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Filósofos & Entomologistas
Gustavo Nogy
“Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno” (Mt.5.37) DE FORMIGAS ENGENHEIRAS E CIGARRAS MÁGICAS eu nada entendo. Entomologia não é exatamente o maior dos meus interesses intelectuais. Não tenho também – e isso passa longe de falsa modéstia, virtude que muitas vezes me falta – a pretensão de contribuir para o debate entre os filósofos continentais e os filósofos analíticos. Noto apenas que essa divisão, tão arbitrária quanto qualquer outra, foi criada, ou imaginada, pelos últimos, e isso me parece revelar muito mais sobre estes do que sobre aqueles. Salvo engano, a filosofia analítica já há um bom tempo passou a considerar as questões éticas, axiológicas e metafísicas como questões reais e substantivas. A polêmica ora em curso – e aqui deixo claro que não vou sequer entrar nos méritos intelectuais respectivos – teve como gatilho o texto do meu amigo Julio Lemos. Todo mundo já leu, releu e tresleu o texto. Se debates acalorados não são exatamente novidade no estranhíssimo mundo virtual (subconjunto do estranhíssimo mundo intelectual brasileiro), este tomou proporção considerável. E por um motivo muito simples: um tal de Olavo de Carvalho foi chamado às falas; pra ser mais preciso, foi comparado às tais cigarras mágicas. E isso, como diria um outro que vagamente conheço, não me parece belo e moral. A rigor, Julio Lemos propõe uma cisão entre dois tipos diferentes de filósofos: os pensadores-cigarras, dados às grandes e muitas vezes estéreis especulações e ao beletrismo – ou, o que é pior, às conspirações políticas e culturais –, e de outro os pensadores-formigas: sisudos, impopulares, fazendo o trabalho duro e levando a filosofia pra frente. Olavo de Carvalho, como todos sabem muito bem, entra na história como representante dos primeiros, já que foi também o primeiro e por muitos anos o único intelectual brasileiro a denunciar, com abundância de documentos e centenas de artigos, as reuniões estratégicas e os planos de ação do Foro de SP e a hegemonia cultural esquerdista. Não é que a carapuça tenha servido ao Olavo. De maneira alguma. Julio Lemos se referia mesmo a ele – amizades, formigas e cigarras à parte – numa provocação pueril e inadequada. Olavo de Carvalho, por sua vez, não faz e nunca fez questão alguma de fugir de uma briga. Esse é, por sinal, um dos seus méritos. Não é qualquer um que enfrenta, sozinho, os ilustres decanos e os senhores doutores de todos os departamentos de filosofia das maiores universidades brasileiras e tem como resposta, se não muitas vezes o silêncio de afetado desdém, as reclamações de que anda falando muitos palavrões e não é digno, portanto, de ser lido em horário nobre. Olavo de Carvalho só depois das 22h. O que sinceramente me espantou foi o texto publicado na excelente Dicta ter sido editado e a menção ao filósofo paulista como um desses preocupados com conspirações de Foro de SP ter sido simplesmente suprimida. Feito isso, sua reação soou absurda, desproporcional, desfocada. Editado o texto, suprimida a insinuação, sobrou para o provocado a imagem de maluco que tantos gostam de sugerir. Mas quem o leu assim que publicado, leu o que lá estava escrito. Nunca é demais lembrar que o escritor teve ao menos dois longos ensaios publicados na revista, o que me leva a escolher uma entre duas conclusões possíveis: ou a Dicta&Contradicta é mesmo uma excelente revista e tem por princípio publicar bons textos de colaboradores sérios, ou talvez não seja tão excelente assim, já que aceita, sazonalmente, a colaboração de pensadores pouco sérios, dados à verborragia e às conspirações políticas típicas de gente maluca. De todo modo, no editorial da terceira edição, lá está (grifos meus): É preciso também fazer uma especial e agradecida referência ao artigo de Olavo de Carvalho, outro que teve de “tirar leite de pedra”, horas de onde não as havia, para atender ao nosso pedido de um artigo sobre Mário Ferreira dos Santos. Era uma dupla homenagem que precisávamos fazer havia já algum tempo: Olavo despertou intelectualmente toda uma geração de jovens brasileiros, e continua a ser hoje o único capaz de analisar com o devido conhecimento de causa a solitária figura de Mário Ferreira. http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/editorial/ E foi mesmo, convenhamos, uma provocação desnecessária e também nada filosófica. Num post dedicado a destacar a importância do filósofo Michael Dummet, Julio Lemos acha um jeito de: a) dividir filósofos em duas categorias, uma das quais representando os mais sérios e outra os menos sérios; b) sugerir assim que certo filósofo muito bem conhecido faz parte destes últimos (ou alguém vai fazer de conta que não entendeu a piada?) c) dar a entender, por fim, que o Foro de SP não passa de uma conspiraçãozinha sem importância. Importante mesmo é a lógica matemática e seus cultores, ainda que, eventualmente, tenhamos de viver sob regimes comunistas. Por outro lado, a breguice – assumida, diga-se, pelo próprio, muito mais bem humorado e cordial no trato pessoal do que imaginam aqueles que não o conhecem – ou o ímpeto belicoso e mesmo escrachado do denunciador de conspirações pode não agradar a todos; a mim me desagrada vez ou outra, mas me desagrada menos, ou tanto quanto, o pernosticismo, a pose blasé, a afetação calculada com que alguns lidam com a vida intelectual e com questões um tanto quanto sérias demais para serem tidas apenas como confabulações de botequim. Se o Foro de SP existe – reuniões, documentos, atas e acordos atestam a existência da organização; se, de facto, ele reúne as lideranças comunistas e terroristas de quase todos os países da América Latina; se, não por coincidência, praticamente todos os países do continente sul-americano tem como presidentes – ou ditadores – tais lideranças comunistas, o que vem a ser, exatamente, essa teoria da conspiração? O diagnóstico estava – e está – correto. Esse continente perdido é mesmo um antro de comunistas, narcotraficantes e capitalistas de estado. Mas, graças a Deus!, talvez o prognóstico tenha, por força de circunstâncias que nunca podem ser previstas, sido alterado. A História não é mesmo “o resultado impremeditado das nossas ações”? Há não muito tempo, eu discutia com um rapaz de resto inteligente sobre isso. Dizia ele, todo pimpão e garboso, que “A ditadura stalinista anunciada pelo Olavo não aconteceu!”. Ao que respondi: “E então somos um paraíso liberal-capitalista, não é mesmo?”. “Ah, não é isso, é que não houve aquele derramamento de sangue todo...”. Pelo jeito, apesar de admitir que a descrição dos factos estivesse correta, ele aparentemente ficou indignado com a falha no prognóstico: nós não nos tornamos um estado totalitário. Não que isso seja coisa descartada. Sempre se pode esperar o pior das alianças políticas, e se me contassem, algumas semanas antes, que certas torres seriam destruídas cinematograficamente por uns terroristas muçulmanos no país mais poderoso do planeta, eu aconselharia meu interlocutor a ponderar que certas pirotecnias só acontecem nos filmes do Tom Cruise. Infelizmente para o nosso prezado Fukuyama, a história não chegou ao fim, a democracia liberal não triunfou e é sempre bom levar a sério quando uns terroristas resolvem trocar umas ideias amenas sobre como reconquistar na América Latina o que perderam no Leste Europeu. Os milhões de mortos mundo afora e os milhares de perseguidos políticos nos países aqui da periferia por uma ideologia nefasta e diabolicamente persistente devem mesmo preferir as formigas-engenheiras: elas, afinal, são as capazes de, cheias de matemática e seriedade inexorável, calcular o número exato da degradação. O mais o irônico da história toda é um crítico político e cultural ser menosprezado pela falha não no diagnóstico do fenômeno, mas no prognóstico: decerto torciam para que o banho de sangue acontecesse mesmo. E não me parece nem um pouco exagerado notar que talvez as condições para uma ditadura comunista no país tenham se tornado menos favoráveis justamente por que, a começar por um único homem, muitos outros foram tomando consciência dos perigos que o predomínio cultural esquerdista quase que absoluto oferecia. Olavo de Carvalho, engulam ou não, gostem ou não, admitam ou não, criou sozinho as condições para que tantos outros falassem de conservadorismo, direita, religião e anarco-capitalismo sem que para isso tivessem de negar, a cada duas linhas escritas, o rótulo de fascistas. Tais condições não existiam antes, e muitos dos que hoje fazem cara de nojo quando ouvem o nome do famigerado são os mesmos que, poucos anos atrás, citavam-no largamente como referência quase incontornável. Olavo despertou intelectualmente toda uma geração de jovens brasileiros. Está aí o utilíssimo web.archive.org que não me deixa mentir. Ele se lembra do que fizemos no verão passado. Mas a vida intelectual brasileira, nos últimos anos, tem obedecido a esta regra: lidos certos livros, anotadas certas referências, absorvidas certas ideias, o problema está resolvido: gênios instantâneos que somos, já pagamos nossas contas e pairamos agora nos mais altos céus da abstração filosófica. Rejeitamos como pouco filosóficos os palavrões e o linguajar grosseiro de uns, mas cultivamos afetações, poses, provocações e ironias como se isso sim fosse sinal inequívoco de maturidade intelectual. Não me parece atitude muito razoável para começar uma conversa. Se é pra falar a sério, fale-se a sério desde o princípio. E sem edição de texto. Como diria o saudoso Vicente Matheus: “Quem está na chuva é pra se queimar”.
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