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Como é chato ser MODERNO
Gustavo Nogy
NOTÍCIAS DO FRONT: corre em plenário projeto de lei que – por favor, tomem seus assentos – regulamenta a, aspas, profissão de filósofo. O autor da enormidade é o deputado Giovani Cherino (PDT-RS), orgulhosíssimo, imagino, de suas lides parlamentares. Fui conferir o lattes da sumidade. (Tirem as crianças da frente do computador). Graduado em Cooperativismo e pós-graduado em Economia Rural. E, agora, ele é o homem que vai dizer quem é e quem não é filósofo por estas plagas. Sejamos justos: não exatamente ele, mas a nobilíssima Academia Brasileira de Filosofia, que conta entre seus veneráveis membros e demais luminares da ciência com os senhores – agora doutores honoris causa – João Havelange, Michel Temer e Carlos Alberto Torres (para quem não sabe, grande médio-volante no título da seleção brasileira de futebol de 1970, autor de um gol que vale mais, feitas as contas, que a obra de uns e outros doutores por aí; mas isso são histórias outras). Segundo nos autos consta, a Academia Brasileira de Filosofia “é a representante da filosofia e língua filosófica nacionais”, e parece-lhes evidente – e quem sou eu para discordar – que “(...) o Estado pode e deve agir no sentido de regular o exercício da profissão de filósofo no país, estipulando as condições de habilitação e as exigências legais para o regular exercício da mesma, além de seu âmbito de competência”. Stalin não diria melhor. Stalin não diria melhor, mas quem o disse foi o senhor João Ricardo Moderno, presidente da dita Academia, na justificativa do projeto. Agora filósofo é profissão, sim senhor! E com carteira de trabalho assinada, décimo terceiro, férias (período em que, imagino, o filósofo deixa de lado a filosofia e justifica certos projetos de lei) e carteirinha da Academia. Quem não tem não é, salvo se mantiver união estável por mais de cinco anos com a musa grega. Se filosofia é profissão e há filósofos devidamente empregados, inevitável imaginar que, em breve, a depender das flutuações do mercado financeiro internacional, teremos hordas de insuspeitos pensadores à espera do seguro-desemprego ou, o que é pior, fazendo biscates quaisquer. Melhor pensar duas vezes antes de, com a antiga displicência, pedir ao ascensorista: “Terceiro, por favor”. Ele pode ser um genuíno filósofo em temporário desvio de função e, da sua pergunta, leva-lo não ao andar desejado, mas aos mais altos níveis da abstração metafísica. Taxistas, por sua vez, serão sempre suspeitos. Todo taxista é um Heidegger inconfesso. Mas, guardadas as proporções devidas, a posição estapafúrdia da Loucademia não deixa de ser a conclusão levada aos limites, no que toca à regulamentação (e, em consequência, a tudo o que isso implica) dos estudos de filosofia (e não só). Obviamente, cursos universitários não formam filósofos, mas professores de filosofia. Porém muitas, muitas vezes não é bem isso o que se nota quando um sujeito é entrevistado, ou citado num artigo, ou tem seu nome sob a foto de uma qualquer coluna social. Formou-se em filosofia na USP ou na UNITANTÃ – em princípio, tanto faz – e já se diz, e dizem do fulano: “Filósofo”. E os colegas acham bonito porque, claro, serve pra eles também. Trocam-se socráticos confetes. Convenhamos: mesmo aqueles que seguiram os protocolares trâmites e fizeram graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado (França, Sorbonne – Paris 2,7/+05/68) e ostentam mais medalhas no peito que veterano de guerra não são, necessariamente, filósofos, no sentido estricto do termo. Idem para os formados em letras que não são escritores. E para aqueles formados em artes plásticas e assim por diante. Espero estar dizendo platitudes. Pois bem: se cursos universitários não formam filósofos e nem sempre formam sequer bons comentadores de filosofia; se - Deus nos perdoe! -, muitas vezes não formam nem mesmo razoáveis professores de filosofia (está aí o Safatle que não me deixa mentir), por que diabos o título universitário há de ser tão importante assim? Filósofo não é mais ou predominantemente o individuo que, herdeiro de uma tradição que remonta a Sócrates, Platão e Aristóteles, dedica-se a, sobretudo, educar sua própria alma e ser capaz de nela encontrar alguma ordem para só então estudar certos problemas – os problemas que lhe surgirem como tais, desde o centro mesmo do seu ser e do sentido que lhe cabe (Frankl) –, sob a perspectiva ou à luz da filosofia, mas sim aquele que, desde os cueiros, do bacharelado ao pós-doutorado, reza pela cartilha do grêmio acadêmico? A própria idéia de produção acadêmica me causa sartreanas náuseas: como é possível que todo ano, centenas, milhares de alunos país (mundo) afora em cursos de filosofia produzam dissertações e teses de extrema relevância? Será possível mesmo fazer isso: produzir conhecimento? Vejamos: o professor Newton Carneiro da Costa meteu-se a investigar umas questões algo abstratas e, sozinho (ainda que um ou outro tenha chegado, de forma independente, a resultados semelhantes, salvo engano), descobriu ou desenvolveu os princípios todos da Lógica Paraconsistente. Ele foi e fez. É um exemplo. Miguel Reale e sua Teoria Tridimensional do Direito, outro. Mas e então? Os outros todos estão aí nas salas produzindo ciência, realizando insondáveis descobertas que muito em breve nós vamos acabar por conhecer? É possível chegar e “Vai lá pro quarto produzir ciência, moleque!”, e o sujeito voltar, três anos depois, todo feliz dizendo: “Produzi um conhecimento aqui, fessor!”. Essa coisa de que conhecimento é algo a ser produzido, do modo como é colocada, é como chegar no sujeito que inventou a roda e exigir: “Agora, para doutorado, trate de imaginar um outro negócio aí, porque aquele seu colega já descobriu o fogo...”. E tudo isso que, em filosofia ou ciências, já soa absurdo (espero que não só pra mim, mas ao menos para mais uns dois ou três leitores) – que dizer em artes, então? “Olha aqui, Oh seu Picasso: ou você me produz uns quadros para o mês que vem, ou te corto aquela verba da CAPES. Então te vira!”. E assim nasce o cubismo. Pensando bem: não é de surpreender que uns coitados tenham de inventar cura quântica, terapia à base de toques com os cotovelos de sábios chineses, ou mesmo, por que não?, a regulamentação da, aspas, profissão de filósofo. Monty Python seria impossível no Brasil: não dá pra fazer nonsense do nonsense.
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