João Ubaldo e o besteirol
Texto e comentário
1. O besteirol dos 500 anos
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de Abril de 2000
Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contemporânea,
até que a quantidade de besteiras ditas e escritas sobre o
controvertido aniversário do Brasil não dá para
surpreender. O que chateia um pouquinho é que diversas dessas
besteiras continuarão a perseguir-nos pela vida afora,
algumas talvez trazendo conseqüências indesejadas. A
principal delas, naturalmente, é a de que o Brasil
começou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu,
posto que éramos uma ilha quando os portugueses primeiro
viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que
duvidosamente existia não tinha nada a ver com o Brasil de
hoje.
A impressão que se tem é que, do povo às
autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já
estava no mapa, com as fronteiras e características atuais,
no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome
nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir
"Brasil": Pindorama, designação supostamente dada
pelos índios ao nosso país. Não sou
historiador, mas também não sou tão burro assim
para acreditar que os índios tinham qualquer
noção geopolítica, ou alguma idéia de
que pertenciam a um "país" chamado Pindorama. Não
havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra
Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses
encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No
máximo, significaria o único mundo conhecido deles.
Parece assim que os nossos índios administravam
impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas,
quando na verdade, que perdura até hoje, viviam
neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três - era
o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como
"muito".
Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com
perdão da formulação pouco ortodoxa da
pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais
ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos
descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não
vieram por livre e espontânea vontade, mas também
não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem
parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade.
Imagino que haja quem pense que, diante de uma
delegação portuguesa, algum diplomata ou general
índio tenha argumentado que se tratava da
ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao
Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a
intervenção das Nações Unidas.
Se a História tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes,
nossa área hoje podia estar subdividida em vários
países diferentes, uns falando português, outros
espanhol, outros holandês, outros francês. Do Tratado de
Tordesilhas às capitanias hereditárias, aos movimentos
separatistas e à ação do barão do Rio
Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil
que somos hoje. Ninguém chegou aqui e descobriu o Brasil
já pronto e acabado (se é que podemos falar assim
mesmo agora), isto é uma perfeita maluquice. O Brasil,
é mais do que óbvio, se construiu lentamente e
às vezes aos trancos e barrancos.
Compreende-se que nativos de países como o Peru, o
México e outros, notadamente na América Central, se
sintam invadidos. Até hoje são numerosos e
discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os
conquistadores, tinham cidades maiores do que as européias.
(3) Mas nós? Quem, com a notável exceção
do amigo pataxó e da jovem senhora xavante que ora me
lêem, foi aqui invadido? Vamos supor, já jogando no
terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado
ignorasse a existência destas terras até hoje.
Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões
de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo
(nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e
usamos batom, é uma questão de estilo), que não
falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com
alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da
era informática. Brasil mesmo, nenhum.
Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por
motivos incorretíssimos, abraçar a tese da
invasão do Brasil. "Nós fomos invadidos, fomos
invadidos!", grita em português brasileiro, a única
língua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro.
Será possível que não se perceba a
vastidão dessa sandice? Daqui a pouco - e aí é
que mora o perigo - entra na moda de vez e os resquícios das
nações indígenas que ainda subsistem
deverão aspirar à soberania sobre os
territórios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia
quererá ter seu Estado e sua autonomia, com bandeira, hino,
moeda (dólar, para facilitar) e passaporte. Que beleza,
forma-se-á por exemplo, depois de um plebiscito entre os
índios, o Estado Ianomâmi, completamente independente e
ocupando área bem maior do que muitos outros países do
mundo juntos, reconhecido pelas organizações
internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos
povos, os Estados Unidos, que mandariam missionários e ajuda
econômica e tecnológica e, dessa forma, investiriam
desinteressadamente numa área tão pobre em recursos
econômicos e que tão pouca cobiça desperta, como
a Amazônia. E, se protestássemos, a Otan bombardearia o
Viaduto do Chá, a ponte Rio-Niterói e o Elevador
Lacerda, como advertência. Cometeram-se e cometem-se crimes
inomináveis contra os índios, que devem ter seus
direitos assegurados. Também se cometeram e cometem crimes
contra grande parte dos brasileiros não-índios, outra
vergonha que precisa ser abolida. Mas isso não tem nada a ver
com a tal invasão, assim como a outra série de
besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se não
houvéssemos sido colonizados pelos portugueses,
estaríamos em melhor situação, assim como
estão em melhor situação a antiga Guiana
Inglesa, o Suriname, a Indonésia, a Nigéria, a
Somália, o Sudão e um rosário
interminável de ex-colônias européias, quando na
verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais
embaixo. Como é que se diz "babaquice" em tupi-guarani?
2. Comentários de Olavo de Carvalho
"Não há nada a comemorar. O descobrimento foi uma
violência, um estupro, um roubo que privou de seus
direitos os autênticos brasileiros, habitantes e donos
desta terra por usucapião desde milênios antes da
chegada dos portugueses, que só trouxeram maldade e
doenças a esses povos que aqui viviam em harmonia
paradisíaca."
Nenhuma frase foi mais repetida na comemoração dos
500 anos de Brasil. Martelada e remartelada dia e noite por
intelectuais e políticos, índios e
antropólogos, Tvs e rádios, jornais e cartazes,
camisetas e livros de escola. Um massacre publicitário.
É próprio desse tipo de propaganda atemorizar
preventivamente os recalcitrantes, numa advertência
tácita de que não se atrevam a contestar nem mesmo
em pensamento a mensagem onipresente. E de fato ninguém se
atreve: cada um teme ser olhado com hostilidade, excluído
da comunidade dos bons cidadãos, acusado de racismo, de
nazismo, de virtual assassino de índios e negros, um
genocida, um inimigo da espécie humana, um verdadeiro
Judas, responsável pelo Holocausto, pela
crucificação de Cristo, pela extinção
do mico-leão dourado, pelas taxas de juros e pela
explosão de Chernobyl.
Nenhuma campanha de persuasão pública, ao longo de
toda a nossa História, se compara a essa lavagem cerebral
de proporções continentais. Nem para fazer a Guerra
do Paraguai, para derrubar o Império, para abolir a
escravatura, para enfrentar o Eixo nos campos da Itália ou
para vencer quatro Copas do Mundo mobilizamos tanta energia
propagandística quanto nesse esforço nacional para
transformar 500 anos de história numa ocasião de
vergonha, luto e penitência, para negar enfim a legitimidade
moral da nossa existência enquanto
nação.
Curiosamente, ouvi essa frase pela primeira vez aos dez ou onze
anos, e não levei mais de cinco minutos para perceber que
se tratava de um raciocínio esquizofrênico, de uma
contradição de termos, de um joguinho lógico
tipo Aquiles e a tartaruga. Mas, naquela época, ela era
dita cum grano salis. Quem a pronunciava tinha a
consciência de enunciar um gracejo para mexer com
portugueses ou uma mentirinha piedosa para massagear o ego
indígena.
Hoje todos a repetem a sério, com ares de quem ensina uma
verdade científica ou uma doutrina moral da mais alta
dignidade. A reação espontânea de um
cérebro sadio, de perceber no ato a incongruência,
é sufocada como tentação abominável, e
logo termina por desaparecer das consciências. A absurdidade
consagra-se como um lugar-comum, incorpora-se à linguagem
corrente como a tradução universalmente aceita de
uma verdade evidente de per si.
Quando a mente de uma criatura chega a esse grau de paralisia, de
estupidez, de letargia abjeta, já não há mais
nada a conversar com ela. Assim é hoje o homem brasileiro.
João Ubaldo Ribeiro está de parabéns por ser,
dentre as vozes oficiais das classes falantes, a primeira que
vence o natural desânimo e se dispõe a discutir o
que, em condições normais, não teria jamais
de ser discutido.
Sua crônica "O besteirol dos 500 anos" (O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de Abril de 2000) é uma obra de
caridade feita para aliviar, por instantes ao menos, a
miséria mental de um povo que hoje se acomoda tão
bem à mais espantosa privação intelectual
quanto mais baba de indignação ante qualquer
vazamento de dinheiro.
Eu gostaria apenas de acrescentar-lhe as seguintes notas:
-
Que líderes negros, ao mesmo tempo que chamam os brancos
de "invasores" do Brasil, isentem da mesma pecha os membros de
sua própria raça sob a alegação de
que vieram a contragosto, eis um argumento muito usado nos
últimos dias, e no qual há menos burrice do que
racismo puro e simples. Os brancos trazidos à
força como prisioneiros já formavam um contingente
enorme quando os escravos negros começaram a chegar. Se a
condição de invasor é definida pela
participação voluntária na
ocupação do território - o que está
subentendido no argumento que desculpa os negros -, esses
brancos evidentemente não podem ser catalogados como
invasores, a não ser que o critério adotado para
condenar ou absolver o participante involuntário seja
estritamente racial: forçado a lutar contra os
índios, o prisioneiro será declarado culpado se
for branco, inocente se for negro.
-
Não é muito realista explicar como
emanação espontânea da babaquice nacional o
requintado argumento sofístico que, atribuindo a
sociedades tribais as prerrogativas de modernos Estados
soberanos, torna o público cego e surdo para a mais
óbvia das realidades: que a noção mesma de
soberania, bem como de lei e direito em geral � inclusive o
direito de usucapião invocado para nomear os
índios "os verdadeiros donos do Brasil" � foi trazida e
ensinada pelos europeus a povos que não tinham a menor
idéia dessas coisas. Para qualquer ser humano no pleno
gozo de suas faculdades mentais, um direito que vem trazido no
bojo de uma mudança histórica não pode ser
alegado contra essa mesma mudança histórica:
não se pode alegar em defesa da autoridade imperial de
Pedro II as prerrogativas constitucionais dos governantes
republicanos, em favor da antiga religião estatal romana
os princípios cristãos que a aboliram ou em prol
do domínio colonial inglês os direitos
estatuídos pela Constuição Americana. A
percepção intuitiva dessas coisas faz parte da
natureza humana. Faz parte do que os escolásticos
chamavam sindérese, o conhecimento
espontâneo dos princípios básicos
subentendidos em qualquer regra moral. Mas pode ser suprimida
por uma doutrinação estupidificante do tipo
1984, que habitue as almas a repetir
slogans autocontraditórios e a aceitá-los
sem exame, até que a abstenção do
juízo crítico se torne automática e
irreversível. O cidadão que aceite uma vez o
argumento da "nação indígena" injeta na
própria mente uma espécie de vírus
informático puerilizante que o incapacitará para o
julgamento moral dos casos mais óbvios. Essa
técnica mistificadora não foi inventada por
índios analfabetos, mas por técnicos a
serviço de ONGs e governos estrangeiros. Até a ONU
e a Unesco dão cursos regulares sobre como criar e
dirigir "movimentos sociais", e hoje não há em
parte alguma do Terceiro Mundo um só grupo revoltado que
não tenha sido formado e treinado por profissionais
suecos, ingleses, americanos, franceses. O discurso vem pronto e
é muito bem calculado para paralisar o raciocínio
crítico ante qualquer protesto apresentado em tons
patéticos. No caso brasileiro, a rebelião
extemporânea contra um dominador que já foi embora
há dois séculos é o melhor diversionismo
preventivo contra qualquer veleidade de revolta contra os
invasores atuais. Crianças e adolescentes são
particularmente vulneráveis a esse tipo de
manipulação psicológica, hoje aplicado em
todas as escolas com a aprovação e o
estímulo das autoridades. Não é preciso
enfatizar a brutalidade psicológica, o maquiavelismo
criminoso por trás desses esforços
soi disant humanitários. Mas é claro que
pessoas adultas, mesmo letradas, caem no engodo com a mesma
facilidade das crianças: a solicitude com que nossas
lideranças de esquerda se prestam a colaborar com os
novos invasores forma um contraste deprimente com os inflamados
discursos nacionalistas que lhes sobem aos lábios ante o
leilão de qualquer empresa estatal. E essa gente
não vê a menor contradição em
defender o patrimônio de uma nação ao mesmo
tempo que, com o discurso antidescobrimento, se nega a
legitimidade da existência mesma dessa
nação. A consciência nacional está em
decomposição, o Brasil está caindo para um
estado de menoridade intelectual que, daqui a pouco,
tornará razoáveis e legítimas quaisquer
pretensões estrangeiras de nos administrar como
colônia.
-
Não estudei os maias, mas a cultura azteca, com todo o
seu avanço tecnológico, era uma monstruosidade, um
totalitarismo sangrento fundado no sacrifício ritual de
seres humanos. Diariamente, em cada cidade e aldeia, se
arrancava o coração de uma vítima,
geralmente criança, para oferecê-lo ao deus Sol, a
pretexto de persuadi-lo a iluminar a Terra na manhã
seguinte. Em 1985 visitei o Museu da Universidade Livre e
inúmeros templos remanescentes em vários pontos do
México, lendo o que encontrava a respeito e observando,
nos monumentos e pinturas sacras, as marcas da
imaginação inconfundivelmente macabra de toda uma
civilização que não conseguia conceber a
divindade senão sob o aspecto do terrível e do
persecutório. Além disso, os aztecas foram apenas
os últimos da fila numas dezenas de povos que ali se
sucederam na base da destruição sangrenta dos
antecessores, não raro por meios de uma covardia
ímpar, como por exemplo espalhar cascavéis numa
aldeia adormecida ou convidar os membros da tribo vizinha para
uma festa e envenená-los todos de uma vez. Os
espanhóis que fizeram cessar à força esse
morticínio milenar merecem a mesma gratidão que as
tropas aliadas que destruíram o III Reich, com a ressalva
de que estas tiveram muito menos complacência com os
não-combatentes, incluindo velhos, mulheres e
crianças. A sociedade azteca era tão perversa que
já aspirava à sua própria
destruição: quando Hernán Cortez entrou com
um punhado de soldados arrasando tropas mil vezes superiores em
número, os índios acreditaram que era seu deus,
Quetzalcoatl, que voltava à Terra para um acerto de
contas. E acho que foi mesmo. Se não foi ele, foi um deus
melhor, talvez aquele a quem os espanhóis chamavam o
Espírito Santo. Se existe o direito moral de protestar
contra a extinção da sociedade e da
religião aztecas, existe também o de proclamar que
a erradicação do canibalismo, da clitorectomia ou
dos campos de concentração foi uma violência
cultural intolerável. Se em nome do relativismo cultural
pode-se justificar os sacrifícios humanos ou qualquer
atrocidade "cultural" do mesmo estilo, com muito mais
razão se poderia argumentar em favor da escravatura
mesma, afinal um hábito muito mais disseminado, menos
truculento e economicamente mais útil do que arrancar
corações para dar de comer ao Sol.
-
A história oficial diz que o canibalismo aqui só
era praticado por umas poucas tribos. Não sei. Mas muitas
outras faziam � e fizeram até recentemente -- controle da
natalidade pelo delicado expediente de sepultar vivas as
crianças indesejadas. Com a chegada da Funai, esse
costume foi progressivamente abandonado e as tribos
começaram a crescer. Muitos dos índios que hoje
gritam contra os "invasores brancos" teriam sido enterrados como
excedente populacional se a maldita civilização
ocidental não tivesse violado a integridade das culturas
indígenas, ensinando-lhes que matar crianças
não é um meio decente de reduzir despesas. Se ela
mesma aliás vem desaprendendo essa lição,
regredindo ao ponto de aceitar como normais e
respeitáveis os costumes bárbaros que outrora
ajudou a erradicar, é normal que ela perca rapidamente a
autoridade moral que tinha sobre os índios e agora
consinta em ouvir deles, com a cabeça baixa, as mais
extraordinárias absurdidades.
-
Outra sentença repetida ad nauseam nas
últimas semanas é que "os índios já
estavam aqui milênios antes da chegada dos portugueses".
Daí conclui-se que cinco milhões de índios�
a quarta parte da população da cidade de
São Paulo � tinham a propriedade legítima e
incontestável de um território maior que a Europa,
enquanto dez milhões de portugueses se espremiam numa
área exígua e passavam fome sem ter mais onde
plantar. Na verdade os índios não tinham é
propriedade nenhuma e direito nenhum, porque as tribos
espalhadas pelo território não constituíam
uma nação e nem sequer um condomínio,
vivendo antes como bandos hostis ocupados em desalojar-se uns
aos outros por meios da violência, malgrado a
abundância de espaço livre, roubando aos inimigos
não somente suas terras mas também � era o costume
� suas mulheres, às vezes também seus
cadáveres, para comê-los. E ninguém se
dá conta da verdadeira cisão esquizofrênica
que é preciso trazer na alma para poder advogar, a um
tempo, o direito de os Sem-Terra invadirem fazendas e a
legitimidade sacrossanta da posse de um continente inteiro por
um grupo que constituiria, nessas condições, a
mais poderosa casta latifundiária de todos os tempos.
-
De outro lado, os lusos também estavam na
Lusitânia, os gauleses na Gália, os bretões
na Bretanha e os saxões na Saxônia milênios
antes da chegada dos romanos. Se vieram a crescer e tornar-se
por sua vez dominadores foi porque não rejeitaram a nova
cultura como um estupro, mas a aceitaram e a absorveram como um
dom salvador e se tornaram, até com mais legitimidade do
que os romanos, seus representantes e portadores. Muitos de
nossos índios fizeram isso: abandonaram a cultura tribal,
entraram na nova sociedade, adotaram a religião
cristã. O Parlamento e as universisases estão
repletos deles, e cada família antiga deste país
se orgulha de ter mais de uma gota de sangue indígena. Os
outros caíram vítimas de uma antropologia maluca
intoxicada do "relativismo cultural" da charlatã Margaret
Mead e empenhada em conservá-los como objetos de museu e
bichinhos de estimação. Os primeiros representam a
força e a glória das raças
indígenas. Os segundos, a vergonha e a morbidez de um
atavismo insano, alimentado e manipulado por um dominador mais
rico e malicioso do que aquele contra o qual hoje ostentam uma
revolta esquizofrênica e deslocada no tempo. Nada mais
patético do que um índio que, acreditando ou
fingindo lutar contra o fantasma do domínio
português extinto, se torna instrumento e servo do
dominador globalista. O barão de Itararé tinha
razão ao contestar Auguste Comte: os vivos não
são governados pelos mortos; são governados pelos
mais vivos.
-
É verdade que, num Brasil cada vez mais afastado de suas
raízes espirituais pelo impacto avassalador do globalismo
materialista, a fidelidade dos índios às suas
tradições religiosas é um exemplo capaz de
fazer corar um frade se o frade for realmente de pedra e
não daquela substância eminentemente
não-ruborizável que forma a dupla Betto e Boff. Eu
mesmo escrevi coisas bem contundentes em defesa dessas
tradições. Mas elas adquirem valor somente como
alternativas neo-românticas ao anticristianismo militante
da sociedade moderna. Ante uma população
descristianizada, elas se tornam, de maneira quase paradoxal, um
testemunho de Cristo. Um testemunho parcial e tosco, mas, no
deserto espiritual contemporâneo, um testemunho valioso.
Mas concluir daí que são melhores do que o
cristianismo pleno é subtrair-lhes até mesmo esse
valor de contraste, fazendo delas apenas mais um instrumento de
desespiritualização do mundo. Eis por que a
preservação das tradições
indígenas é uma causa ambígua, que
só deve ser defendida com os maiores cuidados para que as
boas intenções, caminhando sobre um fio de
navalha, não sejam retalhadas e postas à venda no
mercado das mentiras contemporâneas.
-
O protesto de João Ubaldo Ribeiro só pôde
ser publicado porque veio com a assinatura de um membro da
Academia bastante queridinho das esquerdas e porque se limitou a
constatar, com a leveza habitual dos escritos desse autor, os
aspectos mais periféricos e folclóricos de uma
situação que, bem analisada, é de gravidade
trágica. Qualquer abordagem mais séria do problema
está rigorosamente proibida em toda a imprensa
nacional. O jornalista gaúcho Janer Cristaldo sofreu
ameaças, processos e exclusão do ofício
pelo crime de ter denunciado como farsa (sem jamais ter sido
contestado com fatos e argumentos) o suposto massacre de uns
índios na fronteira Brasil-Bolívia. O livro do
ex-secretário da Segurança Pública de
Roraima, coronel Menna Barreto,
A Farsa Inanomâmi (Biblioteca do Exército,
1996), a obra mais importante sobre o uso da fachada indigenista
para a ocupação da Amazônia por ONGs e
governos estrangeiros, não foi nem será noticiado
em qualquer jornal deste país. Nesse depoimento ditado no
leito de morte, e do qual dois terços foram suprimidos
pelas autoridades antes de autorizar a publicação
póstuma, o autor denuncia que nunca existiu nenhuma tribo
Ianomâmi, que uma tribo biônica foi montada
às pressas por agentes imperialistas para dar um arremedo
de legitimidade à reivindicação de um
"Estado indígena" administrado por organismos
internacionais.
-
Com mais razão ainda, estão vetadas pela censura
prévia quaisquer notícias de violências e
atrocidades cometidas por índios contra as
populações das cidades próximas às
suas reservas (e cada brasileiro que retorna dessas
regiões tem coisas horríveis a contar). Mas a
probição nâo abrange somente os fatos da
atualidade. As violências de índios contra brancos
e a crueldade interna da sociedade indígena foram
suprimidas dos livros de História, para que as novas
gerações, após a lavagem cerebral que
sofrem nas escolas, jamais venham a saber que a "brutal
destruição" das culturas indígenas
consistiu sobretudo na extinção de costumes
hediondos como o canibalismo, a liquidação
sistemática de prisioneiros, o sepultamento de
crianças vivas e o roubo de mulheres. Outro dia, num
noticiário da TV sobre uma exposição
comemorativa dos 500 anos, duas imagens mostradas uma logo
apósa outra resumiram da maneira mais eloqüente o
estado de barbárie e de estupidez a que a mentalidade
nacional está sendo reduzida pelo esforço
conjugado da mídia: primeiro, vinha o arcebispo da Bahia
repetindo melosamente os pedidos convencionais de
"perdão" da Igreja católica por ter
cristianizado os índios à força; logo em
seguida, as câmeras mostravam o manto envergado pelos
caciques durante o rito de devorar solenemente os
cadáveres de seus adversários. Pedir perdão
por ter substituído a costumes como esse a prática
da religião cristã é fazer-se,
despudoradamente, apóstolo de Satanás.
-
Raciocinando como esse prelado, eu teria também um
pedido de perdão a apresentar. Meu nome de batismo
é homenagem a Santo Olavo, rei e padroeiro da Noruega. A
história desse santo guerreirro é contada na
Saga de Olaf Haraldson, de Snorri Sturlson, leitura
deliciosa, um clássico da literatura épica. Na
juventude, Olavo notabilizou-se pelo gosto das aventuras e por
um bizarro senso de humor: mandavam-no selar um cavalo, ele
selava um bode e saía correndo para não apanhar do
avô. Ainda adolescente, comandou com sucesso batalhas
navais. Depois deu de rezar e, quando subiu ao trono, tornou-se
o sujeito que cristianizou a Noruega a muque. Antes, as
populações locais tinham costumes bem semelhantes
aos dos nossos índios: invadiam aldeias para roubar
mulheres, queimavam todos os prisioneiros, jogavam no lixo as
crianças indesejadas. Olavo mandou parar com essa
história e, para mostrar que não estava brincando,
matou os chefes e sacerdotes de várias tribos e disse que
faria o mesmo com quem não se batizasse. O pessoal
então parou de enterrar criancinhas vivas e
começou a confessar e comungar. Hediondo genocídio
cultural, não é mesmo? Pensando nos feitos
imperialistas desse meu homônimo, passo noites em claro,
batendo no peito em crises de arrependimento midiático
pela extinção da cultura viking. Afinal,
aqueles fulanos estavam lá, como aqui a turminha do
Xingu, milênios antes da chegada dos
cristãos...
24/04/00
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