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Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 18

 

O Anti-Gramsci ~ 1

Introdu��o � Filosofia pelo M�todo Cr�tico-Dial�tico

 

Nota Pr�via

No Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1999, prometi aos leitores fazer um coment�rio extensivo dos escritos de Ant�nio Gramsci, publicando-o � medida que fossem saindo os volumes da edi��o nova e completa anunciada pela Record.

Como, por�m, o organizador da cole��o � o mesmo da velha (publicada pela Civiliza��o Brasileira a partir de 1967) e no tocante aos livros que j� sa�ram nesta �ltima n�o � prov�vel que se fa�am grandes altera��es nos textos, n�o h� necessidade de esperar que saia o primeiro volume para iniciar a reda��o dos coment�rios, que posso muito bem ir fazendo com base na edi��o antiga, pronto a corrigir algum detalhe se mais tarde se revelar que o texto da Record traz novidades.

O m�todo a seguir ser� o coment�rio linear, t�o meticuloso quanto poss�vel, recapitulado, de tempos em tempos, sob a forma de s�nteses parciais, at� o amargo fim.

Como ningu�m duvida de que, do ponto de vista das bases gnoseol�gicas do seu sistema, o escrito mais decisivo de Antonio Gramsci � Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, e como este foi ali�s o primeiro deles a ser publicado no Brasil (sob o t�tulo Concep��o Dial�tica da Hist�ria, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio, Civiliza��o Brasileira, 1967, v�rias reedi��es)1, � por a� mesmo que vou come�ar.

Como estes coment�rios ir�o sendo divulgados pela internet � medida que se componham, e como � prov�vel que os leitores lhes interponham de tempos em tempos perguntas e obje��es, vou-me permitir interromper quando necess�rio o curso da exposi��o central para fornecer as respostas cab�veis - o que dar� a este escrito o estilo movimentado de uma exposi��o em classe.

J� que muitos leitores vinham me pedindo algo como um curso de filosofia online, eis aqui a oportunidade de atender � sua demanda, e de faz�-lo de uma forma que ser� praticamente id�ntica � de meus cursos "ao vivo", nos quais, exatamente como aqui, prefiro, � exposi��o tratad�stica e sistem�tica, para a qual n�o tenho o menor talento, a abordagem dial�tica e cr�tica ao fio dos coment�rios a algum texto amado ou execrado. (Amado ou execrado, sim, porque, quando n�o resulta de um preconceito e sim das conclus�es de um longo exame, a firme ades�o ou repulsa moral, longe de obscurecer a vis�o objetiva das coisas, � a condi��o mesma da confiabilidade do conhecimento, se por conhecimento se entende n�o a simples vis�o, mas a vis�o com forma, medida e senso das propor��es.)

Ademais, a discuss�o de Gramsci nos dar�, de passagem, a ocasi�o de tocar em todos ou quase todos os pontos essenciais da problem�tica filos�fica, de modo que estas li��es perfar�o, no fim das contas, um curso de introdu��o � filosofia com todas - ou quase todas - as exig�ncias de praxe.

Olavo de Carvalho

10/12/99

 

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Parte I. ~ Coment�rios a
Il Materialismo Storico e la Filosofia
di Benedetto Croce

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Li��o 1. - Introdu��o. - De como a filosofia parece f�cil aos olhos de quem n�o sabe (ou finge n�o saber) o que ela �.

 

� 1. Minha atitude pessoal perante o objeto destas li��es

 

"Gramsci inspira respeito at� mesmo aos seus mais encarni�ados advers�rios", afirmam Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder na nota introdut�ria � sua edi��o de Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce (A Concep��o Dial�tica da Hist�ria, Rio, Civiliza��o Brasileira, 6� ed., 1986), a primeira obra de Gramsci publicada no Brasil.

H� de fato um certo tipo de liberal progressista que tem, pelos intelectuais comunistas bem falantes, at� mais que respeito: tem uma atra��o m�rbida bastante masoquista. Dostoi�vski retratou definitivamente o tipo em Os Dem�nios no personagem de Verkhovenski S�nior, o devoto da liberdade, da fraternidade e da igualdade, fazendo dele, simbolicamente, o pai carnal do cruel revolucion�rio que, para fomentar a revolta popular, n�o hesita em atear fogo a um bairro pobre da cidade. Mas Verkhovenski, no final do romance, percebendo na desgra�a do povo a conseq��ncia l�gica da aplica��o de seus lindos ideais abstratos, tem ao menos a dignidade de ficar louco, e na sua loucura, como um novo Lear, admitir por fim a verdade longamente escamoteada.

Como � maioria dos idealistas falta completamente a lucidez que in extremis assume a responsabilidade pelas conseq��ncias imprevistas de suas palavras, n�o � de estranhar que mesmo entre seus advers�rios Gramsci "inspire respeito".

Quanto a mim, digo o seguinte: se h� algo que Gramsci n�o me inspira de maneira alguma, � respeito. Pode me inspirar espanto, repugn�ncia, piedade, at� mesmo hilaridade, embora seja pecado rir da desgra�a alheia. Respeito, n�o. A falsidade da doutrina gramsciana n�o nasce de simples erros ou preconceitos parciais sobre um fundo de aut�ntico esp�rito filos�fico e amor � verdade. Ela decorre de um desvio fatal do esp�rito, de uma op��o tenaz pelo engano, que vicia todo o conjunto do seu pensamento. Enquanto a maioria dos fil�sofos vislumbra alguma verdade essencial e depois tira dela algumas conseq��ncias inaceit�veis, Gramsci se compromete desde o in�cio com um erro essencial que contamina e deforma com uma perspectiva falsa at� mesmo as in�meras verdades de detalhe que ele apreende sobre mil e um assuntos. Em psicopatologia, esse fen�meno chama-se del�rio de interpreta��o: por mais informa��es verdadeiras que entrem no quadro, a falsidade da perspectiva as deforma de tal modo que, no fim, nada se salva. Se Gramsci fosse louco - e �s vezes, cum grano salis, digo que � -, sua doen�a se deixaria facilmente identificar como del�rio de interpreta��o, mais ou menos como no caso de Rousseau, mentiroso patol�gico que tinha o dom de se persuadir das pr�prias mentiras at� torn�-las veross�meis aos olhos do leitor. Mas Gramsci n�o era um doente da alma, como o pauvre Jean-Jacques. Era simplesmente um homem hostil � verdade onde quer que ela aparecesse e sob qualquer forma que se apresentasse. Era um esp�rito comprometido de maneira essencial e visceral com a paix�o - talvez a mais violenta e arrebatadora de quantas existem - de trocar o verdadeiro pelo veross�mil, de preferir ao aut�ntico o simulacro, at� o ponto de fazer da simula��o e da pantomima o princ�pio mesmo da Hist�ria e do mundo. Por isto as explica��es psicopatol�gicas falham, irremediavelmente, no seu caso. � preciso subir �s alturas da teologia para dar conta de fen�meno t�o espantoso. Jesus dizia: "V�s sois deuses", enquanto a serpente, no Para�so, prometia: "Sereis como deuses." A doutrina de Antonio Gramsci advoga a universal e irrecorr�vel substitui��o da verdade por algo como a verdade. Essa conduta assinala precisamente aquilo que, na teologia crist� como na isl�mica, � o pecado contra o Esp�rito Santo, o obstinado e consciente desprezo da verdade - o �nico pecado que a Gra�a n�o pode perdoar, nem neste mundo nem no outro. Tamanho delito n�o se pode imputar nem mesmo a Karl Marx ou a L�nin, talvez nem sequer a Josef St�lin. No Ju�zo Final, Jesus ter� um olhar de miseric�rdia mesmo para os tiranos e genocidas. Mas �queles que conscientemente desprezaram a verdade, Ele dir� apenas: "N�o vos conhe�o."

"Respeito" vem de re-spicere, que sugere a id�ia de olhar o mesmo objeto duas vezes e reconhec�-lo. Aquele a quem nem o pr�prio Deus reconhece n�o pode, por defini��o, ser objeto de respeito, exceto se por "respeito" se entende o impulso servil que leva as almas d�beis, como a de Verkhovenski, a se prosternar ante os que mentem com for�a. � algo como a "s�ndrome de Estocolmo" ou a atra��o ex post facto da estuprada pelo estuprador.

Nada atesta com mais evid�ncia a fragilidade da maior parte dos ide�logos democr�ticos do que o fato de que tantos deles, mesmo abominando a doutrina de Gramsci, cedam � tenta��o de "respeitar" o seu autor.

Que, ao longo dos coment�rios que vou tecer sobre a doutrina de Gramsci, Deus me preserve desse pecado.

 

� 2. Fil�sofos e fil�sofos

 

Come�o pelo come�o. O come�o, o primeiro par�grafo de Gramsci que apareceu em portugu�s, � t�o significativo que a edi��o hagiogr�fica do suplemento Mais! da Folha de S�o Paulo dedicado a Antonio Gramsci (21 de novembro de 1999) o escolheu, muito bem, como amostra caracter�stica do pensamento do fundador do Partido Comunista Italiano.

Esse par�grafo cont�m, a um tempo, a concep��o gramsciana da filosofia, a no��o essencial de "senso comum" e a declara��o de objetivos de todo o esfor�o intelectual de Antonio Gramsci.

Analisando-o entramos portanto, desde logo, no centro do problema ou, melhor dizendo, na toca do drag�o:

"� preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia � algo muito dif�cil pelo fato de ser a atividade intelectual pr�pria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de fil�sofos profissionais e sistem�ticos. � preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens s�o "fil�sofos", definindo os limites e as caracter�sticas desta "filosofia espont�nea", peculiar a "todo o mundo", isto �, da filosofia que est� contida: 1) na pr�pria linguagem, que � um conjunto de no��es e de conceitos determinados e n�o, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conte�do; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religi�o popular e, consequentemente, em todo o sistema de cren�as, supersti��es, opini�es, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por "folclore".

Ap�s demonstrar que todos s�o fil�sofos, ainda que a seu modo, inconscientemente - j� que, at� mesmo na mais simples manifesta��o de uma atividade intelectual qualquer, na "linguagem", est� contida uma determinada concep��o do mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da cr�tica e da consci�ncia, ou seja, ao seguinte problema: � prefer�vel "pensar" sem disto ter consci�ncia cr�tica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto �, "participar" de uma concep��o do mundo "imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos est�o automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a pr�pria aldeia ou a prov�ncia, pode se originar na par�quia e na "atividade intelectual" do vig�rio ou do velho patriarca, cuja "sabedoria" dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela pr�pria estupidez e pela impot�ncia para a a��o), ou � prefer�vel elaborar a pr�pria concep��o do mundo de uma maneira consciente e cr�tica e, portanto, em liga��o com este trabalho do pr�prio c�rebro, escolher a pr�pria esfera de atividade, participar ativamente na produ��o da hist�ria do mundo, ser o guia de si mesmo e n�o mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da pr�pria personalidade?" 2

Nesse trecho c�lebre, Gramsci d� uma exibi��o de incultura filos�fica, incompreens�o do assunto e solipsismo adolescente ansioso de fazer das suas pr�prias limita��es pessoais a medida m�xima do universo filos�fico.

Ele a� busca persuadir-nos de que a pr�tica da filosofia � coisa f�cil porque, entre a filosofia espont�nea do homem comum e a filosofia dos fil�sofos n�o h� diferen�a essencial e qualitativa, mas apenas acidental e quantitativa: a filosofia dos fil�sofos � o mesmo sistema de cren�as dos homens comuns, apenas dotado de mais coer�ncia, mais homogeneidade, mais l�gica.

Gramsci n�o concebe a� sen�o dois tipos de "fil�sofos": o profissional especializado e o "homem comum" - aquele que filosofa ex officio e aquele que filosofa sem saber que o faz.

Para perceber o quanto essa distin��o � perif�rica e posti�a, basta notar que o pr�ncipe mesmo dos fil�sofos, S�crates, n�o se enquadra em nenhuma dessas categorias, como tamb�m a� n�o cabem Tales e Her�clito, Epicteto e Agostinho e uma infinidade de outros. N�o s�o profissionais especializados nem filosofantes inconscientes.

A quem quer que examine uma amostragem significativa dos fil�sofos de todas as �pocas, uma coisa que salta aos olhos � a absoluta impossibilidade de localiz�-los numa categoria social determinada. A filosofia parece ser compat�vel com todas as posi��es de classe, com todas as condi��es profissionais e econ�micas. S�crates era um empreiteiro aposentado, Plat�o um aristocrata, Arist�teles um filho de funcion�rio p�blico, Epicteto um escravo. Descartes era militar, Bacon juiz de direito, Espinosa t�cnico em fabrica��o de lentes, Leibniz diplomata, Vico mestre-escola, Marx jornalista e, last not least, Gramsci oper�rio e depois agitador profissional. Fil�sofos profissionais universit�rios s� predominam em curtos per�odos, como na escol�stica, no idealismo alem�o e, em geral, na Europa moderna depois da reforma do ensino por Victor Cousin.

Os fil�sofos ex professo n�o s�o, em suma, uma categoria identific�vel sociologicamente.

A id�ia de que os fil�sofos sejam uma categoria profissional � parte � apenas uma cren�a popular moderna e bem artificial. Gramsci acredita, por�m, que, contestando-a, eliminar� toda distin��o essencial entre filosofia e cren�a popular.

Ora, essa distin��o existia e era bem conhecida muito antes que a mencionada cren�a aparecesse e se tornasse "senso comum" no s�culo XIX, ap�s a reforma de Victor Cousin que fez da filosofia a profiss�o universit�ria que hoje conhecemos. H� um perfeito non sequitur, que Gramsci nem de longe percebe, entre a contesta��o da cren�a e a nega��o da distin��o essencial. Ele cr� ingenuamente poder deduzir uma coisa da outra (porque imagina que, discutindo com o senso comum do seu tempo, est� discutindo com toda a tradi��o filos�fica3).

Mas, se os fil�sofos n�o se distinguem dos n�o-fil�sofos sociologicamente, que � que os distingue ent�o? � manifestamente uma diferen�a de atitude subjetiva: �, precisamente, o fato de que filosofam de maneira consciente e volunt�ria, pouco importando que o fa�am no quadro de uma atividade profissional ou nos lazeres de uma vida de "cidad�os comuns".

Se no entender de Gramsci todos os homens filosofam inconscientemente, e alguns conscientemente, o fato de que ele designe os primeiros como "fil�sofos", entre eloq�entes aspas, significa que ele pr�prio reconhece que s� s�o fil�sofos secundum quid, isto �, sob certo aspecto, e n�o fil�sofos em toda a extens�o do termo. Eles s� filosofam de maneira passiva, imitativa e mec�nica, "participando de uma concep��o do mundo 'imposta' pelo ambiente exterior". Ora, a filosofia � precisamente a atividade que reage criticamente a essa concep��o e, por um esfor�o volunt�rio de giro da aten��o, problematiza justamente aquilo que a concep��o 'imposta' toma implicitamente, ou mesmo inconscientemente, por l�quido e certo.

Chamar "filosofia" a essas duas atitudes �, propositadamente, confundir filosofia e cosmovis�o. Cosmovis�o � precisamente o sistema - por mais an�rquico e incoerente - de cren�as, h�bitos e rea��es embutido, como frisa o pr�prio Gramsci, na linguagem, no "senso comum"4 e na "religi�o popular". Uma cosmovis�o, ainda que impl�cita e inconsciente, todo mundo tem. A filosofia come�a quando o homem reflete criticamente sobre sua pr�pria cosmovis�o, coisa que seria imposs�vel fazer de maneira inconsciente.

Que a passagem de cren�a passiva � de reflex�o cr�tica seja coisa f�cil, eis o que � desmentido, desde logo, pela escassez de fil�sofos na massa dos homens comuns, e, enfim, pela pr�pria �ndole da atitude filos�fica, que uma vez adotada isola um homem de seus semelhantes ao ponto de fazer dele um tipo estranho e muitas vezes socialmente inassimil�vel.

A atitude filos�fica e a do "senso comum" diferem sob v�rios aspectos, mesmo quando t�m diante do foco da consci�ncia os mesm�ssimos assuntos.

A tradi��o filos�fica sempre enxergou a ess�ncia da filosofia precisamente na sua distin��o da simples cosmovis�o, distin��o que corresponde, mutatis mutandis, � do individual e do coletivo5, � da contempla��o e da a��o6, � da atitude "natural" e da "reflexiva"7, etc. S�o tantas as diferen�as que, ao longo dos tempos, os fil�sofos se exercitaram em destacar ora uma, ora outra, sem que entre essas v�rias abordagens exista contradi��o, sen�o complementaridade. O pr�prio Karl Marx, ao afirmar que "os fil�sofos, at� agora, se limitaram a interpretar o mundo, mas o que interessa � transform�-lo", estabeleceu uma linha demarcat�ria que coincide com a da tradi��o, apenas fazendo um apelo a que seus leitores ultrapassassem o c�rculo da filosofia para entrar no territ�rio mais vasto da a��o hist�rica. Gramsci, ao contr�rio, enfatiza a continuidade e identidade de filosofia e cosmovis�o, dissolvendo nesta a especificidade da atitude filos�fica. Ele chega mesmo a afirmar, mais adiante, que, "entre os fil�sofos profissionais ou 't�cnicos' e os outros homens n�o existe diferen�a 'qualitativa', mas apenas 'quantitativa'". E, embora admita que "neste caso, 'quantidade' tem um significado bastante particular, que n�o pode ser confundido com soma aritm�tica, porque indica maior ou menor 'homogeneidade', 'coer�ncia', 'logicidade', etc., isto �, quantidade de elementos qualitativos"8, de pouco vale esta ressalva, na medida em que os elementos qualitativos citados se reduzem �s qualidades puramente formais - e at� matematiz�veis - do racioc�nio filos�fico: homogeneidade, coer�ncia, logicidade, etc.

A filosofia reduz-se, enfim, � mera formaliza��o l�gica da cosmovis�o recebida. E tamb�m de nada adianta a ressalva de que o fil�sofo n�o exerce essa atividade formalizadora somente sobre a sua pr�pria cosmovis�o e sim sobre "toda a filosofia at� hoje existente, na medida em que ela deixou estratifica��es consolidadas na filosofia popular"9. Pois, na medida mesma em que estas estratifica��es est�o consolidadas, elas constituem parte integrante da cosmovis�o pessoal e s�o formalizadas, portanto, junto com ela. Que a "filosofia" assim compreendida nada tenha de dif�cil, que possa ser praticada por qualquer um e mesmo por um computador, � coisa que se pode facilmente admitir.

Mas essa concep��o, se em si mesma � simpl�ria e pueril, reduzindo o fil�sofo a um t�cnico em formalizar as opini�es recebidas, por outro lado n�o tem a m�nima correspond�ncia com os fatos conhecidos da hist�ria da filosofia, ao longo da qual nenhum, absolutamente nenhum fil�sofo - exceto o pr�prio Gramsci, que s� � fil�sofo num sentido metaf�rico e el�stico do termo - jamais se limitou a uma brincadeira mec�nica e est�pida de formalizar a vox populi. Bem ao contr�rio, a maioria deles se notabilizou por rejeitar criticamente a massa de opini�es recebidas e por especular em novas dire��es, n�o raro chegando a conclus�es que, por inauditas e heterodoxas, mal chegavam a ser compreendidas pelos seus contempor�neos, e que, se acaso vieram a tornar-se depois voz corrente e integrar-se no "senso comum", s� o fizeram num prazo bem longo e ap�s enfrentar as mais prodigiosas resist�ncias. O exemplo talvez mais caracter�stico � Arist�teles, cujo pensamento, notoriamente incompreendido at� pelos seus disc�pulos mais pr�ximos, sobreviveu apenas em forma fragment�ria, at� ser completamente obscurecido, s� vindo a ressurgir, para ent�o sim tornar-se voz corrente (e isto somente na classe letrada), uma vez decorridos treze ou catorze s�culos da morte de seu criador. Longe de "formalizar o senso comum do seu tempo", Arist�teles � expelido do discurso dominante da sua �poca e antecipa o senso comum de uma �poca futura, da qual n�o podia ter a menor id�ia no instante em que criava a sua filosofia.

N�o por coincid�ncia, no sistema aristot�lico a formaliza��o e coerencia��o das cren�as correntes10, longe de constituir a ess�ncia da atividade filos�fica, � apenas a condi��o pr�via da verdadeira investiga��o: uma vez bem arranjado o conjunto das opini�es vigentes, o exame cr�tico delas dever� operar o salto qualitativo que, da discuss�o de doutrinas, passar� � intui��o da ess�ncia do objeto mesmo. Este momento fundamental da passagem das palavras �s coisas � totalmente ignorado por Gramsci, e � precisamente ela que assinala, em Arist�teles, a diferen�a entre a filosofia, investiga��o rigorosa, e o mero confronto de opini�es.11

Outro exemplo de como a atividade do fil�sofo transcende infinitamente a coerencia��o do senso comum nos � dado por Leibniz, que em plena �poca de mecanicismo hegem�nico cria as bases de uma f�sica indeterminista que passou totalmente despercebida aos seus contempor�neos e se tornou "senso comum" entre os cientistas dois s�culos depois. Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. Nada, absolutamente nada, nem um �nico fato ou exemplo na hist�ria da filosofia confirma a defini��o gramsciana de filosofia, a qual no entanto ele n�o apresenta como proposta pessoal e in�dita mas como express�o da realidade hist�rica da ocupa��o dos fil�sofos - o que evidencia, de um lado, uma prodigiosa incultura filos�fica e, de outro, como seq�ela dessa defici�ncia, uma afoiteza provinciana ou adolescente de fazer de si pr�prio, projetivamente, o paradigma de toda interpreta��o global da hist�ria da filosofia.

Com isto, j� percebemos, desde a entrada, o tipo de terreno de pensamento em que nos movemos: estamos em pleno terreno da proje��o ampliada e paran�ica de uma idiossincrasia pessoal sobre o conjunto de uma hist�ria antes imaginada que conhecida.

Qualquer leitor que, somente por essa constata��o, j� n�o perceba estar lidando com o pensamento canhestro e informe de um parvenu estranho a toda reflex�o filos�fica, d� sinal de estar, ele pr�prio, bem mal equipado para a filosofia. Que um pensamento desse n�vel chegue a ser levado a s�rio e mesmo glorificado por uma boa fatia do mundo universit�rio, eis um fen�meno que assinala um alarmante obscurecimento coletivo da intelig�ncia humana, um fen�meno que, se vier a se generalizar para al�m da quota de estupidez m�dia admiss�vel entre as massas de estudantes e bachar�is, n�o ser� excessivo qualificar de apocal�ptico.

 

� 3. A disputa filos�fica entre o homem-massa e o homem-massa

 

Mas Gramsci vai um pouco mais longe no seu empenho de fazer da sua pr�pria estatura de an�o a medida m�xima de aferi��o das inten��es filos�ficas alheias. Ele proclama que:

Pela pr�pria concep��o do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema � o seguinte: qual � o tipo hist�rico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concep��o do mundo n�o � cr�tica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa pr�pria personalidade � comp�sita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princ�pios da ci�ncia mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases hist�ricas passadas estreitamente localistas e intui��es de uma futura filosofia que ser� pr�pria do g�nero humano mundialmente unificado. Criticar a pr�pria concep��o do mundo, portanto, significa torn�-la unit�ria e coerente e elev�-la at� o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evolu�do. Significa tamb�m, portanto, criticar toda a filosofia at� hoje existente, na medida em que ela deixou estratifica��es consolidadas na filosofia popular. O in�cio da elabora��o cr�tica � a consci�ncia daquilo que � realmente, isto �, um "conhece-te a ti mesmo" como produto do processo hist�rico at� hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de tra�os acolhidos sem an�lise cr�tica. Deve-se fazer, inicialmente, essa an�lise."12

Nada mais �bvio: se todos os homens s�o fil�sofos e os fil�sofos ex professo s� se distinguem deles pelo grau maior de coer�ncia e logicidade com que cr�em exatamente nas mesmas coisas que eles, ent�o entre o fil�sofo com aspas e o fil�sofo sem aspas n�o h� outra diferen�a sen�o aquela que existe entre o conformista incoerente e o conformista coerente, entre o homem-massa espont�neo e confuso e o homem-massa assumido e formalizado.

Novamente, a id�ia em si � est�pida e sem o m�nimo respaldo hist�rico que se poderia exigir de uma generaliza��o t�o ambiciosa.

Se o homem n�o tem op��o sen�o escolher entre um conformismo desagregado e ocasional e um conformismo consciente e sistem�tico, toda nova filosofia que apare�a n�o pode ser sen�o a sistematiza��o de um conformismo j� dado, latente, em sua pureza, no seio dos conformismos confusos que perfazem o "senso comum" do seu ambiente.

Cada novo sistema filos�fico, assim, em vez de se opor ao conformismo estabelecido, n�o faz sen�o aderir a um conformismo pr�vio, que ele apenas apresenta em forma mais depurada e l�mpida.

Isto resulta em afirmar que S�crates n�o declarou nada que fosse formalmente contr�rio �s cren�as coletivas daqueles que o condenaram � morte, mas apenas deu coer�ncia e homogeneidade �quilo em que todos j� acreditavam. Seria positivamente uma l�stima que um t�o fiel sacerdote da cren�a estabelecida fosse condenado � morte por mero engano, s� porque os juizes n�o tiveram a esperteza de notar que concordavam com tudo quanto ele dizia. Mais lament�vel ainda foi que, t�o h�beis em reconhecer o sentido un�nime de suas pr�prias cren�as consensuais quando se expressavam na algaravia coletiva sob forma mult�voca, "ocasional e desagregada", n�o soubessem reconhec�-las quando, pela boca de S�crates, se apresentaram em linguagem mais l�gica, mais coerente e mais homog�nea. Nem Gramsci, nem o consenso mundial dos gramscistas reunidos poder� jamais nos explicar como um tal abismo de incompreens�o pode se abrir entre um homem-massa que cr� numa coisa e outro homem-massa que, al�m de acreditar piamente na mesm�ssima coisa, ainda a explica ao primeiro em linguagem clara, did�tica e coerente.

Por�m o mais lindo nessa hist�ria toda � que o senso comum, ao mesmo tempo que oferece resist�ncia �s inova��es introduzidas pelo fil�sofo individual, desempenha tamb�m a fun��o de sujeito ativo e criador que antecede as descobertas do fil�sofo. Mas se o senso comum � ao mesmo tempo o baluarte do conformismo e a mola-mestra da renova��o filos�fica, acumulando os dois pap�is principais na trama do processo hist�rico, para que raios seria necess�rio um fil�sofo para depur�-lo se esta depura��o ser� sempre subseq�ente �s mudan�as fundamentais? Se o senso comum era um res�duo passivo precisamente por ser inconsciente, e se por isto necessitava do fil�sofo para traz�-lo � luz da consci�ncia, como pode agora tornar-se por si pr�prio o fator ativo, quando s� na consci�ncia do fil�sofo ele adquire a forma e o sentido unit�rios necess�rios � passagem da passividade � atividade? A indistin��o canhestra de inconsciente-passivo e consciente-ativo � a� manifesta, e ela basta para dar a este ponto da doutrina gramsciana aquela caracter�stico estofo de confus�o impenetr�vel que s� aos olhos do principiante ing�nuo pode passar por sinal de pensamento profundo.

Que toda a doutrina gramsciana � uma bobagem grosseira, indigna de aten��o filos�fica s�ria, eis algo que, se j� n�o se tornou evidente a algum leitor mediante este breve exame de um par�grafo fundamental de Antonio Gramsci, arrisca n�o se tornar claro nunca mais, porque nenhum ac�mulo de provas poder� jamais dar intelig�ncia filos�fica a uma mente inepta.

Em todo caso, vale a pena prosseguir acumulando provas at� o limite do intoler�vel, porque o culto gramsciano n�o nasce de uma priva��o de intelig�ncia, e sim de uma perversidade da vontade - e, ao contr�rio da intelig�ncia rombuda, � qual a pr�pria for�a probante dos argumentos mais perturba que esclarece, impelindo-a cada vez mais para longe da verdade e para dentro da sua pr�pria confus�o, a vontade doentia, esta sim, quando coexiste com uma intelig�ncia s�, n�o tem for�as para neg�-la indefinidamente e mais dia menos dia acaba cedendo ao peso das evid�ncias, ainda que a contragosto.

 

10/12/1999

Segunda parte

NOTAS

  1. Todas as cita��es de Gramsci nesta parte, exceto indica��o expressa em contr�rio, s�o extra�das desta obra e edi��o. Voltar
  2. A Concep��o Dial�tica da Hist�ria, pp. 11-12. A continua��o imediata deste par�grafo, tamb�m reproduzida na Folha, ser� dada e comentada mais adiante. Voltar
  3. Ele � levado a esse erro grosseiro justamente por um preceito da sua pr�pria doutrina, segundo o qual o "senso comum" cont�m um dep�sito de todas as filosofias de eras passadas. Ora, a experi�ncia moderna mostra que o "senso comum" - no sentido espec�fico que Gramsci d� a este termo - � bem mais vulner�vel � a��o consciente de propagandistas e manipuladores do que � influ�ncia residual das tradi��es. A pr�pria efic�cia publicit�ria do gramscismo � uma prova disso. Al�m do mais, os elementos da tradi��o, mesmo quando n�o sejam totalmente esquecidos (o que necessariamente acontece quando se rompe a cadeia de transmiss�o) podem sobreviver no senso comum sob forma desfigurada e caricatural. Voltar
  4. Discutirei este conceito mais adiante. Voltar
  5. Por exemplo, Vladimir Soloviev: "A filosofia, em sua qualidade de conhecimento reflexivo, � sempre obra da raz�o pessoal. Ao contr�rio, nas outras esferas da atividade humana geral, a raz�o individual, a pessoa isolada desempenham um papel antes passivo: � a esp�cie que age; uma atividade impessoal a� se manifesta, similar � do formigueiro ou da colm�ia. � indubit�vel, com efeito, que os elementos essenciais da vida do homem (l�ngua, mitologia, formas primitivas da sociedade) s�o, na sua forma��o, totalmente independentes da vontade consciente das pessoas isoladas. No ponto em que est� a ci�ncia atual, est� fora de d�vida que a l�ngua ou o Estado n�o foram inventados por pessoas isoladas, tanto quando a organiza��o da colm�ia, por exemplo, n�o foi inventada por abelhas isoladas. Quanto � religi�o, no sentido pr�prio (n�o a mitologia), ela tamb�m n�o pode ser inventada: nela tamb�m a pessoa isolada desempenha, como tal, um papel antes passivo, em primeiro lugar na medida em que uma revela��o exterior, independente do homem, � reconhecida como fonte objetiva da religi�o, e em seguida na medida em que o fundamento subjetivo da religi�o � a cren�a das massas populares, determinada pela tradi��o comum e n�o pelas investiga��es da raz�o pessoal." (Crise de la Philosophie Occidentale [1874], trad. Maxime Herman, Paris, Aubier, 1947.) Voltar
  6. Arist�teles. Voltar
  7. Husserl. Voltar
  8. P. 34. Voltar
  9. P. 12. Voltar
  10. E mesmo assim n�o de toda a vox populi, e sim somente das opini�es dos s�bios, isto �, daqueles que dedicaram ao assunto uma aten��o consciente e que por isto j� n�o expressam simplesmente a voz corrente e sim uma depura��o dela. Voltar
  11. Veremos adiante que em Gramsci o objeto, a realidade investigada, desaparece completamente do horizonte de vis�o, transformando a filosofia num mero conflito de opini�es que se reduzem, por fim, a interesses de classes - n�o lhe interessando nem sequer demonstrar que esta redu��o, considerada enquanto conte�do da sua doutrina, � por sua vez verdadeira e corresponde aos fatos; ao contr�rio, ele a toma por pressuposto e, em �ltima an�lise, como decis�o da vontade. Voltar
  12. P. 12. Na senten�a final a ed. citada traz "esse invent�rio", que o texto da Folha mudou, inexplicavalmente, para "essa an�lise". Voltar

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