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Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 19

 

O Anti-Gramsci ~ 2

Introdu��o � Filosofia pelo M�todo Cr�tico-Dial�tico

 

� 4. A resposta infal�vel a uma pergunta posti�a

 

Logo a seguir, Gramsci afirma:

Nota IV. Criar uma nova cultura n�o significa apenas fazer individualmente descobertas "originais"; significa tamb�m, e sobretudo, difundir criticamente verdades j� descobertas, "socializ�-las" por assim dizer; transform�-las, portanto, em base de a��es vitais, em elemento de coordena��o e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multid�o de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unit�ria a realidade presente � um fato "filos�fico" bem mais importante e "original" do que a descoberta, por parte de um "g�nio filos�fico", de uma nova verdade que permane�a como patrim�nio de pequenos grupos intelectuais1.

"Ideologia" � um tipo de discurso que, em defesa de valores arbitr�rios e no mais das vezes impl�citos e n�o declarados, enfatiza determinados aspectos da realidade que sirvam de suporte ret�rico para esses valores, ocultando ou minimizando os aspectos contr�rios, por mais evidentes ou importantes que sejam e por mais improv�vel que seja escaparem � aten��o de qualquer observador isento. Ideologia � seletividade deformante da realidade conhecida, em vista de um interesse pol�tico.

Nesse sentido, o discurso ideol�gico n�o � nunca "dial�tico", por mais que se pavoneie de s�-lo, pois foge ao confronto dos contr�rios. O confronto faria automaticamente vir � luz os pressupostos impl�citos no discurso, atenuando, relativizando ou eventualmente impugnando aquilo que ele deseja afirmar. Por isto mesmo � evitado. Para evit�-lo, recorre-se � argumenta��o por topoi ou lugares-comuns, que, dando uma apar�ncia de obviedade imediata a um determinado ju�zo de valor, subtrai � aten��o do ouvinte as bases da pergunta a que essa afirma��o responde e portanto sonega-lhe a possibilidade de questionar a formula��o mesma dessa pergunta, sua adequa��o ao problema de que se trata, sua relev�ncia maior ou menor em compara��o com outras abordagens poss�veis do mesmo tema, etc. Tudo isto, como que por milagre, desaparece do horizonte de consci�ncia do ouvinte ou leitor, sobrando somente a imagem hipn�tica da pergunta isolada e da resposta infal�vel.2

O par�grafo que acabo de citar � um exemplo perfeito de discurso ideol�gico, marcado pela �nfase unilateral que escamoteia � aten��o do leitor as mais �bvias compara��es sugeridas pela apresenta��o mesma do assunto.

Esse par�grafo coloca-nos diante de uma oposi��o entre a verdade conhecida solitariamente por um pensador isolado e a verdade colocada a servi�o da a��o coletiva, e afirma, resolutamente, que esta � melhor e mais importante. � primeira vista, � uma afirma��o �bvia de simples senso comum. O rem�dio para uma doen�a grave, por exemplo, vale menos quando s� um homem o conhece do que quando posto a servi�o de muitos. � um topos ou lugar-comum: o bem de muitos � melhor que o bem de poucos ou de um s�.

Assim, colocada a pergunta: "Que � que vale mais - a descoberta individual ou sua difus�o entre muitos?", a mente entorpecida opta automaticamente por esta �ltima, sem questionar se a pergunta mesma faz sentido.3 No caso, o questionamento, que na mente filosoficamente treinada emergiria de maneira quase espont�nea � simples leitura desse par�grafo, poderia assumir a seguinte forma: Que sentido faz equacionar o problema sob a forma dessa oposi��o, se nunca ou quase nunca um descobridor tende a guardar sua descoberta para si, mas quase que necessariamente o impulso da descoberta vem junto com o impulso da difus�o? A oposi��o colocada � natural, necess�ria, sugerida pela natureza mesma dos fatos ou, ao contr�rio, � uma abordagem posti�a, arbitr�ria e puramente inventada com o prop�sito de impingir um certo ju�zo de valor mediante o truque de apresent�-lo como resposta a uma pergunta posti�a especialmente planejada para esse fim?

A resposta a este questionamento indicar� se estamos diante de um exame filos�fico s�rio ou de um joguinho ret�rico.

Mas o questionamento pode ir um pouco mais fundo e perguntar: Que raz�es filosoficamente v�lidas haveria para montar uma oposi��o entre a verdade solitariamente conhecida e a a��o coletiva, se esta �ltima n�o tem conex�o l�gica com a veracidade ou falsidade das id�ias que a inspiram, e se em suma, como o demonstra abundantemente a Hist�ria, considerados enquanto meios de "conduzir uma multid�o de homens a pensar coerentemente e de maneira unit�ria", a mentira ou o erro funcionam t�o bem quanto a verdade?

Basta fazer esse breve questionamento para perceber que a oposi��o entre a verdade solit�ria e a verdade que beneficia as massas n�o � de maneira alguma um problema s�rio sugerido pela experi�ncia hist�rica, mas, bem ao contr�rio, � apenas uma hip�tese abstrata e arbitr�ria cuja discuss�o, se pode servir para exerc�cios de ret�rica escolar, em nada nos far� avan�ar no conhecimento da realidade.

Em terceiro lugar, para qualquer c�rebro treinado em l�gica, n�o h� nenhum sentido em fazer uma compara��o de valor entre uma coisa e aquilo que � condi��o de possibilidade dessa coisa. A descoberta individual - de uma verdade, de um rem�dio, de um equipamento - � condi��o de possibilidade pr�via � difus�o dessa descoberta, assim como ter nascido � condi��o de possibilidade para que um sujeito continue vivo aos trinta anos. A pergunta subentendida na abordagem de Gramsci � pueril, artificial e fingida como o seria uma reda��o escolar com o tema: "O que � melhor: ter nascido ou chegar vivo aos trinta anos de idade?"

Em nenhum momento de sua extensa obra4 Antonio Gramsci sobe acima desse n�vel ginasiano de abordagem dos problemas.

 

� 5. Ordem intelectual e religi�o

 

"A filosofia � uma ordem intelectual,
coisa que nem a religi�o
nem o senso comum podem ser."
5

Esta senten�a j� mostra o quanto Gramsci est� disposto a falar da religi�o sem ter dela o menor conhecimento. Toda religi�o � necessariamente uma ordem intelectual - embora n�o seja somente isso -, e � a capacidade de ser elaborada progressivamente nos amplos sistemas racionais da teologia dedutiva que diferencia, precisamente, uma religi�o de uma pseudo-religi�o6.

Mais ainda: somente dentro do corpo das religi�es pode surgir e desenvolver-se a vida intelectual em sentido eminente, que sup�e o predom�nio do pneuma sobre a psyche e a bios, inalcan��vel - exceto por milagre -- sem o suporte ritual e simb�lico das pr�ticas religiosas.

Pela pr�pria incapacidade de perceber a independ�ncia eid�tica do plano espiritual em rela��o ao ps�quico e mesmo ao biol�gico - pois s� a um psychicos bem prisioneiro de seus estados subjetivos ocorreria a id�ia de fazer uma compara��o de valor, no mesmo plano, entre uma verdade teor�tica e sua aplica��o pr�tica --, Gramsci n�o poderia jamais conceber o que � uma religi�o. Por isto mesmo, limita-se a consider�-la somente enquanto "elemento do senso comum desagregado"7, sem notar que n�o est� falando de uma religi�o e sim do res�duo sociol�gico de uma religi�o extinta que se tornou metaf�rica.

N�o que ele ignore, por completo, que h� alguma diferen�a entre a religi�o e sua express�o sociol�gica ou, como ele diz, pol�tica. Mais adiante ele nos dar� um sinal de que sabe que essa diferen�a existe - e a prova inequ�voca de que radicalmente n�o sabe em que ela consiste.

Por enquanto, limitemo-nos a observar o seguinte. Ele diz que a filosofia � uma ordem intelectual precisamente em contradistin��o � religi�o, que n�o o �. Mas a verdade � precisamente o contr�rio. A religi�o, para existir, tem de ser n�o apenas uma ordem intelectual completa e racionalmente coerente em todos os seus pontos - e a simples exist�ncia de um direito can�nico j� o demonstra desde logo --, mas tamb�m essa ordem tem de ser indefinidamente abrangente, isto �, capaz de ampliar-se num n�mero ilimitado de desenvolvimentos l�gicos que em nada desmintam os seus princ�pios ou dogmas fundamentais. A religi�o � n�o apenas uma ordem intelectual, mas uma ordem sist�mica, e esta ordem sist�mica deve abranger - ou pelo menos n�o contradizer - todas as experi�ncias e conhecimentos poss�veis em todas as dire��es, motivo pelo qual o trabalho de tirar conseq��ncias l�gicas do dogma e de coerenciar com ele as novas descobertas e experi�ncias humanas �, em todas as religi�es, um trabalho cont�nuo e sem fim. Mais ainda, essa ordem, na medida em que se expande logicamente em todas as dire��es sem contradi��o com os dogmas centrais, pode-se dizer que j� est� dada sinteticamente nesses dogmas, os quais cont�m a semente de todos os seus desenvolvimentos poss�veis. A menor ruptura ou incoer�ncia nesse sistema constituir�, precisamente, o que se chama um cisma.

Em contraposi��o com isso, nenhuma filosofia pode se gabar de possuir a priori, como a religi�o, um conjunto de princ�pios t�o abrangentes e t�o universalmente v�lidos que deles tudo se possa deduzir ou tudo se possa harmonizar logicamente com eles indefinidamente at� o fim dos tempos. Na medida mesma em que o conhecimento filos�fico � de natureza cr�tica, ele n�o pode ter a pretens�o de constituir um sistema ao mesmo tempo fechado e pass�vel de desenvolvimentos infinitos. Por isto mesmo, os fil�sofos t�m dedicado os seus esfor�os mais a descobrir e equacionar problemas do que a encontrar solu��es definitivas. E, com mais forte raz�o ainda, a� se imp�e a conclus�o de que, se a religi�o � necessariamente uma ordem intelectual e uma ordem completa ou ao menos idealmente completa, toda filosofia � apenas um esfor�o cr�tico em dire��o a uma ordem poss�vel que n�o se atinge e n�o se completa nunca.

A insist�ncia obsessiva de Gramsci no car�ter organizado, sist�mico e unit�rio das filosofias n�o prova outra coisa sen�o a sua pouca pr�tica nos estudos filos�ficos, pois, na maior parte das filosofias a unidade sist�mica n�o passa de um vago ideal orientador jamais realizado (e �s vezes abandonado por completo, como no caso das filosofias ditas, como a de Nietzsche, "problem�ticas" por oposi��o a "sist�micas"), sem que elas deixem de ser filosofias por isto. Mais ainda, como o demonstrou Vladimir Soloviev, todas as filosofias cont�m necessariamente em si alguns pontos de incoer�ncia, dos quais nasce precisamente a possibilidade de que sejam contestadas, corrigidas ou modificadas pelas filosofias subseq�entes. Uma filosofia n�o se torna menos valiosa por conter incoer�ncias internas, e � mesmo um dever do pr�prio fil�sofo, quando as percebe, assinalar sua presen�a, como o fez por exemplo Arist�teles, ao dar sinal de que notava, sem poder resolv�-la, uma incoer�ncia b�sica do seu pr�prio sistema (no entanto um dos mais coerentes j� surgidos) ao proclamar que s� existe conhecimento cient�fico do geral e que s� o singular � real, sem consentir em tirar disto a conclus�o de que o conhecimento � falso ou inadequado.

J� uma religi�o, se lhe aparecesse no corpo, � vista de todos, um rombo desse tamanho, j� n�o seria uma religi�o e sim duas religi�es, ou, melhor ainda, uma guerra de religi�es.

A id�ia de que a coer�ncia unit�ria � uma caracter�stica essencial da filosofia, bem como a de que uma religi�o n�o � e n�o pode ser uma ordem intelectual reflete apenas a imagina��o pueril de um palpiteiro inculto que, por falta de informa��o hist�rica v�lida, toma como certezas cient�ficas os lugares-comuns do meio em que vive.

 

13/12/99

NOTAS

  1. A Concep��o Dial�tica da Hist�ria, pp. 13-14. Voltar
  2. Em compara��o com isto, o exame filos�fico caracteriza-se precisamente por explicitar ou por deixar subentendidas ao alcance do bom entendedor outras abordagens poss�veis, respondendo a todas elas ao mesmo tempo, seja de maneira expl�cita e anal�tica, seja impl�cita e sint�tica. Voltar
  3. Em contraposi��o a isto, a primeira preocupa��o do aut�ntico fil�sofo na exposi��o de suas id�ias � a de provar que as perguntas que formula s�o fundamentais, que seu modo de abordar o assunto � melhor do que outros modos j� tentados, etc. Ele pode fazer isto de maneira expl�cita ou impl�cita, mas, qualquer que seja o caso, a parte mais significativa do esfor�o filos�fico � sempre a de equacionar corretamente as perguntas, nunca a de sair respondendo, de cara, a perguntas que n�o foram, elas mesmas, objeto de qualquer exame cr�tico. Voltar
  4. Refiro-me somente aos livros que li: a Concep��o Dial�tica da Hist�ria; Maquiavel, a Pol�tica e o Estado Moderno; Literatura e Vida Nacional; Os Intelectuais e a Organiza��o da Cultura; e Cartas do C�rcere - todos publicados pela Civiliza��o Brasileira sob a orienta��o de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Na �poca em que li essas porcarias, as edi��es originais italianas eram muito caras e privei-me da sua leitura confiado na afirma��o dos pr�prios editores de que esses cinco eram os livros principais - n�o sendo portanto de prever que pudesse encontrar nos outros alguma revela��o assombrosa capaz de mudar de alto a baixo a compreens�o do pensamento de Gramsci que por eles se podia obter. Se a edi��o completa trouxer surpresa nesse sentido, seus editores, sendo os mesmos da velha, ter�o a obriga��o de declarar que, ao posar pela primeira vez perante os leitores como especialistas em Gramsci, n�o tinham sequer aprendido a discernir, na massa dos seus textos, o importante e o desimportante. Para a felicidade deles, n�o creio que isso possa acontecer, pois t�o extensos s�o os livros mencionados, que dificilmente, no que sobra por editar em portugu�s, seu conte�do essencial poder� vir a ser desmentido. Voltar
  5. P. 14. Voltar
  6. N�o ser� demais observar que praticamente todos os instrumentos de an�lise l�gica existentes, fora os inventados por Arist�teles e os acrescentados 2.400 anos depois dele pela moderna l�gica matem�tica, foram desenvolvidos por religiosos para fins de exposi��o e discuss�o doutrinal. As contribui��es infinitamente ricas das l�gicas hindu, taoista, budista, isl�mica, judaica e escol�stica ao desenvolvimento da teoria da prova e da argumenta��o seriam uma imensa gratuidade hist�rica absolutamente inexplic�vel se a religi�o n�o fosse uma "ordem intelectual". Voltar
  7. Id. Voltar

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