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Abaixo a mal�cia: s� quem confia vence
Entrevista com ALAIN PEYREFITTE

por OLAVO DE CARVALHO - Vers�o completa

NB - Esta entrevista saiu na revista Rep�blica de julho de 1998, mas um tanto cortada para caber no espa�o dispon�vel. Por isto resolvi reproduzir aqui, por extenso, os ensinamentos que recebi, em Paris, de um dos homens mais inteligentes do mundo.

"N�o existe mais que uma e uma s� f�rmula
para fazer de um homem um homem aut�ntico:
a f�rmula que prescreve a aus�ncia de toda f�rmula.
Nossos ancestrais tinham uma bela palavra,
que resumia tudo: a confian�a."

Franz ROSENZWEIG

 

[Introdu��o]

A proverbial afei��o dos franceses �s revolu��es e golpes de estado n�o impediu que, desse povo t�o mal acomodado na ordem democr�tica nascessem, talvez em compensa��o, algumas das intelig�ncias mais aptas a captar a ess�ncia da democracia e a diagnosticar os perigos que a amea�am. O que n�o � de estranhar � que tais homens fossem t�o pouco profetas em sua pr�pria terra.

Dentre esses pregadores no deserto, o mais conhecido � Alexis de Tocqueville, o primeiro a observar, no seio da pr�pria democracia americana nascente, a contradi��o at� hoje irresolvida - e cada vez mais agu�ada - entre igualdade e liberdade. Logo abaixo dele vem Fr�d�ric Bastiat, pioneiro no diagn�stico da natureza voraz e tir�nica do Estado moderno. Menos falado, por�m altamente respeitado de quem o conhece, � Bertrand de Jouvenel, intelig�ncia implacavelmente realista que destruiu o mito das liberdades crescentes, pondo em seu lugar a demonstra��o do crescimento ilimitado do poder, da dist�ncia cada vez maior entre governantes e governados.

Esses tr�s pensadores t�m em comum o pessimismo hist�rico, a apreens�o de democratas sinceros que v�em a liberdade extinguir-se e, olhando em torno, n�o descobrem meios de defend�-la contra a marcha avassaladora do poder.

Mas este que vou lhes apresentar agora, se compartilha com eles o temor ante os perigos, destaca-se, surpreendentemente, pelo otimismo com que enxerga o futuro. Alain Peyrefitte n�o �, no entanto, nenhum sonhador. Basta ver os seus olhos para reparar que, por baixo do sorriso simp�tico, se esconde um observador tem�vel, a quem s� um tolo procuraria enganar.

O otimismo de Peyrefitte, al�m de bem contrabalan�ado por uma dose de ceticismo, � de um tipo diferente do habitual. N�o se baseia somente na esperan�a, mas na simples constata��o de um fato: a liberdade de decis�o humana, que nenhum determinismo logrou jamais revogar, seja para instaurar em lugar dela a necessidade do mal, seja a fatalidade do bem crescente. Peyrefitte � otimista pela simples raz�o de que o pessimismo � uma ilus�o deprimente baseada na presun��o de j� conhecermos o futuro. O futuro a Deus pertence, e Deus seria um verdadeiro idiota se criasse seres capazes de decis�o sem deixar na m�o deles ao menos uma parcela da responsabilidade por esse futuro. Peyrefitte � otimista porque entende que, ora mais, ora menos, � sempre poss�vel agir. E quem vai provar que n�o?

Mas estou precipitando as conclus�es. Devo dizer, primeiro, quem � Alain Peyrefitte. Membro da Academia Francesa, diplomata de carreira, estadista, historiador, cientista pol�tico, jornalista, foi colaborador, amigo e homem de confian�a do general Charles de Gaulle por tr�s d�cadas, deputado em todas as legislaturas da V Rep�blica e v�rias vezes ministro: da Educa��o, da Justi�a, do Interior, do Planejamento, da Cultura, da Pesquisa Cient�fica. Preside hoje o conselho editorial do Figaro, ainda o mais poderoso di�rio franc�s. Seu pensamento social e pol�tico j� foi objeto de muitas teses, artigos e congressos, inclusive no Institut de France, dos quais nenhuma not�cia chegou a estas plagas.

O primeiro sinal de termos percebido a exist�ncia desse esp�rito extraordin�rio foi dado no ano passado pela Casa Jorge Editorial, que publicou O Imp�rio Im�vel ou O Choque dos Mundos, em tradu��o de Cylene Bittencourt. Mas, por fascinante que seja, esse relato da expedi��o de lorde McCartney � China em 1792, se tudo nos revela sobre o mal cr�nico de um Imp�rio paralisado pela suspeita de todos contra todos, n�o nos diz muito sobre sua pr�pria liga��o com as concep��es mais gerais de seu autor sobre a natureza e o funcionamento da sociedade humana, das quais � a exemplifica��o fundada no estudo meticuloso de um caso particular. Por isso ou pela proverbial letargia que a acometeu desde h� quatro d�cadas, a imprensa cultural nem sequer registrou a edi��o dessa obra-prima da ci�ncia hist�rica, onde o rigor do m�todo, em vez de ostentar-se na l�ngua de chumbo do pedantismo universit�rio, se oculta elegantemente sob um estilo narrativo animado, pulsante e cinematogr�fico.

Coincid�ncia ou n�o, o pr�prio autor n�o come�ou por expor suas concep��es, mas por exemplific�-las num caso concreto, o do seu pr�prio pa�s. Le Mal Fran�ais, publicado em 1976, tornou cl�ssico o retrato da uma na��o ro�da pela suspic�cia, sempre em busca de um governo forte que a proteja de si mesma e de um l�der golpista ou revolucion�rio que a proteja do governo forte. Les Chevaux du Lac Lagoda, em 1981, demonstrava as ra�zes ideol�gicas e culturais da criminalidade juvenil, que aqueles mesmos que as plantaram buscavam ocultar sob um discurso convencional contra o sistema econ�mico (j� vimos esse filme, n�o vimos?). Nesses e em outros trabalhos, ora partindo do exemplo franc�s, ora do chin�s (que conheceu de perto como chefe, em 1971, da primeira miss�o oficial do Ocidente ali admitida durante os anos da Revolu��o Cultural), Peyrefitte foi tra�ando o perfil hist�rico, sociol�gico, pol�tico e administrativo da "sociedade de desconfian�a", o Leviat� paralisado pela mal�cia e por d�vidas paran�icas a respeito de si mesmo.

Foi s� em 1995 que a teoria subjacente a essas an�lises apareceu com todas as letras, primeiro numa explosiva s�rie de confer�ncias no Coll�ge de France, Du "Miracle" en �conomie, e logo em seguida na obra magna, La Societ� de Confiance, publicada pelas �ditions Odile Jacob e imediatamente celebrada como acontecimento de primeira grandeza por Pierre Chaunu, Alain Touraine, Jacques Le Goff, Raymond Boudon e muitos outros. (Alertado pelo embaixador Meira Penna, li essa obra e convenci a Faculdade da Cidade a public�-la em tradu��o - tamb�m de Cylene Bittencourt -, que estar� nas livrarias numa das pr�ximas semanas.)

A teoria come�ava por prosseguir as investiga��es c�lebres de Max Weber sobre capitalismo e protestantismo e por contestar seus resultados. O surto de progresso capitalista nos pa�ses protestantes, contemporaneamente freado nos cat�licos, n�o foi devido predominantemente a fatores religiosos, mas a fatores culturais mais amplos que determinaram a diferente atitude de cat�licos e protestantes ante a economia moderna. A diferen�a era radical: do lado cat�lico, a desconfian�a generalizada que clamava por mais controle, mais policiamento, mais burocracia, mais puni��es. Do outro, uma confian�a pujante que estimulava a criatividade, a variedade, a iniciativa. Confian�a, em primeiro lugar, dos homens uns nos outros: por que supor que o nosso pr�ximo quer o nosso mal e n�o apenas, como todos n�s, o seu pr�prio bem? Por que n�o acertarmos as coisas entre n�s e ele, em vez de chamar um terceiro para nos policiar a todos? Eis a base de toda negocia��o, de todo contrato, de toda efic�cia. De outro lado, confian�a no poder que cada homem tem de decidir, de agir, de lutar por um destino melhor conforme seu pr�prio entendimento, livre de uma autoridade acachapante que imponha a todos a camisa-de-for�a de uma no��o padronizada do "melhor".

Essa diferen�a surge, primeiro, nas id�ias, na fantasia, na cultura. Depois consolida-se em leis e costumes. Por fim, d� frutos na economia: riqueza, progresso, desenvolvimento.

O protestantismo contribuiu, sim, para esse resultado, mas menos por suas concep��es teol�gicas e morais expl�citas enfatizadas por Weber - predestinacionismo, �tica da poupan�a - do que pelo simples fato de estimular a liberdade e a variedade, livre do peso excessivo de uma velha burocracia controladora. E se enquanto isso o catolicismo atrasava o desenvolvimento econ�mico em outras partes do mundo, tamb�m n�o foi por causa do conte�do de sua f�, em si mesmo neutro economicamente, mas simplesmente porque a hierarquia, assustada, em vez de superar criativamente as oposi��es, se enrijeceu numa atitude paranoicamente defensiva que s� pensava em mais controle, mais centralismo, mais burocracia. Em certos pa�ses o desenvolvimento econ�mico foi favorecido pela aus�ncia de controles. Em outros, n�o foi apenas desfavorecido: foi detido, foi proibido, foi estrangulado no ber�o por autoridades que o confundiram, tragicamente, com os dem�nios que o cercavam. Na Espanha, em Portugal, na It�lia e parcialmente na Fran�a, o desenvolvimento n�o foi nunca um inimigo da Igreja: foi o bode expiat�rio das culpas cat�licas e anticat�licas. Ao conden�-lo, o catolicismo fez um tremendo mal a si mesmo, do qual procura agora redimir-se. Mas exagerando na expia��o, cai no extremo oposto, a ades�o aos progressismos de esquerda, que, como sempre acontece com os opostos, o leva de volta ao erro origin�rio: o culto do centralismo inibidor, agora em vers�o socialista.

A tese � t�o patente, t�o �bvia, que o ouvinte n�o resiste a se perguntar: "Por que n�o pensei nisso antes?"

A pr�pria tese responde: n�o pensamos nisso porque est�vamos infectados de materialismo hist�rico, que nos punha na pista falsa. Busc�vamos as causas econ�micas primeiro e nos recus�vamos obstinadamente a investigar outras hip�teses, mesmo quando a perseveran�a no dogma nos obrigava a apelar a explica��es mutuamente contradit�rias: a Inglaterra desenvolveu-se porque tinha carv�o; o Jap�o, porque n�o tinha carv�o. Como enfeiti�ados, projet�vamos em causas externas a responsabilidade de nossas a��es, e n�o v�amos em parte alguma a causa mais �bvia de tudo o que nos acontece: as decis�es humanas, fundadas em cren�as e valores.

O presente que a obra de Peyrefitte faz � humanidade � m�ltiplo e de uma riqueza incalcul�vel: ensina-lhe as condi��es do desenvolvimento econ�mico, re�ne os materiais hist�ricos que as demonstram, desvela-lhe o �nico obst�culo real, que reside em sua pr�pria alma, mostra-lhe os meios de super�-lo, alivia os antagonismos religiosos que a paralisam e, de quebra, liberta-a da mais opressiva e esclerosante de todas as obsess�es: o materialismo hist�rico, o determinismo econ�mico.

N�o h�, nos meios intelectuais europeus, quem n�o tenha, mesmo a contragosto, alguma gratid�o a esse desbravador da floresta das id�ias. S� alguns americanos ainda se fazem um pouco de desdenhosos, inconformados talvez de que um latino tenha compreendido o capitalismo melhor que eles.

Se o Brasil for esperto, n�o h� de empinar o narizinho, fazendo-se de superior, em vez de sentar e ouvir com humildade uma li��o que � para o bem de todos e a felicidade geral das na��es.

 

[Texto completo da entrevista]

 

CONFIAN�A: � UMA BELA PALAVRA,
TALVEZ A MAIS BELA, JUSTAMENTE PORQUE
N�O � SOMENTE UMA PALAVRA

- Um de seus primeiros ensaios j� trazia o t�tulo O Sentimento de Confian�a. Foi publicado em 1947. Voc� teve experi�ncias pessoais, de inf�ncia ou de juventude, que despertassem sua aten��o para a import�ncia decisiva da confian�a nas rela��es humanas?

A id�ia de que a confian�a � a condi��o primeira de todo desenvolvimento humano n�o � uma hip�tese escolar. Portanto ela n�o saiu do meu c�rebro como Atenas nasceu inteiramente armada do c�rebro de Zeus. E n�o se trata de uma experi�ncia privilegiada, reservada a alguns. A import�ncia da confian�a nas rela��es humanas � tal que, de um modo ou de outro, todo mundo se defronta com ela desde a primeira inf�ncia. Desde que que vem ao mundo, o homenzinho se v� confiado a seus pais, a educadores, a m�dicos. A confian�a que lhe d�o ou lhe recusam, aquela que ele ganha em si mesmo, aquela que ele concede aos outros, em suma, o clima de desconfian�a ou de confian�a no qual ele evolui constitui o elemento vital do seu desenvolvimento. O aprendizado da autonomia e da responsabilidade � a descoberta paralela da autoconfian�a e da confiabilidade do outro. Essa descoberta, � claro, n�o � necessariamente expl�cita. Algu�m � consciente do ar que respira? A confian�a, como o ar, � de tal maneira vital que s� notamos sua import�ncia quando ela come�a a faltar. A desconfian�a tinha envenenado o fim da IIIa. Rep�blica. A Fran�a tra�a a confian�a de seus compatriotas, mas tamb�m a de seus aliados. Foi talvez a fal�ncia do meu pa�s, surdo ao apelo tchecoslovaco, e a falsa confian�a inspirada nos acordos de Munique que me revelaram a import�ncia capital da confian�a.

Sem d�vida, meus pais, professores que amavam apaixonadamente seu of�cio e seus alunos, haviam despertado em mim a confian�a nas virtudes do trabalho, da lealdade, da const�ncia. Mas creio de fato que foram os dramas da nossa na��o que me serviram de despertador. E, depois, houve de Gaulle: aquele que for�ou o destino por uma confian�a sobre-humana na Fran�a e na liberdade, aquele que, no pior momento do desastre, acreditou na invers�o da derrota em vit�ria.

Pergunto-me de Franz Rosenzweig, que voc� cita, n�o buscou sua concep��o da confian�a justamente no inferno das trincheiras, por uma esp�cie se sobressalto salutar, ao ver que o humano, sob a chuva de bombas, se via reduzido a uma matr�cula obediente a ordens sem apelo e f�rmulas inaut�nticas. Ora, a confian�a n�o � uma f�rmula vazia: � um gesto unido � palavra, um ponto de apoio e de partida, ao mesmo tempo est�vel e din�mico. Confian�a: � uma bela palavra, talvez a mais bela, justamente porque n�o � somente uma palavra.

TODA POL�TICA DIGNA DO NOME
EXIGE CONFIAN�A
NAQUELES QUE A DIRIGEM

- Carl Schmitt definia a pol�tica como a confronta��o amigo-inimigo, acima de todos os valores que lhe servissem de pretexto. Sob esta perspectiva, uma "pol�tica de confian�a" n�o poderia ser sen�o uma contradi��o de termos. Como voc� define a pol�tica?

Carl Schmitt exaltou a confronta��o amigo-inimigo a um ponto que me parece inaceit�vel. Veja-o citar Saint-Just: "Entre o povo e seus inimigos, nada h� em comum, exceto a gl�ria." Para Carl Schmitt, o mal � irremedi�vel: a confronta��o armada � ao mesmo tempo uma raz�o e um meio de viver. Ele chegou a escrever, em 1947, quando, na pris�o, aguardava um eventual julgamento em Nuremberg: "Infeliz de quem n�o tem inimigo."

Schmitt fez da guerra uma fatalidade, n�o no sentido maltusiano onde "uma boa guerra nos viria a calhar", mas num sentido providencial, quase teol�gico. Foi na Teologia Pol�tica que ele escreveu: "N�o se poderia eliminar do mundo a inimizade entre os homens proibindo-se as guerras moda antiga entre Estados, propagando uma revolu��o mundial e tentando transformar a pol�tica mundial em pol�cia do mundo." Sem d�vida ele tinha em vista o fracasso da Sociedade das Na��es e de seu pacifismo irrespons�vel. Mas parece-me inteiramente perverso pensar a pol�tica internacional em termos necessariamente conflituais.

Defino a pol�tica como a mobiliza��o das energias individuais em torno de um objetivo comum. Toda pol�tica digna deste nome sup�e uma confian�a naqueles que a dirigem. Uma pol�tica internacional n�o merece o nome de pol�tica se n�o visa a uma forma de coopera��o em vista de um objetivo comum e proveitoso para todos - o que n�o exclui de maneira alguma uma s� concorr�ncia no manejo dos meios de atingi-lo. De outra maneira, a pol�tica n�o � sen�o uma guerra larvada, e a guerra, segundo o dito de Clausewitz, a continua��o da pol�tica por outros meios - continua��o inevit�vel e mesmo, em si, necess�ria do ponto de vista de Schmitt.

O VERDADEIRO LIAME POL�TICO
� O DA CONFIAN�A-ESPERAN�A,
A CONSTRU��O DE UMA OBRA COMUM

- Ainda sob esse ponto de vista, Hobbes dizia que o Estado nascera do medo, ou, o que d� na mesma, da desconfian�a. Hobbes enganou-se ou o advento desse fen�meno novo chamado "desenvolvimento" traz uma mudan�a na natureza mesma do Estado?

Carl Schmitt jamais escondeu sua admira��o por Hobbes. Em A No��o do Pol�tico, ele o chama "um grande esp�rito pol�tico" e proclama sua ades�o � concep��o hobbesiana de um estado de natureza que conduz � guerra de todos contra todos: bellum omnium contra omnes. O racioc�nio de Hobbes repousa sobre dois princ�pios, cujo desenvolvimento Schmitt admirava: 1o., cada um tem um direito ilimitado em tudo o que ele deseja; 2o., os homens t�m uma inclina��o natural a prejudicar-se uns aos outros.

Da� resultam "suspeitas e desconfian�as cont�nuas" (De Cive, I:XII), donde a guerra perp�tua. S� o medo de morrer (timor mortis), o temor pelo pr�prio corpo (bodily fear) impelem os homens ao desarmamento e � conclus�o de um pacto. Hobbes pretende que desse pacto possa nascer uma confian�a m�tua. Mas ele reconhece a precariedade dela. A confian�a, para ele, n�o passa de uma desconfian�a desarmada. � confian�a por defici�ncia, porque n�o h� mais nada a temer.

O verdadeiro liame pol�tico � o da confian�a-esperan�a, a constru��o de uma obra comum, o desenvolvimento de um empreendimento concertado, no qual os atores t�m um sentimento de ganhar, e n�o somente de salvar a pele. O pressuposto da doutrina de Hobbes � sem d�vida a id�ia de pen�ria relativa, que obriga os homens a pactuar se n�o quiserem se matar uns aos outros. Mas o verdadeiro m�vel da associa��o humana deve ser, como voc� o sugere, a esperan�a de um desenvolvimento, de um aumento dos recursos e dos servi�os, gra�as � coopera��o contratual de iniciativas livres, inovadoras e respons�veis. � mais para o lado de Locke que para o de Hobbes que se encontrar�o os fundamentos de uma pol�tica de confian�a.

� SEMPRE DOS INDIV�DUOS QUE
SE FAZ ABSTRA��O, PARA AFOG�-LOS
NUMA ESTAT�STICA GERAL

- Aquele que teve a coragem de enfatizar a a��o do indiv�duo na produ��o da Hist�ria n�o pode sen�o enfocar as "causas" e as "leis" da Hist�ria como uma esp�cie de �dolo ao qual os homens atribuem magicamente a autoria de suas pr�prias a��es. Voc� est� de acordo com Eric Voegelin quando ele diz que o hegelianismo e o marxismo s�o formas de "magia negra", uma auto-aliena��o dos poderes do homem �s pot�ncias abstratas?

De todos os cultos destrutivos, o mais perverso � o culto da abstra��o. E � sempre dos indiv�duos que se faz abstra��o, para afog�-los numa estat�stica geral, numa configura��o de conjunto, numa an�lise estrutural. N�o nego os servi�os prestados pela hist�ria serial, pela hist�ria quantitativa, pela avalia��o estat�stica. Todas essas t�cnicas permitem afinar a descri��o dos fen�menos sociais e econ�micos. Mas n�o fornecem a explica��o deles. Nem o advento do Esp�rito Absoluto, nem o movimento do conceito, nem a luta de classes, nem a lei da baixa tendencial da taxa de lucro explicam o que quer que seja.

Marx pretendia ter recolocado em p� a dial�tica hegeliana, desembara�ada da sua ganga m�stica. E, no entanto, a supersti��o te�rica n�o � menor em Marx que em Hegel. Lembre-se, por exemplo, de que a expropria��o da burguesia, que explorou o trabalhador independente, � concebida como uma "nega��o da nega��o" e se produz, segundo Marx, "com a mesma necessidade que preside �s metamorfoses da natureza". N�o estou seguro de que Hegel teria investido nesse necessitarismo tanto quanto Marx. N�o esque�amos que Hegel era um grande leitor de Adam Smith. Suas Li��es sobre a Filosofia da Hist�ria desvelam, no meio das ast�cias intermin�veis da raz�o, a audaciosa iniciativa do indiv�duo humano.

- Em A Sociedade de Confian�a, voc� disse que a enc�clica Mater et Magistra trouxe o reconhecimento da iniciativa individual na promo��o do desenvolvimento. Por que ent�o o pontificado de Jo�o XXIII e o Conc�lio Vaticano II acabaram por favorecer de tal modo as correntes esquerdistas e socialistas da Igreja?

Na Mater et Magistra, afirma-se, principalmente, que tudo no mundo econ�mico resulta da iniciativa pessoal dos particulares, quer ajam individualmente ou associados de diversas maneiras para a busca de interesses comuns. Sua exalta��o do "g�nio criador dos indiv�duos" contrastava evidentemente com o modelo estruturalista que ent�o estava no apogeu.

Mas, como o magist�rio mencionava o princ�pio da destina��o universal dos bens, e como ele condenava a injusta reparti��o dos meios de produ��o, a reivindica��o da "iniciativa pessoal e aut�noma em mat�ria econ�mica" acabou sendo obliterada em proveito de uma teologia da liberta��o que consistia, de fato, em libertar-se de toda teologia. A Igreja julgou in�til reiterar sua condena��o do materialismo hist�rico. Mas n�o se tratava de um sil�ncio de aprova��o. Evidentemente, os ap�stolos do marxismo crist�o compreenderam de outra forma: "Quem cala, consente." E a p�rpura cardinal�cia foi enrolada � for�a sob a bandeira vermelha.

O MATERIALISMO DAS NEUROCI�NCIAS
INDICA QUE OS CIENTISTAS
T�M MEDO DA INICIATIVA INDIVIDUAL.

- O materialismo hist�rico, desmoralizado enquanto teoria, permanece muito forte enquanto pressuposto inconsciente entre os intelectuais. Na sua opini�o, isso ainda vai durar?

� espantoso ver o materialismo sobreviver aos desmentidos sangrentos que lhe s�o infligidos pela hist�ria e pela ru�na material das sociedades que ele construiu, quer dizer, destruiu. Mas o prest�gio do materialismo ainda est� intacto entre os intelectuais. Seu poder simplificador continua a fascinar os esp�ritos: ele � sedutor porque � redutor. Certamente, ningu�m mais ousa falar abertamente de for�as produtivas e de rela��es de produ��o, das contradi��es dial�ticas do capital e da luta de classes. Mas, na constru��o do mercado mundial, n�o se fala sen�o de estruturas, de institui��es, de uniformiza��o. Similarmente, o desenvolvimento das neuroci�ncias numa dire��o estritamente materialista indica o medo que os cientistas t�m da capacidade de iniciativa do indiv�duo. Queira-se ou n�o, s�o os homens que fazem a hist�ria, e n�o ela que os faz. Mas uma moda intelectual, corrente nas ci�ncias humanas, considera esta asser��o uma heresia. Se nos abandon�ssemos a essa moda, essas ci�ncias n�o teriam de humanas sen�o o nome. Dever�amos cham�-las ci�ncias da mat�ria humana.

Parece que Bergson explicou muito bem essa tend�ncia da intelig�ncia humana � rigidez geom�trica, essa predile��o pelos organogramas impessoais, essa reca�da da energia espiritual na in�rcia material.

O MANIQUE�SMO
AINDA TEM
BELOS DIAS PELA FRENTE

- A for�a persuasiva do materialismo hist�rico sendo devida em grande parte � impregna��o do imagin�rio coletivo pelas artes e espet�culos (o "Titanic" acaba de explicar pela luta de classes o naufr�gio da civiliza��o), n�o lhe parece que uma nova vis�o das coisas permanecer� ineficaz enquanto n�o influenciar a mentalidade dos artistas?

Voc� acredita mesmo que O Encoura�ado Potemkin ou os Coros do Ex�rcito Vermelho tenham contribu�do para impregnar nos esp�ritos as teses do materialismo hist�rico? A �ltima cena do Potemkin exalta a conting�ncia da livre ades�o fraternal � Revolu��o. Quanto aos Coros do Ex�rcito Vermelho, eles cantam os feitos de Tchpaiev ao transpor o Ural, ou os de Kutusov diante dos ex�rcitos de Napole�o. Eles se exibem no mundo inteiro: s�o uma das raras institui��es que sobreviveram ao regime comunista. S�o belas vozes de baixos em uniforme: mas n�o s�o argumentos em favor da dial�tica do marxismo-leninismo. Creio antes que a for�a persuasiva do materialismo hist�rico est� em todos os esp�ritos, em estado de lat�ncia, Ela exprime a seguran�a de um esquema inelut�vel, o culto da ci�ncia que se pretende "pura", o mito da infalibilidade, o medo da inova��o, e, no fim das contas, a tend�ncia � desconfian�a. N�o nego que cineastas e romancistas se deleitam nos enredos da luta de classes. Mas ser� por culpa deles que o p�blico ainda os aprecia? O manique�smo ainda tem belos dias pela frente.

SOMOS TODOS
MATERIALISTAS HIST�RICOS
INCONSCIENTES

- O liberalismo, vencedor no campo econ�mico, n�o corre o risco de naufragar se a cultura permanecer sob a hegemonia socialista? O liberalismo n�o estar� caindo v�tima de um materialismo hist�rico inconsciente?

Sua sugest�o � sutil e subscrevo-a de bom grado. Somos todos, em diversos graus, materialistas hist�ricos inconscientes. Aderimos espontaneamente, mesmo quando somos persuadidos do contr�rio, � tese do primado da infra-estrutura econ�mica e material sobre a superestrutura cultural e espiritual. Esta tend�ncia inata ao fatalismo oferece uma seguran�a intelectual e um �libi contra a exig�ncia de responsabilidade e o desafio da adapta��o cont�nua.

Novamente, a hegemonia cultural socialista n�o �, em si mesma, uma fatalidade. � preciso crer que o p�blico das democracias encontra alguma satisfa��o nela e alivia, por esse meio, um forte sentimento de culpabilidade em rela��o �s responsabilidades que n�o foram assumidas. Privada de seu inimigo heredit�rio (o comunismo), a economia de mercado deve gerir sozinha a cria��o e a partilha de riquezas. Ela deve enfrentar o desafio de um desenvolvimento humano e eq�itativo, fundado em iniciativas livres e competitivas.

O LIBERALISMO ECON�MICO
N�O PODE SOBREVIVER
SEM UM LIBERALISMO CULTURAL

- Na mesma linha de pensamento: n�o ser� um erro tr�gico supor que a liberaliza��o da economia seja a condi��o necess�ria e suficiente de todas as outras liberdades? N�o � conceb�vel que um Estado possa ser liberal em economia e ditatorial e tudo o mais? Por exemplo, nos Estados Unidos o liberalismo � hegem�nico em economia, o estatismo recua, mas � crescente a interven��o do Estado na vida privada dos cidad�os.

O estruturalismo de inspira��o marxista formulou, na esteira de Ernest Labrousse, uma nova "lei dos tr�s estados": o Econ�mico comanda o Social, e o Social comanda o Mental. Se fosse assim, bastaria liberalizar a economia para liberalizar a sociedade e a cultura. Voc� cita, com raz�o, o exemplo dos Estados Unidos.

Pode-se dizer que os Estados Unidos s�o "libert�rios" (libertarian) no plano econ�mico, mas "comunit�rios" (communitarian) no plano social. Tudo se passa como se o extremo desregramento do emprego, dos pre�os, dos sal�rios fosse compensado pelo acr�scimo de controle social.

A profecia de Tocqueville confirma-se portanto com uma precis�o espantosa. Como atores da vida econ�mica, os americanos "giram sem repouso em torno de si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres... Cada um deles, retirado num canto, � como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam, para ele, toda a esp�cie humana. Quanto �s priva��es por que passam seus concidad�os, ele est� ao lado deles, mas n�o os v�". Em contrapartida, como cidad�os dos Estados Unidos, eles est�o submetidos a um "poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar o seu poder e velar sobre a sua sorte, n�o buscando sen�o fix�-los irrevogavelmente na inf�ncia" (Da Democracia na Am�rica, T. II, parte 4, cap. 6).

Na China, temos outro caso do lema "Economia primeiro", para evitar que a express�o cultural e psicol�gica das frustra��es materiais acumuladas em quarenta anos de comunismo comprometa a passagem progressiva e prudente a uma liberaliza��o cultural. As "Cem Flores" tornaram os chineses prudentes. Mas, ao contr�rio do que se passa nos Estados Unidos, o controle social dr�stico vai afrouxando progressivamente, ao passo que nos Estados Unidos assistimos a uma regress�o quase infantil.

Em todos os casos, o liberalismo econ�mico n�o pode se expandir e sobreviver sem um liberalismo cultural e psicol�gico, isto �, sem uma cultura e um clima de confian�a: confian�a na competi��o de iniciativas respons�veis, confian�a na mobilidade intelectual, geogr�fica, profissional, aposta na adapta��o, na inova��o, nas trocas.

A IDEOLOGIA GAY
EXPRIME UMA DESCONFIAN�A
ANTE O OUTRO SEXO

- As novas correntes de opini�o que cresceram depois da �ltima Guerra Mundial (feminismo, negritude, ideologia gay, etc.) n�o s�o de natureza a favorecer antes a desconfian�a do que a confian�a?

Essas novas correntes de opini�o nasceram do choque de duas guerras mundiais. A emancipa��o das mulheres, por exemplo, come�ou no dia seguinte da Primeira Guerra: enfermeiras e oper�rias do armamento n�o queriam voltar para casa como se nada tivesse acontecido. Do mesmo modo, as col�nias africanas solicitadas pelo esfor�o de guerra tomaram consci�ncia de que seus "deveres" implicavam o reconhecimento de "direitos". A descoloniza��o � o produto das duas guerras.

Mas, ao lado dessas justas reivindica��es, ou no seu seio mesmo, exprimem-se tend�ncias ao encolhimento, � vontade de cada um ser ele mesmo sem o outro, de ficar "entre os seus", sem mistura, sem capacidade de integra��o, sem esfor�o de adapta��o. � uma rea��o compar�vel � regress�o endog�mica que afeta certas sociedades "primitivas".

Pode se perguntar se a ideologia gay que se diz tolerante, aberta, etc., n�o exprime, em muitos casos, uma desconfian�a ante o outro sexo, um medo da diferen�a sexual. A verdadeira confian�a, em contrapartida, n�o � nem confinamento em si nem fus�o e perda de si.

TANTO FAZ MATAR INOCENTES
EM NOME DO PROLETARIADO
OU DA RA�A SUPERIOR

- Uma coisa que me espantou muito desde que cheguei � Fran�a na semana passada, � que todo o mundo parece associar muito facilmente o Front Nacional do Sr. Le Pen � hist�ria dos crimes nazistas, enquanto se obstina em n�o fazer nenhuma associa��o an�loga entre a extrema esquerda e os crimes incomparavelmente maiores do regime comunista na URSS, na China, etc. Por que � t�o f�cil ser esquerdista sem jamais ser responsabilizado pelos males do stalinismo enquanto todo o homem de direita est� sempre sob o risco de ser associado ao neofascismo? Por que � t�o f�cil atrair a desconfian�a contra os homens de direita?

A fascina��o dos intelectuais pela ideologia marxista introduziu dois pesos e duas medidas na avalia��o dos crimes contra a humanidade. Fazem como se os milh�es de homic�dios perpetrados pela Uni�o Sovi�tica n�o fossem da mesma natureza que os cometidos pela Alemanha nazista.

Torturar e matar um inocente em nome do proletariado ou da ra�a superior, n�o deveria ter nenhuma diferen�a. Parodiando uma f�rmula c�lebre, poder-se-ia dizer que mais vale errar com Stalin que com Hitler. No entanto, a biologia ariana e a biologia sovi�tica s�o imposturas do mesmo n�vel. E mesmo supondo-se que o marxismo-leninismo fosse "cientificamente superior", nenhum saber, nenhum programa justifica a elimina��o f�sica ou moral de um s� indiv�duo. � tempo, como o diz Hannah Arendt, de compreender que os extremistas de direita e de esquerda est�o solid�rios no crime.

Voltando aos sobressaltos da pol�tica francesa, deve-se sublinhar a evidente m�-f� de uma esquerda que se faz de virgem assustada pelas "vozes do Front Nacional", quando ningu�m se comove com as vozes do PC, sem falar da extrema esquerda ainda mais dura. Reconhe�amos, todavia, que as declara��es turvas, talvez perversas do presidente do FN sobre as desigualdades das ra�as, sobre o "detalhe" dos cremat�rios, a posi��o flutuante que ele mant�m entre o leg�timo controle da imigra��o e um desencadeamento de fun��es xen�fobas, tudo isto favorece a associa��o do FN � hist�ria dos crimes nazistas.

- De modo mais geral: se a direita aceita renunciar a toda alian�a com a extrema direita enquanto a esquerda conserva seu direito de fazer alian�as com quem quer que seja (at� mesmo com a extrema direita), a direita n�o estar� em vias de cometer suic�dio? Que ser� da pol�tica francesa amanh�, na sua opini�o?

As elei��es regionais e cantonais de 1998 se desenrolaram numa atmosfera de armadilhas e de chantagem. A esquerda chegou a intimidar a direita e a lhe ditar seu comportamento face aos eleitores. Ela pretendeu dar li��es de republicanismo brandindo o FN como um espantalho (ela, que sempre traficou o modo de escrut�nio para dividir a direita, favorecendo o FN). � urgente sair dessa l�gica das alian�as e dos casamentos de ocasi�o, desses an�temas republicanos e dessas excomunh�es.

As direitas podem e devem se reunir. Elas s�o majorit�rias no pa�s. Elas devem reconquistar para um programa de direita toda a sua base eleitoral, incluindo os eleitores do FN, que n�o pertencem nem � esquerda que se serve deles para desacreditar a direita, nem � direita cl�ssica que precisa de seus votos. Os eleitores que votaram no FN s� pertencem a si mesmos. Se eles sucumbem �s sereias do racismo e da xenofobia, n�o queremos o seu apoio. Se eles aceitam uma pol�tica de direita que respeite os direitos humanos, devemos prop�-la. A exaspera��o deles � t�o respeit�vel quanto a c�lera dos partid�rios da Liga Comunista Revolucion�ria. A �nica sa�da para a pol�tica francesa � suspender o an�tema que pesa sobre os eleitores do FN e apresentar-lhes uma verdadeira pol�tica de direita, sem �dio nem vingan�a, uma pol�tica de exig�ncia, de respeito, de solidariedade e de empreendimento, em suma: uma sociedade de confian�a.

COMUNISMO E NAZISMO
EXPLORARAM O RESSENTIMENTO
DAS MINORIAS �TNICAS

- A confian�a n�o ter� entre seus pressupostos indispens�veis a unidade ou a coer�ncia da cultura, isto �, dos sentimentos e valores? Como voc� enfoca uma pol�tica de confian�a nas condi��es do "multiculturalismo"?

A confian�a � ao mesmo tempo causa e efeito da coes�o cultural. Sem l�ngua comum, sem valores compartilhados, sem pontos de refer�ncia coletivos, nada de confian�a. Mas, sem confian�a, os pontos de refer�ncia desabam, os valores divergem em fun��o de interesses particulares. A l�ngua mesma cessa de ser um instrumento de transmiss�o e de coes�o, para se tornar um crit�rio de segrega��o, talvez de exclus�o. Ela era uma via de comunica��o: torna-se uma barreira. Nossos soci�logos descreveram esse fen�meno de esclerose, ao qual eles pr�prios cederam. Em Ce Que Parler Veut Dire ou em La R�production, Pierre Bourdieu p�s em evid�ncia o papel discriminante dos usos ling��sticos, mas o fez numa l�ngua que, ela mesma, raramente � acess�vel ao comum dos mortais...

Ele deveria ter tirado da� a conclus�o que se imp�e: a perda, num povo, de sua identidade nacional, constitui uma amea�a � indispens�vel confian�a social. As experi�ncias de biling�ismo oficial mostraram que n�o se troca de cultura como se troca de camisa.

Goethe dizia que quem n�o conhece l�ngua estrangeira n�o conhece verdadeiramente a l�ngua materna. Creio nisso tamb�m. Mas o contato e o interc�mbio com o outro n�o implicam a fus�o, a intercambiabilidade, a indiferencia��o. Ali�s, o universalismo for�ado prepara o leito dos separatismos, das reivindica��es agressivas, como o mostraram as ex-federa��es das Rep�blicas socialistas.

N�o esque�amos que Stalin come�ou sua funesta carreira como comiss�rio das nacionalidades, nem que o regime nazi explorou sistematicamente as frustra��es das minorias �tnicas.

As etnias s�o como o Etna. Parecem ter perdido todo car�ter vital, e sua atividade parece reduzir-se a alguns n�meros folcl�ricos, sobreviv�ncias de um long�nquo passado de erup��es e de conflitos. Mas, tente-se extinguir essas manifesta��es de superf�cie, e elas voltam com toda a for�a, vomitando lavas ardentes. O cosmopolitismo, quando perde o respeito pela alma dos povos, parece-se com um edif�cio constru�do sobre a boca de um vulc�o. O concerto das na��es deve permanecer uma polifonia, onde muitas vozes, de timbres variados, se juntam e se superp�em em ritmos diferentes mas harmonizados, onde os refr�es e as coplas se respondem de parte a outra. Uma monotonia for�ada engendraria a disson�ncia e a disc�rdia. O un�ssono for�ado produz a desuni�o.

� preciso portanto levar a s�rio o multiculturalismo. Longe de ser um obst�culo que se deve pulverizar, ele poderia bem constituir um ponto de apoio necess�rio � Organiza��o das Na��es Unidas, como o pressentiu Claude L�vi-Strauss. Unidas n�o quer dizer uniformes, nem reduzidas ao id�ntico. O mito de uma identidade universal revela-se t�o perigoso quanto a cultura sistem�tica dos particularismos locais.

Ningu�m det�m o monop�lio do humano, e sobretudo n�o a det�m nenhuma institui��o que pretenda representar as aspira��es de todos os homens, sem pedir a opini�o deles.

A NOVA ORDEM MUNDIAL:
BUROCRACIA EM CIMA,
CAOS E BANDITISMO EM BAIXO

- Num mundo em que as organiza��es criminosas como a m�fia russa expandem por toda parte uma atmosfera de segredo e de conspira��o, enquanto por outro lado vai se constituindo algo como um Estado mundial, ou ao menos uma pol�cia global para enfrent�-las, os fatores de desconfian�a n�o tendem a se tornar incomparavelmente mais fortes que os fatores de confian�a? Como voc� enfoca uma sociedade de confian�a em escala mundial?

A nova ordem mundial arrisca muito parecer-se a um edif�cio muito inst�vel. Na superf�cie e em altura, uma burocracia universalista segura da exatid�o de seus planos. Mas, nos por�es do edif�cio, uma rede subterr�nea de lutas de influ�ncias, de mercados clandestinos.

A �nica alternativa ao desenvolvimento do banditismo � a aplica��o vigilante do princ�pio de subsidiariedade; a recusa de concentrar a organiza��o da sociedade, das trocas, dos pre�os agr�colas, a um n�vel muito elevado. A confian�a � vivida na rela��o bilateral de troca de bens e de servi�os, no respeito das especificidades locais. Ela n�o se decreta pelo alto, pois a confian�a n�o se ordena. � ela que ordena tudo.

� a partir de micro-sociedades de confian�a - empresas, associa��es culturais, grupamentos de interesses econ�micos, que se edifica uma sociedade de confian�a em escala mundial - e n�o ao inverso.

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