, a concorrência entre PSDB e PT.

Ambos esses partidos, no fim das contas, vêm da mesma origem social e cultural. Nasceram do mesmo grupo uspiano intoxicado de marxismo, cujos membros menos ortodoxos, mesmo após a queda da URSS, não abdicaram em nada de seu compromisso materialista e esquerdista, no máximo consentindo numa modernização cosmética, da qual não resultou nenhuma tomada de posição efetiva contra as ditaduras comunistas e nem sequer o despertar de algum interesse, por mínimo que fosse, pelo pensamento da “direita”. Fernando Henrique, Serra, Gianotti e tutti quanti continuam tão ignorantes do conservadorismo anglo-saxônico ou da economia austríaca quanto o eram na década de 60. Que sentido faz, então, rotulá-los de “direitistas”? Como podem esses indivíduos representar, mesmo de longe, uma corrente de idéias pela qual não têm sequer um interesse teórico, um interesse intelectual, um interesse de meros leitores? O cientista Bolívar Lamounier voltou a insistir recentemente, e é o milésimo a dizê-lo: “O PSDB é uma organização de centro-esquerda.” Fazer dos líderes tucanos a encarnação da direita nacional é evidentemente uma fraude. Se perguntarmos a quem beneficia essa fraude, a resposta é óbvia: beneficia por igual aos tucanos e petistas, ajudando-os a dividir o espaço inteiro da política nacional entre a “esquerda” e a “direita da esquerda”, deslocando para o mundo do não-ser todas as forças que poderiam legitimamente reivindicar, em graus variados, o título de direitistas, conservadoras ou liberais. Tenho explicado isso desde o ano de 2000 pelo menos (V. /semana/paulada.htm, /semana/dirdaesq.htm/semana/berlim.htm), e não vejo por que continuar repetindo o óbvio.

Quem disse que em briga de marido e mulher não se mete a colher tinha em vista precisamente o fato de que, por trás dos bate-bocas domésticos restando sempre um fundo de amor secreto, qualquer veleidade de tomar partido de um dos lados acabará fortalecendo a união dos cônjuges em prejuízo do intrometido. Duas forças que se acharam espertas o bastante para usar o PSDB contra o PT ou vice-versa saíram quebradas e desmoralizadas dessa tentativa supremamente idiota. A primeira foi o PFL. Pouco restou dele depois da aliança com FHC, e agora está mais fraco ainda depois do esfarelamento político de Antonio Carlos Magalhães, um fenômeno que previ como inevitável mais de três anos atrás. A segunda foi a vasta parcela de oficiais das Forças Armadas, que, em 2002, no empenho de vingar-se dos tucanos que tanto haviam humilhado suas corporações, votaram maciçamente no PT acreditando poder servir-se dele e jogá-lo fora. Foram eles os usados e jogados, exatamente como anunciei que seriam.

Onde erraram? Erraram, primeiro, pela mania brasileira de tentar resolver tudo com manhas sorrateiras em vez de coragem e franqueza. Napoleão ensinava: entre a esperteza e a força, a força sempre vence. O corolário é incontornável: se você não tem força, adquira-a. Essa é a única esperteza que vale. Um único ato de coragem multiplica a força por mil. E nada enfraquece mais do que tentar usar a esperteza como substitutivo da coragem. Com mais alguns passos nessa direção, a Frente Liberal se tornará a entrada dos fundos do esquerdismo. E as Forças Armadas se tornarão Fraquezas Desarmadas.  

Erraram, também, por subestimar a unidade profunda da esquerda nacional, unidade forjada na luta precisamente contra a elite pefelista e as Forças Armadas. Civil ou militar, o sujeito precisa ser muito besta para achar que de repente, em troca de dois ou três agradinhos, esquerdistas históricos vão romper lealdades de quatro décadas para se tornar amigos de seus inimigos de ontem. Mesmo se não existisse a aliança formal a que se refere a colunista da Folha, restaria o espírito de solidariedade revolucionária, uma força psicológica tremenda. Um comunista pode retalhar ou assar vivo outro comunista. Mas jamais permitirá que um estranho, um reacionário, o faça em lugar dele. Entre comunistas, as divergências são políticas ou estratégicas. Entre os comunistas e o resto, a diferença é um abismo ontológico intransponível. Notem o ar de infinita superioridade com que eles se referem a vocês, e verão que nesses ambientes vocês jamais terão sequer o estatuto de seres humanos enquanto não se converterem ao esquerdismo. Para o comunista, só há amigos e inimigos – e nesta última classificação entram os aliados oportunistas como o PFL e os oficiais “nacionalistas”.

Há também o fato de que bater com duas mãos, articulando a “pressão de cima” com a “pressão de baixo” como se viessem de fontes separadas e inconexas, é a mais velha e sólida tradição estratégica do esquerdismo internacional – uma tradição que dificilmente seria desconhecida por homens muito versados em marxismo e em praticamente mais nada.

Por fim, é evidente que nem PT nem PSDB são organizações nacionais independentes, criadoras de suas próprias idéias. Ambos são instrumentos passivos de estratégias globais que seus dirigentes nem mesmo enxergam com clareza, pois não têm QI para isso, e às quais servem com o deslumbramento de caipiras para quem um sorrisinho da mídia novaiorquina ou uns aplausos de ocasião na Assembléia Geral da ONU representam a culminação suprema da existência humana. Para os criadores da política mundial, os planejadores estratégicos da Nova Ordem Mundial, articular um partido de esquerda com um de centro-esquerda em mais um país de tagarelas semiletrados no Terceiro Mundo, depois de tantos onde isso se fez com sucesso desde a primeira década do século XX, não é certamente o grande desafio de suas vidas.

Em face desses antecedentes, a noticia dada por Mônica Bérgamo faz tanto sentido que negar sua veracidade in limine, como o faz indignado o meu caro Reinaldo Azevedo, só se explica como natural reação do homem honesto ante o temor de que sua última esperança de restaurar a ordem moral se transfigure na mais intolerável das decepções. Quando a derradeira tábua de salvação começa a nadar como um crocodilo, mostrar dentes de crocodilo e agitar o rabo como um crocodilo, o cérebro humano tende a apegar-se à idéia reconfortante de que as árvores às vezes assumem estranhas formas animais. Mas a situação do Brasil se tornou tão ameaçadora, que recuar ante as hipóteses escabrosas pode ser um meio de apressar a sua realização. Os piores instintos humanos assumem o comando justamente quando rejeitados para a escuridão do inconsciente. É melhor, pois, levar a hipótese a sério, e começar a investigá-la.

Também não há por que supor, como Reinaldo, que a notícia seja desinformação calculada para queimar a candidatura anti-Lula. Se o acordo secreto existe, e se Alckmin tomou a iniciativa de traí-lo, eis aí uma bela razão para votar em Alckmin. O princípio do ladrão que rouba ladrão vale também para o traidor paradoxal, que trai o pacto abominável dos conspiradores. Eu, que não tenho a menor apreciação pelo sr. Alckmin, confesso que, se ele fez o que Mônica Bérgamo diz que ele fez, já vejo aí um começo de motivo para admirá-lo. Num país de carneirices, pagagaiadas e macaqueações, ele terá optado por um caminho próprio, não obstante os riscos. Já não se poderá chamá-lo de “chuchu”. Ao menos do ponto de vista dos conspiradores, ele terá se transformado em pepino. Há quem goste e quem não goste de pepino. Mas ninguém dirá que é digestivamente inócuo.