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3a edi��o,
revista e aumentada.

 

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I

LANA CAPRINA,
OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA

 

NO COME�O de novembro7 estar� chegando ao Brasil o sr. Fritjof Capra, chamado pela Universidade Hol�stica de Bras�lia para falar sobre a Nova Era que ele anuncia no seu livro O Ponto de Muta��o.

A voz do sr. Capra n�o clamar� no deserto. A Universidade Hol�stica j� reuniu uma congrega��o de intelectuais locais para dizer-lhe am�m. Entre os ac�litos contam-se Frei Betto e o ex-reitor da UnB, Christovam Buarque. O sr. Capra, j� se v�, n�o � um escritor como os outros: � um l�der, uma autoridade espiritual e, admitamos logo, um profeta.

O conte�do de suas profecias � bastante conhecido: O Ponto de Muta��o anda at� nas m�os das crian�as, que o debatem nas escolas. Mas, segundo a Universidade Hol�stica, isso n�o basta. O sr. Capra tem de ser ouvido por todos os amigos da esp�cie humana. Pois, embora hom�nimo de um cineasta que se celebrizou pelas fitas de happy end, ele n�o garante nenhum final feliz para o nosso s�culo a n�o ser que a humanidade siga os seus conselhos. Passemos portanto a examin�-los, com a urg�ncia requerida pelo caso.

Segundo o sr. Capra, a hist�ria do mundo chegou a um turning point, e deve mudar o seu curso. As tr�s principais mudan�as em pauta s�o as seguintes: primeira, a humanidade deixar� de consumir combust�veis f�sseis ( petr�leo ); segunda, o patriarcado vai acabar; terceira, o paradigma cient�fico vigente ser� substitu�do por um outro, de base hol�stica. Estas tr�s coisas j� est�o acontecendo, mas, assegura o sr. Capra, urge apressar a sua consuma��o, que marcar� o advento da Nova Era.

Ao falar do primeiro item, o sr. Capra � muito breve, como conv�m aos profetas. Em vez das longas an�lises que concede aos dois outros temas, ele emite apenas esta profecia: "Esta d�cada ser� marcada pela transi��o da era do combust�vel f�ssil para uma nova era solar, acionada por energia renov�vel oriunda do Sol." Tendo o livro sido publicado em 1981, a d�cada a que o sr. Capra se refere terminou em 1990. Bem, nem todos os profetas d�o sorte. Mas, se a mencionada profecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou nove d�cadas de atraso, o sr. Capra sempre poder� alegar que S. Jo�o Evangelista tamb�m n�o foi muito preciso quanto � data do Apocalipse.

Como muitos outros profetas, o sr. Capra pode queixar-se de ser um incompreendido. Eu, por exemplo, n�o compreendo como � que o mundo poderia ter saltado direto da era dos combust�veis f�sseis para a da energia solar, sem passar pela era at�mica, na qual j� est�vamos na data de emiss�o da profecia e na qual continuamos a estar ap�s a data do seu vencimento. Mas talvez a intui��o prof�tica do sr. Capra opere � velocidade da luz, saltando etapas. Eis a� ali�s um bom motivo para saltarmos logo para o item seguinte, j� que o primeiro cap�tulo da muta��o n�o teve um happy end.

O patriarcado consiste, segundo o sr. Capra, num complexo de tr�s elementos: primeiro, o dom�nio do homem sobre a mulher; segundo, o dom�nio da esp�cie humana sobre a natureza; terceiro, o predom�nio da raz�o ( faculdade masculina ) sobre a intui��o ( feminina ). S�o tr�s lados de um fen�meno �nico, que o sr. Capra resume como a supremacia do yang sobre o yin.

�, como se v�, um tipo especial de patriarcado, bem diferente daquele que podemos encontrar nos livros de hist�ria e sociologia. Pois estes nos dizem que o aumento do poderio t�cnico sobre a natureza abalou o regime de propriedade rural no qual se esteava o patriarcado; e que o advento do Imp�rio da Raz�o, trazido no bojo da Revolu��o Francesa, promoveu logo em seguida a igualdade de direitos para homens e mulheres, desferindo o golpe de miseric�rdia na autoridade do pater familias. Em suma, que das tr�s coisas que o sr. Capra re�ne sob o r�tulo comum de "patriarcado", duas s�o precisamente o contr�rio. Mas os profetas n�o ligam para as ci�ncias profanas. Non enim cogitationes meae cogitationes vestrae, j� nos tinha advertido a B�blia. O sr. Capra, com efeito, n�o pensa como n�s.

Mas h� algo nele que pelo menos alguns de n�s podem compreender perfeitamente bem. Sendo a l�gica, no seu entender, uma express�o do abomin�vel patriarcado cujo fim ele deseja, ele n�o poderia mesmo obedec�-la sem tornar-se, ipso facto, il�gico. � ent�o por uma simples quest�o de l�gica que ele opta por ser il�gico. Qualquer beb� de colo pode compreender isto. O dif�cil � compreend�-lo quando j� n�o se � um beb� de colo. Para ser admitido nos c�us da Nova Era, o leitor deve portanto tornar-se como os pequeninos.

Eis aqui um caso t�pico. Para livrar-se do odioso patriarcado, diz o nosso profeta, a humanidade deveria inspirar-se no exemplo da civiliza��o chinesa, cuja concep��o da natureza humana, expressa sobretudo no I Ching, "est� em flagrante contraste com a da nossa cultura patriarcal". Buscando agora muni��o antipatriarcal nas p�ginas do I Ching, o leitor encontrar�, no hexagrama 37, as seguintes recomenda��es: "A esposa deve ser sempre guiada pela vontade do senhor da casa, isto �, pelo pai, pelo marido ou pelo filho adulto. O lugar dela � dentro de casa." A vida que Betty Friedan pediu a Deus. Ali�s, segundo informa Marcel Granet no cl�ssico La Civilisation Chinoise8, o feudalismo chin�s, per�odo no qual se redigiu o grosso dos coment�rios do I Ching, "repousa sobre o reconhecimento do predom�nio masculino". A China a que o sr. Capra se refere n�o deve portanto ser a mesma que os ge�grafos profanos conhecem por esse nome.

O que o sr. Capra n�o pode mesmo � ser acusado de facciosismo sin�filo. Pois, se ele rejeita a l�gica ocidental, nem por isto se curva �s exig�ncias da oriental. Segundo ele, o yang representa a raz�o anal�tica, que divide, e o yin a intui��o, que unifica. Os chineses, nada entendendo destas sutilezas, representaram o divisivo yang por um tra�o cont�nuo, e o unificante yin por um tra�o dividido ao meio. Na Nova Era, as edi��es do I Ching vir�o devidamente retificadas.

Enquanto essas edi��es n�o aparecem, o sr. Capra j� vai tratando, por conta, de introduzir no pensamento chin�s umas modifica��es mais s�rias. Ele diz, por exemplo, que na civiliza��o chinesa o homem n�o procura dominar a natureza, mas integrar-se nela. Novamente, a sabedoria chinesa do sr. Capra pegou a China desprevenida: um chin�s nem mesmo entenderia essa frase, pela raz�o de que na sua l�ngua n�o h� uma palavra que signifique "natureza" no sentido ocidental, isto �, ao mesmo tempo o mundo vis�vel e a ordem invis�vel que o governa ( ambiguidade que as l�nguas modernas herdaram do grego physis ). O chin�s � nisto, com o perd�o da palavra, mais "anal�tico": tem um termo para designar o mundo vis�vel ( khien ), e um outro ( khouen ) para a ordem invis�vel. Para compensar, o mundo vis�vel ou khien abrange, "sinteticamente", tanto a natureza terrestre quanto a sociedade humana. O sr. Capra n�o diz a qual das duas "naturezas" o homem deveria integrar-se, mas � claro que ningu�m poderia integrar-se em ambas simultaneamente e de um mesmo modo. Os antigos chineses j� haviam advertido isto, e resolveram a contradi��o propondo uma dualidade de atitudes para fazer face a esse duplo aspecto da natureza: o s�bio, diz o I Ching, deve buscar ativamente integrar-se na ordem invis�vel ou khouen ( chamada por isto "perfei��o ativa" ) e contornar suavemente as exig�ncias da natureza terrestre ( khien ou "perfei��o passiva" ). Dito de outro modo: integrar-se na ordem celeste, integrando em si e superando dialeticamente a ordem terrestre ( e portanto absorvendo-a, por sua vez, na ordem celeste ). O "celeste" e o "terrestre", nesse sentido, identificam-se respectivamente ao dharma e ao kharma da tradi��o hindu. O homem n�o se "integra" no kharma, por�m "absorve-o" na medida em que se integra no dharma: livra-se do peso da terra na medida em que atende ao apelo celeste. Exatamente no mesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence a necessidade natural na medida em que segue as vias da Provid�ncia. N�o � bem o que diz o sr. Capra.

O ideograma Wang ( "o Imperador" ) esclarece isso melhor. Ele constitui, por si, um comp�ndio de cosmologia chinesa. Comp�e-se de tr�s tra�os horizontais — o C�u em cima, a Terra em baixo, o Homem no meio, formando a tr�ade Tien-Ti-Jen, "C�u-Terra-Homem" — cortados por um tra�o vertical, o Tao, que se traduz um tanto convencionalmente por Lei ou Harmonia. A Harmonia consiste em que cada coisa fique no lugar que lhe cabe, de modo que, por tr�s de todas as mudan�as por que passa o mundo, a ordem suprema n�o seja violada ( embora neste mundo de apar�ncias ela o seja necessariamente, pois, como dizia o Evangelho, "� necess�rio que haja esc�ndalo"; mas no fim todas as desordens parciais s�o reintegradas na ordem total ).

Na Tr�ade chinesa, o homem � chamado "filho do C�u e da Terra". Sendo o C�u o pai, j� se v�, pelo hexagrama 37, quem � que manda. O homem governa portanto o mundo vis�vel, mas n�o o faz por arb�trio pr�prio, e sim em nome de uma ordem transcendente. Tien n�o significa o "c�u" no sentido material, mas a "perfei��o celeste" ou mais propriamente a "vontade do C�u"; em ingl�s, que o sr. Capra compreende melhor, n�o o sky, mas o heaven, morada do Esp�rito Santo. O s�bio ou imperador apreende no invis�vel a vontade do C�u e a p�e em execu��o na Terra. Na sala central do seu pal�cio, ele cumpre diariamente ritos de um complexo simbolismo geom�trico e numerol�gico ( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os arqu�tipos celestes "descem" ( exatamente como na missa "desce" o Esp�rito Santo ) para trazer � Terra a ordem e a harmonia. Se o imperador p�ra de fazer os ritos, a Terra — sociedade e natureza ao mesmo tempo — entra em convuls�o, espalham-se por toda parte a ignor�ncia, o medo, a viol�ncia, a fome, a peste.

N�o era s� a interrup��o dos ritos que podia trazer a cat�strofe. "O imperador — escreve Max Weber em A Religi�o da China — tinha de se conduzir segundo os imperativos �ticos das escrituras cl�ssicas. O monarca chin�s permanecia basicamente um pont�fice. Ele tinha de provar que era mesmo 'filho do C�u', o regente aprovado pelos C�us, para que o povo, sob o seu governo, vivesse bem. Se os rios arrebentavam os diques ou a chuva n�o ca�a apesar de todos os ritos, isto era prova — acreditava-se expressamente — de que o imperador n�o tinha as qualidades carism�ticas requeridas pelo C�u."

O homem governa a Terra, mas em nome do C�u. Governa como pontifex, "construtor de pontes", que liga a Terra ao C�u atrav�s do Reto Caminho, o Tao. Caso se afaste do Reto Caminho, ele perde de vista a Vontade do C�u e j� n�o pode governar sen�o em nome pr�prio, como tirano e usurpador. A�, num choque de retorno, ele perde seu poder e cai sob o dom�nio das pot�ncias terrestres que antes comandava. Como a Terra designa ao mesmo tempo a natureza f�sica e a sociedade humana, o choque pode significar tanto uma revolu��o civil ou golpe militar, quanto uma tempestade ou terremoto. O monarca que cai representa, por analogia, qualquer homem que, rompendo com a ordem celeste, perca de vista o seu destino ideal e caia presa das paix�es abissais. � a situa��o descrita no hexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: "Primeiro ele subiu ao C�u, depois mergulhou nas profundezas da Terra." O coment�rio tradicional, resumido por Richard Wilhelm, � o seguinte: "O poder da treva subiu a um posto t�o alto que pode trazer dano a quantos estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim o poder das trevas perece por sua pr�pria obscuridade."

J� se v� que o conselho do sr. Capra, afetado pela ambiguidade da palavra "natureza", pode ter dois significados opostos: com "integrar-se", pretende ele que obede�amos � Vontade do C�u ou que mergulhemos nas profundezas da Terra? As falas dos profetas, quando obscuras, merecem interpreta��o. Interpretemos.

Na vers�o do sr. Capra, o C�u n�o � mencionado. A tr�ade fica reduzida a uma dualidade: de um lado o homem, de outro a natureza vis�vel. O macho e a f�mea. O yang e o yin. A cada um s� resta a alternativa de subjugar o outro ou "integrar-se" nele. O homem da civiliza��o industrial optou pela primeira hip�tese. O sr. Capra advoga a segunda.

� verdade o que diz o sr. Capra, que a civiliza��o ocidental optou por dominar a natureza. Mas � verdade tamb�m que, desde o Renascimento ao menos, ela apagou ( exatamente como o sr. Capra ) toda refer�ncia a uma ordem transcendente ( Tien ) e deixou o homem sozinho, face a face com a natureza material. Desde ent�o a hist�ria das id�ias ocidentais tem sido marcada por uma oscila��o pendular entre as ideologias da domina��o e as ideologias da submiss�o: classicismo e romantismo, revolu��o e rea��o, historicismo e naturalismo, cientificismo e misticismo, ativismo promet�ico e evasionismo quietista, marxismo e existencialismo e, last not least, revolu��o cultural socialista versus ideologia da "Nova Era".

� neste �ltimo par de opostos que reside a chave para a compreens�o do nosso profeta. O sr. Capra acerta na mosca ( nenhum profeta pode realizar o prod�gio de errar sempre ) ao dizer que sua vis�o da hist�ria cultural � uma alternativa ao marxismo. Para Marx e seus ep�gonos, a natureza nada mais � que o cen�rio da hist�ria humana. Est� a� n�o como um ser, uma subst�ncia ontol�gica que o homem deva contemplar e respeitar em sua constitui��o objetiva, mas como mat�ria-prima a ser apropriada e transformada livremente segundo o arb�trio humano. A natureza, em Marx, � ancilla industriae. O marxismo prossegue a tradi��o de prometeanismo revolucion�rio do Renascimento, potencializando-a mediante a submiss�o completa e expl�cita da natureza � hist�ria. A isto � que se op�e a ideologia da Nova Era.

Mas ela n�o se op�e somente ao marxismo em geral, e sim a uma forma espec�fica de marxismo, que tamb�m, como ela, quis operar uma "muta��o", um giro de cento e oitenta graus na orienta��o do pensamento humano. O fundador desta corrente marxista foi o ide�logo italiano Antonio Gramsci ( 1891-1937 ). O gramscismo prop�e uma revolu��o cultural que subverta todos os crit�rios admitidos do conhecimento, instaurando em seu lugar um "historicismo absoluto", no qual a fun��o da intelig�ncia e da cultura j� n�o seja captar a verdade objetiva, mas apenas "expressar" a cren�a coletiva, colocada assim fora e acima da distin��o entre verdadeiro e falso. � a total submiss�o do "objeto" ( natureza ) ao "sujeito" ( humanidade hist�rica ). Neste novo paradigma, a �nfase da atividade cient�fica j� n�o cai no conhecimento objetivo da natureza ( descri��o exata da sua apar�ncia vis�vel e investiga��o dos princ�pios invis�veis que a governam ), mas sim na sua transforma��o pela t�cnica e pela ind�stria, a isto correspondendo, na esfera das id�ias, uma esp�cie de "revolu��o permanente" de todas as categorias de pensamento a suceder-se numa acelera��o vertiginosa do devir hist�rico.

Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Ao prometeanismo revolucion�rio, ela op�e a "integra��o na natureza"; � acelera��o da hist�ria, o equil�brio "ecol�gico" da Nova Ordem Mundial; e, ao historicismo absoluto, o "fim da Hist�ria". Capra � inconceb�vel sem Fukuyama. Capra � a casca da qual Fukuyama � o miolo. Todo o vistoso "esoterismo" da Nova Era, com suas inicia��es secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, n�o constitui sen�o o exoterismo, o aparato religioso externo e social, cujo interior, cujo "sentido esot�rico" � na verdade uma ci�ncia bem moderna, racional e profana: o planejamento estrat�gico. Fukuyama est� para Capra exatamente como o esoterismo est� para o exoterismo, como a Igreja de Jo�o est� para a Igreja de Pedro. Mas ambas, cada qual no seu plano e pelos meios que lhe s�o pr�prios, combatem um mesmo advers�rio.

O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60, inspirando a febre passageira do eurocomunismo e revigorando algumas esperan�as comunistas. No Brasil, conquistou praticamente a esquerda inteira, e o PT � um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou n�o explicitamente. Mas o intento de renova��o foi fraco e tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pela ascens�o mundial da ideologia da Nova Era. Afinal, a mistura de f�sica qu�ntica e simbolismos orientais, experi�ncias ps�quicas e sexo livre, promessas de paz e miragens de auto-realiza��o, que essa ideologia oferece, � infinitamente mais sedutora do que qualquer "historicismo absoluto". O Brasil, sempre atrasado, � um dos poucos lugares do mundo onde o combate ainda prossegue, com um feroz n�cleo de remanescentes gramscianos oferecendo uma quixotesca resist�ncia local aos ex�rcitos triunfantes da Nova Era.

Mas, se o prometeanismo revolucion�rio representou o m�ximo da hybris, da avidez dominadora do homem sobre a natureza, a ideologia da Nova Era n�o � outra coisa sen�o o choque de retorno anunciado pelo I Ching.

A Nova Era venceu a revolu��o gramsciana. Mas foi uma teratomaquia: um combate de monstros. Diriam os chineses que foi um combate suicida: que, sem a obedi�ncia comum a Tien, a luta entre Ti e Jen s� pode terminar pelo "Obscurecimento da Luz". A vit�ria da Nova Era prenuncia, portanto, o pr�ximo passo do ciclo das muta��es: a humanidade vai cair da autoglorifica��o promet�ica na passividade inerme; vai integrar-se, "ecologicamente", no equil�brio da Nova Ordem Mundial, onde o conformismo coletivo ser� assegurado mediante a justa reparti��o dos meios de satisfazer as paix�es mais baixas e mediante um arremedo de religiosidade externa que dar� a essas paix�es uma aura lisonjeira de "profundidade" e "autoconhecimento".

Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. G�rard Mendel, no seu livro La R�volte contre le P�re, uma das mais importantes contribui��es das �ltimas d�cadas � psican�lise freudiana, diz que, ao longo da hist�ria, o impulso do homem para superar o pai tem sido, como pretendia Freud, um dos mais potentes motores do progresso. Mas este impulso, prossegue ele, pode tomar duas dire��es: ou o homem supera e vence o pai carnal integrando-se na ordem racional representada pelo pai ideal, ou manda logo �s urtigas a ordem ideal para, livre de toda trava moral, matar o pai carnal e tomar posse da m�e. Esta �ltima alternativa � a revolta promet�ica, a que se segue, num choque de retorno, a queda no irracional, a regress�o uterina, a "integra��o" do homem nas trevas. Da�, segundo Mendel, a import�ncia antropol�gica, e tamb�m psicoterap�utica, das palavras da mais c�lebre ora��o crist�: a "revolta contra o pai" s� � saud�vel e frut�fera quando empreendida "em nome do Pai". Trocando em mi�dos chineses: o pai carnal �, para o homem adulto ( Jen ), nada mais que um aspecto de Ti, a Terra. � preciso submet�-lo � ordem celeste, Tien ou pai ideal, para a� ent�o poder assumir, sem usurpa��o nem viol�ncia, o governo justo e harm�nico da Terra. Sempre achei que o dr. Freud tinha algo de chin�s.

Nos termos de Mendel, a revolu��o gramsciana � a revolta destrutiva contra o pai, e a ideologia da Nova Era, com seus apelos � fus�o das consci�ncias individuais numa sopa de miragens hol�sticas, � a regress�o uterina que se lhe segue. Todas as regress�es uterinas anunciam-se pela exacerba��o da fantasia, pelo chamamento hipn�tico das esperan�as insensatas, pela antevis�o medi�nica de del�cias sem fim. Todas terminam na escravid�o abjeta, na passividade inerme ante a agress�o das for�as abissais, no obscurecimento da luz.

� inevit�vel que haja esc�ndalo. A Nova Era venceu o prometeanismo gramsciano, e sai de baixo: l� vem o hexagrama 36. There's coming a shitstorm e Fritjof Capra � o seu profeta. Mas, no fim, que por certo n�o se anuncia breve, o poder das trevas sucumbir� por for�a da sua pr�pria obscuridade.

Findo o per�odo das trevas, assegura o Apocalipse, a loucura dos novos profetas que arrastaram a humanidade ao erro ser� exibida � plena luz do dia, e todos a ver�o.

Como a Nova Era ainda mal come�ou, n�o est� na hora de fazer o show completo. Por enquanto, tudo o que se pode fazer � dar umas amostras preliminares, que atestem, para as gera��es vindouras, a realidade de um passado que lhes parecer� inveross�mil. Como disse o s�bio Richard Hooker ante o avan�o do besteirol puritano no s�c. XVI, quando tudo isto tiver passado "a posteridade poder� saber que n�o deixamos, pelo sil�ncio negligente, as coisas se passarem como num sonho".

De amostras est� cheio o livro do sr. Capra. Por�m manda a justi�a que as selecionemos segundo a grada��o de import�ncia que lhes d� o pr�prio autor. Devemos portanto agora examinar o terceiro "ponto de muta��o": a revolu��o do paradigma cient�fico.

Neste terreno o sr. Capra n�o parece estar em desvantagem como no mundo chin�s, que s� conheceu por fontes de terceira m�o. Doutor em f�sica pela Universidade de Viena, ele n�o pode ignorar a hist�ria da ci�ncia ocidental como ignora a civiliza��o chinesa. Mas quem disse que n�o pode? Aos profetas tudo � poss�vel.

Segundo o sr. Capra, "o paradigma ora em transforma��o dominou a nossa cultura por muitas centenas de anos"; ele "compreende certo n�mero de id�ias" que "incluem a cren�a de que o m�todo cient�fico � a �nica abordagem v�lida do conhecimento; a concep��o do universo como um sistema mec�nico composto de unidades materiais elementares; a concep��o da vida em sociedade como uma luta competitiva pela exist�ncia". Essas concep��es t�m os nomes respectivos de: cientificismo, mecanicismo e social-darwinismo ou darwinismo social. Repito: segundo o sr. Capra, elas dominam a nossa cultura h� muitas centenas de anos. Isto sugere duas perguntas. Primeira: Que � "dominar uma cultura?" Segunda: Quanto � "muitas centenas"?

Dizemos que uma certa id�ia domina uma cultura quando: primeiro, ela � acreditada pelos intelectuais mais importantes de todos os setores; segundo, as id�ias concorrentes ou j� n�o s�o f�rteis, quer dizer, j� n�o se expressam em obras poderosas e significativas, ou ent�o desapareceram completamente de cena. Assim, por exemplo, o cristianismo dominou a Idade M�dia porque, de um lado, todos os fil�sofos e os homens cultos em geral eram crist�os e, de outro lado, as correntes de pensamento n�o-crist�s, ainda que persistindo vivas pelo menos no subconsciente coletivo, n�o produziram nesse per�odo nenhuma obra digna de aten��o. Dizemos que o marxismo dominou a cultura sovi�tica at� a d�cada de 60 porque nesse per�odo nenhum intelectual eminente que residisse na URSS produziu nenhuma id�ia que sa�sse dos quadros conceptuais do marxismo e porque as subcorrentes n�o-marxistas ( exceto no ex�lio e em l�nguas ocidentais ) nada criaram de significativo.

Nesse sentido estrito, nenhuma das tr�s id�ias que comp�em o "paradigma dominante" jamais foi dominante em parte alguma do Ocidente. Desde que surgiram, as tr�s foram incessantemente contestadas, combatidas, refutadas, rejeitadas no todo ou em parte por intelectuais importantes. De outro lado, correntes abertamente hostis a essas id�ias continuaram f�rteis o bastante para produzir algumas das obras mais significativas de seus respectivos campos.

Vejamos o mecanicismo. Como pode ser "dominante" uma corrente que, desde seu nascimento, � rejeitada por gigantes como Leibniz, Schelling, Vico, Schopenhauer, Driesch, Fechner, Boutroux, Nietzsche, Weber, Kierkegaard e muitos outros, at� ser derrubada no s�culo XX pela teoria de Planck?

A rigor, o mecanicismo s� foi dominante, e mesmo assim com reservas, numa certa parte do mundo, que para o sr. Capra � "o" mundo: os c�rculos universit�rios anglo-sax�nicos. Que esse mundinho tradicionalmente presun�oso e seguro de si se abra hoje para novas id�ias, que se disponha at� a ouvir os orientais sem a tradicional incompreens�o colonialista, � sem d�vida uma novidade auspiciosa. Mas uma novidade local. N�o h� meio mais seguro de tornar provinciano um povo do que persuadi-lo de que ele � o centro do mundo. Desde esse momento ele declara inexistente ou irrelevante tudo o que saia do seu campo de vis�o, e quando finalmente descobre algo que todo o resto do mundo j� sabia d� a esta descoberta uns ares de revolu��o mundial.

Quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contra ele, que � perfeitamente errado consider�-lo dominante mesmo num sentido atenuado do termo. Para isto seria preciso excluir do primeiro plano da cultura o marxismo, a psican�lise, a fenomenologia, o neotomismo e o existencialismo, pelo menos. Aqui, novamente, o sr. Capra toma como mundialmente dominante a opini�o de um grupo restrito.

O darwinismo social, por sua vez, s� chegou a ser dominante, como cren�a p�blica, num �nico pa�s do mundo: nos Estados Unidos. Nunca entrou, por exemplo, nos pa�ses comunistas e no mundo isl�mico, que, somados, completam quase dois ter�os da humanidade. Nos pa�ses cat�licos, foi recebido desde logo como perversa anomalia, suscitando rea��es de esc�ndalo de que d�o testemunho as enc�clicas sociais dos papas desde pelo menos Le�o XIII.

Mas, al�m de afirmar que essas tr�s cren�as "dominam o mundo", o sr. Capra ainda assegura que o fazem "h� muitas centenas de anos". Contemos a hist�ria.

A mais velha das tr�s � o mecanicismo. Prenunciado por Descartes, foi formulado plenamente por Isaac Newton ( Princ�pios Matem�ticos da Filosofia Natural, 1687 ), mas s� se tornou conhecido da intelectualidade europ�ia em geral a partir de 1738, quando Voltaire divulgou em linguagem compreens�vel aos leigos os Elementos da Filosofia de Newton.

N�o foi s� fazendo divulga��o cient�fica que Voltaire promoveu a vit�ria de Newton. Ele tanto difamou com ironias grosseiras o principal opositor de Newton, G.-W. von Leibniz, que os contempor�neos cessaram de prestar aten��o ao que este dizia. Leibniz caiu em quase descr�dito at� o s�culo XX, quando a redescoberta de suas id�ias ocasionou avan�os prodigiosos nas matem�ticas, na l�gica e nas ci�ncias da natureza. A nova f�sica de Planck e Heisenberg veio a dar raz�o a Leibniz contra Newton, substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. Esta substitui��o poderia ter ocorrido dois s�culos antes, se Voltaire, imperador da opini�o p�blica no s�culo XVIII, n�o tivesse tecido em torno de Leibniz uma teia de preconceitos duradouros. Por ironia, Voltaire entrou para a Hist�ria como o inimigo de todo atraso e de todo preconceito.

Mas, de qualquer modo, a opini�o de Voltaire n�o se propagou com a velocidade do raio. Demorou duas ou tr�s d�cadas, pelo menos, para tornar-se cren�a dominante na Europa inteira. Por volta de l780, o mecanicismo gozava de um prest�gio invej�vel, e pode ser dito, desde ent�o, dominante, se dominante n�o quer dizer unanimemente aceito, ou aceito sem reservas. N�o se pode esquecer a oposi��o que lhe moveram o vitalismo de Goethe e Driesch, o contingencialismo de Boutroux e muitas outras correntes, at� o golpe de miseric�rdia desferido por Planck e Heisenberg.

No momento em que o sr. Capra redigia O Ponto de Muta��o, o mecanicismo estava completando portanto dois s�culos de gl�ria incessantemente contestada e de periclitante reinado sobre as fac��es majorit�rias do mundo acad�mico. Isto � bem diferente de um dom�nio de muitos s�culos sobre todo o mundo.

Quanto ao darwinismo social, � um filhote do darwinismo biol�gico e n�o poderia ter nascido antes do pai. O princ�pio da "subsist�ncia do mais apto" surgiu como uma teoria biol�gica e s� depois, aos poucos, foi se transformando num argumento ideol�gico para a legitima��o retroativa da concorr�ncia capitalista.

A Origem das Esp�cies � de 1859. Herbert Spencer, nos seus Primeiros Princ�pios, publicados em l862, amplia o alcance das id�ias evolucionistas, fazendo delas um princ�pio sociol�gico. Paralelamente, ocultistas como Allan Kardec e Madame Blavatski pegam no ar o termo "evolu��o" e lhe d�o um sentido m�stico, ou mistic�ide: j� n�o s�o somente os anf�bios que evoluem em r�pteis, e estes em mam�feros; s�o as almas desencarnadas que, no outro mundo, evoluem em "seres de luz", subindo na escala c�smica enquanto os macacos descem das �rvores. Revestida de mil e um sentidos, a palavra "evolu��o" se dissemina, e surgem os debates p�blicos, que atraem a aten��o dos intelectuais para o potencial pol�tico-ideol�gico do evolucionismo. Os debates alcan�am um auge de sucesso com a confer�ncia de Thomas Henry Huxley, "Evolu��o e �tica", em 1892. A� est� aberto o caminho para a legitima��o do capitalismo liberal pela "sobreviv�ncia do mais apto". O resto vem com os livros de Gustav Ratzenhofer ( Natureza e Finalidade da Pol�tica, 1893 ) e William G. Sumner ( Folkways, l906 ), que fundamentam explicitamente a no��o de "evolu��o social", dando aos ide�logos capitalistas o precioso slogan de que necessitavam. O darwinismo social tem, portanto, pouco mais ou pouco menos do que um s�culo. Tinha menos no momento em que o sr. Capra redigia o seu livro.

Finalmente, o cientificismo. A rejei��o formal e completa, em nome da ci�ncia, de qualquer explica��o filos�fica ou teol�gica da realidade, foi proposta, pela primeira vez, por Augusto Comte ( Discurso sobre o Esp�rito Positivo, l844 ). Mas Comte ainda reservava para a filosofia a tarefa de s�ntese e ordena��o do conhecimento cient�fico, e Comte s� foi aceito sem contesta��o num �nico lugar deste planeta: no Brasil! ( Em 1914, o positivista Alain atribu�a a guerra mundial ao fato de nenhum outro pa�s do globo haver seguido o exemplo do Brasil, que adotara na bandeira republicana o positivismo como doutrina oficial do Estado: Ordem e Progresso �, com efeito, o resumo da filosofia comtiana. ) Uma declara��o formal e taxativa de cientificismo, com a completa demiss�o de todas as demais formas de conhecimento como vazias ou insignificantes, s� veio mesmo em 1934, com Rudolf Carnap, em Sintaxe L�gica da Linguagem. Mas Carnap n�o era nenhum Voltaire, para contar com a imediata aprova��o de um vasto p�blico. A maioria dos fil�sofos do s�culo XX rejeitou categoricamente o cientificismo, que s� exerceu dom�nio sobre grupos determinados, principalmente no mundo anglo-sax�o. Contemporaneamente � declara��o de Carnap, o matem�tico e fil�sofo Edmund Husserl, fundador da fenomenologia — escola que iria gerar Heidegger, Scheler, Hartmann, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros —, fazia na Universidade de Praga as c�lebres confer�ncias depois reunidas no livro A Crise das Ci�ncias Europ�ias, em que negava o cientificismo pela base e desde dentro: as ci�ncias f�sicas, dizia ele, haviam perdido o seu essencial fundamento cient�fico e j� n�o serviam como modelo de conhecimento da realidade. Husserl era e � pelo menos t�o influente quanto Carnap, embora n�o tanto no mundo anglo-sax�nico que � o limite do horizonte mental do sr. Capra.

Em suma, o cientificismo, que "domina a nossa cultura desde h� s�culos", est� completando sessenta primaveras neste ano de 1994. Mas, para c�mulo, sua primeira manifesta��o ostensiva j� foi posterior, de tr�s d�cadas, � publica��o dos primeiros trabalhos de Max Planck, cujo indeterminismo viria a ser uma das bases do "novo paradigma" cujo advento o sr. Capra veio agora nos anunciar. O novo paradigma � um tanto anterior ao velho.

O sr. Capra, como se v�, pouco entende dos assuntos em que exerce, para um p�blico multitudin�rio, uma autoridade prof�tica. Ele prima pela car�ncia de informa��o elementar sobre a cosmologia chinesa, na qual diz basear sua vis�o da hist�ria cultural, bem como sobre a hist�ria cultural mesma, que ele procura, mediante generaliza��es grosseiras, e escandalosas altera��es da cronologia, encaixar � for�a num modelo preconcebido.

N�o questiono, aqui, a validade da proposta hol�stica em geral. Reservo-me o direito de faz�-lo num outro trabalho. Apenas creio que ela deve ter defensores um pouco mais qualificados do que o sr. Capra.

Meu prop�sito foi dar um testemunho sobre um fato de relev�ncia mundial, que acontece bem diante das nossas barbas, e de cuja realidade as gera��es vindouras ter�o o direito de duvidar. Pois, para a raz�o e o bom-senso, n�o � veross�mil que milhares de intelectuais de prest�gio, em seu ju�zo perfeito, possam aceitar e aplaudir como um marco da hist�ria do pensamento uma obra como O Ponto de Muta��o, que n�o atende sequer aos requisitos m�nimos de informa��o fidedigna, de autenticidade das fontes e de rigor conceptual que se exigem de uma tese de mestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livro pode ter, este padece do �nico que n�o se pode tolerar em hip�tese alguma: a ignoratio elenchi, a ignor�ncia completa do assunto. O sr. Capra define o seu livro, pretensiosamente, como um novo modelo de hist�ria cultural baseado nas concep��es chinesas do homem e do universo. Mas ele n�o estudou o suficiente nem a hist�ria cultural nem as concep��es chinesas para que sua opini�o a respeito possa ter qualquer import�ncia objetiva, fora do seu c�rculo de conviv�ncia pessoal. O conte�do de sua propalada sabedoria do assunto � pura lana caprina.

O sucesso deste livro s� pode ser explicado por um �nico fator, inteiramente alheio ao seu valor intr�nseco: sua oportunidade. Ele diz o que as pessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam. Ele oferece uma perspectiva sedutora a um p�blico que pede para ser seduzido.

Que esse p�blico n�o inclua somente populares incultos, mas intelectuais de proje��o, e que estes se prontifiquem a aceitar as promessas do autor sem pedir-lhe sequer as credenciais cient�ficas que se exigem de um estudante de faculdade, � realmente um acontecimento inveross�mil.

Mas, dizia Arist�teles, n�o � mesmo veross�mil que tudo sempre se passe de maneira veross�mil. O inveross�mil aconteceu. Ele atesta que, ap�s s�culos de f�ria iconocl�stica voltada contra todas as cren�as do passado e os valores de outras civiliza��es, a opini�o letrada do Ocidente enfim se cansou de ser arrogante; mas, em vez de um arrependimento sincero, est� encenando diante de n�s um arremedo de convers�o, que deixa � mostra todas as marcas do fingimento histeriforme. Estonteada pela vis�o s�bita de suas pr�prias culpas, ela abjurou de toda precau��o cr�tica como quem repele um v�cio do passado; e entregou-se, inerme e cr�dula, ao culto do primeiro �dolo que lhe ofereceu uma promessa de al�vio. Ela pensa ou finge pensar que esse �dolo � o seu salvador. Na verdade � a sua N�mesis.

Mas n�o � s� ela que est� enganada. O profeta do engano tamb�m se engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a confus�o. Imagina trazer uma nova profecia, quando traz o cumprimento de uma velha maldi��o.

Mas n�o posso encerrar estas considera��es sobre o profeta da Nova Era sem fazer, tamb�m eu, uma profecia: nos s�culos vindouros, quando puderem encarar o nosso tempo com alguma objetividade, o fen�meno da Nova Era ser� considerado um esc�ndalo que dep�e contra a intelig�ncia humana.

� for�oso que venha o esc�ndalo. Nada se pode fazer para evit�-lo. Nem mesmo vou sugerir, como Jesus, que se amarre ao seu portador uma pesada pedra, para jog�-lo ao fundo do mar. Pois, como diria o hexagrama 36, ele j� est� no fundo. Tudo o que posso fazer � deixar � posteridade, se vier a ter not�cia destas p�ginas, um testemunho pessoal destes tempos obscuros: Nem todos, nem todos acreditaram no falso profeta9.

 

Adendo

H� no livro do sr. Capra uma infinidade de erros e contra-sensos, al�m dos mencionados. Apont�-los e corrigi-los todos requereria um volumoso coment�rio: uma lei constitutiva da mente humana concede ao erro o privil�gio de poder ser mais breve do que a sua retifica��o.

Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o leitor veja quanto um erro nas premissas pode ser f�rtil em consequ�ncias:

l. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear, mesmo para fins pac�ficos, mas, ao mesmo tempo, faz da f�sica moderna um dos fundamentos do "novo paradigma" que prop�e. Ele separa a f�sica enquanto modalidade de conhecimento te�rico e a natureza das suas aplica��es pr�ticas, como se uma n�o decorresse da outra necessariamente.

O sr. Capra �, nisto, perfeitamente inconsequente com o m�todo hol�stico que advoga. Para o holismo, toda separa��o estanque entre uma id�ia e suas manifesta��es pr�ticas � nada mais que um abstratismo. Holisticamente falando, o efeito ben�fico ou destrutivo dos engenhos nucleares tem de estar arraigado no pr�prio modus cognoscendi que os produziu. Se o sr. Capra enxerga liga��es at� mesmo entre o mecanicismo e a estrutura da fam�lia patriarcal, como pode ser cego para as rela��es, muito mais pr�ximas, entre o conte�do teor�tico de uma ci�ncia e suas aplica��es pr�ticas?

2. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalho entr�pico ( trabalho repetitivo que n�o deixa efeitos duradouros, como por exemplo cozinhar um jantar que ser� consumido imediatamente ) � desvalorizado, e por isto � atribu�do �s mulheres e aos grupos minorit�rios. Esta desvaloriza��o, diz ele, � t�pica da sociedade industrial.

Nesse caso, dever�amos considerar sociedades industriais as tribos do Alto Xingu, as cidades-Estado da antiga Gr�cia, a sociedade europ�ia da Idade M�dia. N�o existiu jamais uma sociedade em que os servi�os entr�picos fossem mais valorizados que os outros.

Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele d� como exemplos os mosteiros de monges budistas e crist�os, onde cozinhar � uma honra e limpar as privadas um m�rito invej�vel. Ser� preciso explicar ao sr. Capra que uma ordem mon�stica n�o constitui uma "sociedade", mas uma comunidade minorit�ria que pressup�e em torno a exist�ncia de uma sociedade a cujos valores possa se opor? Se, dentro de um mosteiro, o trabalho entr�pico tem valor, � justamente porque n�o o tem na sociedade maior em torno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro um valor espiritual e disciplinar justamente na medida em que no "mundo" t�m pouco prest�gio social ou valor econ�mico. A desvaloriza��o social do trabalho entr�pico n�o � caracter�stica da sociedade industrial, mas da sociedade humana em geral; inversamente, a sua valoriza��o espiritual � um tra�o distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas em alguma forma de rejei��o religiosa do "mundo".

3. "Tradi��es como o vedanta, a ioga, o budismo e o taoismo assemelham-se muito mais a psicoterapias do que a filosofias ou religi�es", diz o sr. Capra. Bem, se h� um tra�o caracter�stico do Ocidente moderno, que o distingue radicalmente das tradi��es orientais, � justamente o desenvolvimento, nele, de uma psicologia como ci�ncia independente de qualquer refer�ncia m�stica ou religiosa; e, em decorr�ncia, o esfor�o para dar uma explica��o "psicol�gica" de todos os fen�menos espirituais. Ao englobar as tradi��es espirituais do Oriente no conceito de "psicoterapia", o sr. Capra mostra a t�pica incapacidade do cientificista moderno para apreender tudo quanto h� nelas de puramente metaf�sico e n�o-psicol�gico.

Dizer, ademais, que essas tradi��es "se baseiam no conhecimento emp�rico e, assim, apresentam mais afinidades com a ci�ncia moderna" � pretender enquadrar � for�a as id�ias orientais numa moldura ocidental e moderna, para torn�-las aceit�veis ao provincianismo acad�mico. Acontece que, nessa opera��o, tudo que h� nelas de essencialmente oriental se perde por completo. O vedanta, por exemplo, afirma categoricamente que a experi�ncia n�o pode trazer conhecimento espiritual de esp�cie alguma, e esta afirma��o � mesmo um dos pontos basilares da doutrina, que o sr. Capra parece desconhecer completamente: toda experi�ncia � a��o, e a a��o, n�o sendo o contr�rio da ignor�ncia, n�o pode destru�-la ( cf. Brihadaranyaka Upanishad, livro 10 ).

Por esse exemplo, v�-se que o sr. Capra est� muito mais preso a esquemas mentais de acad�mico ocidental m�dio do que desejaria deixar transparecer. Algu�m mais pr�ximo da perspectiva oriental jamais procuraria explicar as doutrinas sapienciais da �ndia ou da China � luz da moderna psicologia ocidental, mas, ao contr�rio, emitiria sobre esta, em nome delas, um julgamento bastante severo ( v., por exemplo, Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, New York, l970, ou Titus Burckhardt, Scienza Moderna e Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).

4. Ap�s real�ar o sentido hol�stico das concep��es fisiol�gicas de Hip�crates, o sr. Capra insinua que esse sentido desapareceu completamente da medicina ocidental e agora temos de ir busc�-lo na tradi��o chinesa: "A no��o chinesa do corpo como um sistema indivis�vel de componentes inter-relacionados est� muito mais pr�xima da moderna abordagem sist�mica do que do modelo cartesiano cl�ssico." Se o sr. Capra n�o seguisse o h�bito ocidental moderno de saltar direto do pensamento grego para o Renascimento, teria reparado que a mesma concep��o hol�stica domina todo o pensamento m�dico e biol�gico do Ocidente medieval, com destaque para Sto. Alberto Magno e Roger Bacon. Na verdade, as concep��es chinesas s�o muito mais parecidas com as da Idade M�dia que com a "moderna abordagem sist�mica".

5. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr. Capra diz que, segundo este eminente psiquiatra, as neuroses s�o tipos simb�licos de comportamento que "representam as defesas da pessoa contra a excessiva dor associada a traumas de inf�ncia". Quem quer que tenha lido Janov sabe que, na teoria deste, a etiologia das neuroses n�o � de ordem traum�tica, mas reside na frustra��o constante e habitual de necessidades b�sicas, frustra��o que �s vezes n�o � sequer percebida no n�vel consciente. Um trauma, na psicopatologia de Janov, nada mais � que um fator superveniente. A minimiza��o da import�ncia etiol�gica dos traumas � justamente o que singulariza o sistema de Janov. Embora conhecendo o assunto de orelhada, o sr. Capra n�o se inibe de opinar a respeito com ar professoral: "O sistema conceitual de Janov n�o � suficientemente amplo para explicar experi�ncias transpessoais..." O que certamente n�o � amplo � o conhecimento que o sr. Capra tem do sistema de Janov.

 

Sugest�es de Leitura

Al�m das obras citadas no texto, o leitor poder� consultar com proveito as seguintes:

l. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informa��o s�ria a respeito, sem aberra��es caprinas e com mais ensinamento valioso, leia o livro de Jo�l de Rosnay, Le Macroscope. Vers une Vision Globale ( Paris, Le Seuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT e trabalha no Instituto Pasteur de Paris. � interessante ler tamb�m as obras de Edgar Morin, que foi ali�s quem lan�ou a express�o "novo paradigma". V. especialmente La M�thode, em dois tomos ( I, La Nature de la Nature, Paris, Le Seuil, l977; II, La Vie de la Vie, id., 1980 ).

2. O I Ching tem tr�s tradu��es ocidentais famosas: a de James Legge ( vers�o brasileira de E. Peixoto de Souza e Maria Judith Martins, S�o Paulo, Hemus, l972 ), a de Richard Wilhelm ( vers�o inglesa de Cary F. Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l, v�rias reedi��es; vers�o brasileira de Lya Luft e Alayde Mutzembecher, S�o Paulo, Nova Acr�pole ), e a de P.-L. F. Philastre: Le Yi:King. Livre des Changements de la Dynastie des Tsheou. Annales du Mus�e Guimet, t. huiti�me, 2 vols. ( Paris, Adrien Maisonneuve, l975 ). Um estudo s�rio do assunto requer o exame das tr�s. A de Wilhelm � mais did�tica e f�cil de consultar. Legge enfatiza muito as liga��es estruturais entre as partes e abre para um estudo mais aprofundado. Das tr�s a de Philastre � de longe a mais interessante, pois � a �nica que transcreve integralmente e pela ordem as glosas das dez "gera��es" de comentaristas chineses.

3. Sobre os s�mbolos da tradi��o chinesa, v. o livro cl�ssico de Ren� Gu�non, La Grande Triade ( Paris, Gallimard, 1957 ). Conv�m recorrer ainda, quanto aos ideogramas, � obra monumental do Pe. L. Wieger, Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History, Classification and Signification. A Thorough Study from Chinese Documents, transl. by L. Davrout, s. j. ( New York, Dover, 1965; a primeira edi��o � de 1915 ).

4. Sobre o pensamento chin�s � ainda indispens�vel, a quem deseje aprofundar o assunto, estudar: quanto �s concep��es cosmol�gicas, Marcel Granet, La Pens�e Chinoise ( Paris, Albin Michel, l968 ) e La R�ligion des Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto �s institui��es e ao governo, Granet, La Civilisation Chinoise ( Paris, La Renaissance du Livre, 1929 ). Sobre a moral, o direito e as classes sociais, Max Weber, The Religion of China, transl. by H. H. Gerth and C. Wright Mills ( New York, The Free Press, 195l ).

5. Um "novo modelo de hist�ria cultural" baseado em concep��es orientais � algo que j� estava realizado pelo menos desde l945, em Le R�gne de la Quantit� et les Signes des Temps, de Ren� Gu�non ( Paris, Gallimard ). Um monumento de sabedoria.

6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: Jos� Ortega y Gasset, La Idea de Principio en Leibniz y la Evoluci�n de la Teor�a Deductiva ( em Obras Completas, t. 8, Madrid, Alianza, 1983 ); Paul Hazard, La Crise de la Conscience Europ�enne 1660-1715 ( Paris, Gallimard, 1961 ); Edwin A. Burtt, As Bases Metaf�sicas da Ci�ncia Moderna, trad. Jos� Viegas Filho e Orlando Ara�jo Henriques ( Bras�lia, UnB, 1983 ).

 

NOTAS

  1. Escrito em setembro de 1993. Voltar
  2. Livro I, Cap. III. Voltar
  3. Tendo enviado a Frei Betto uma c�pia deste cap�tulo antes de sua publica��o em livro, recebi dele uma resposta em duas linhas, que � um singular documento psicol�gico. Ela diz: "Apesar das suas reservas, o evento [ NB: recep��o ao sr. Capra ] foi bom para quem l� esteve." Deve ter sido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustre frade n�o me compreendeu. Longe de mim depreciar o evento em si — a organiza��o do programa, o servi�o de som ou o tempero dos salgadinhos. O que eu disse que n�o presta � a filosofia do sr. Capra, subentendendo que celebr�-la num congresso de intelectuais � jogar dinheiro fora; e quanto melhor o evento, mais lament�vel o desperd�cio. Caso, por�m, o missivista tenha pretendido alegar a qualidade do evento como um argumento em favor do sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que o pre�o da vela prova a qualidade do defunto. Al�m disso, que opini�o se poderia ter de um pensador que argumentasse em favor de uma filosofia mediante a alega��o de que ela lhe d� a oportunidade de freq�entar lugares agrad�veis? [ N. da 2� ed. ] Voltar
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