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Meira Penna, psicólogo social
Comunica��o enviada por Olavo de Carvalho ao simp�sio do Instituto Liberal
(Londrina, 12 de setembro de 1989) em homenagem ao embaixador Jos� Osvaldo de Meira Penna.

 

Lamento n�o poder estar presente para ajudar pessoalmente a purgar esse medonho pecado da intelig�ncia nacional, que � o desinteresse geral pela obra notabil�ssima de Jos� Osvaldo de Meira Penna. Lamento-o, sobretudo, justamente porque, de todos os aspectos dessa obra rica e multilateral, o mais digno de nota, pela originalidade e pioneirismo, � justamente este que me caberia examinar nesse simp�sio. Meira Penna rep�rter e viajante ("Xangai"), Meira Penna fil�sofo pol�tico ("Ideologias do S�culo XX"), Meira Penna historiador das id�ias ("O Esp�rito das Revolu��es"), Meira Penna soci�logo da burocracia brasileira ("O Dinossauro"), s�o apenas algumas facetas desse esp�rito poli�drico que, do ponto de vista da express�o liter�ria, deve ser colocado, sem hesita��o, entre os nossos melhores escritores. Mas � sobretudo como psic�logo social que ele fez algo cuja import�ncia nenhum brasileiro consciente pode ignorar, o que significa que, se muitos o ignoram, � porque est�o menos conscientes do que se imaginam. Esse d�ficit de consci�ncia, que todos no fundo sentem, encontra um falso al�vio, de tempos em tempos, em manifesta��es de rebeldia, mas meramente teatrais, passivas e doentes, pois se esgotam no mero protesto e, tendo protestado, j� cr�em ter feito o melhor que podiam. Sonhar que acorda � a melhor maneira de o pregui�oso enganar o despertador.

Os estudos sociais, no Brasil, come�aram, no s�culo passado, sob o patroc�nio do positivismo, do evolucionismo e do materialismo em geral. O marxismo, que veio a domin�-los no s�culo XX e que ainda � a clave dominante do debate social brasileiro, � digno herdeiro e continuador dessas escolas. Sua influencia vai bem al�m do c�rculo dos marxistas "ex professo" e domina, por sua influencia residual quase hipn�tica, at� mesmo boa parte do pensamento que se imagina ou se pretende mais hostil ao comunismo. Domina, � claro, menos pelo influxo positivo do que, negativamente, pelas limita��es e viseiras que imp�e, como tabiques, ao olhar do investigador.

O mais espesso desses tabiques � aquele preceito metodol�gico que, ordenando come�ar o exame da sociedade humana pelos seus fundamentos econ�micos e tentar explicar por estes as manifesta��es -- ditas "superestruturais" -- da pol�tica, da religi�o, da moral e da cultura, acaba por confundir o card�pio com a comida e por persuadir-se, de maneira pregui�osa e semiconsciente, de que a sociedade efetivamente � assim e assim funciona: do econ�mico para cima. E como o trajeto da base econ�mica, isto �, do econ�mico supostamente b�sico, at� as mais et�reas constru��es do pensamento abstrato pode ser bem longo, tortuoso e cheio de hiatos, a dificuldade mesma de percorr�-lo acaba por fazer com que todas as aten��es dos estudiosos se gastem nesse esfor�o -- e o resultado final � que todos se transformam, mesmo a contragosto, em remendadores do marxismo. Numa com�dia com Walther Mathau e Jack Lemmon, inspirada numa pe�a de grande sucesso na Broadway, "A Primeira P�gina", um dos personagens, tendo levado um tiro nos test�culos, se torna famoso e rico como escritor gra�as ao sucesso do seu livro "As Del�cias da Impot�ncia". O sucesso do marxismo � precisamente desse tipo: a impossibilidade de produzir com base nele uma descri��o adequada da sociedade faz com que as tentativas se renovem indefinidamente, com o que, se nenhum resultado v�lido se obt�m do ponto de vista cient�fico, ao menos algo se ganha do ponto de vista editorial e pol�tico, pois o marxismo acaba se tornando, no fim das contas, o �nico assunto dos cientistas sociais. E qualquer cientista social acusado de marxista fan�tico pode enfim responder: Sou, mas quem n�o �?

Para sair disso, de nada adianta combater o marxismo, ao menos no campo da ci�ncia social. Todo argumento alegado contra o marxismo busca provar, antes de tudo, a fal�cia da sua argumenta��o econ�mica, e, no esfor�o de deduzir dessa prova uma nova vis�o da sociedade humana, o que se consegue � apenas construir um edif�cio similar ao marxismo, no qual a base econ�mica, ou pelo menos a discuss�o dela, � o fundamento de tudo o mais. � �bvio que esse tipo de argumenta��o pode ser em seguida facilmente absorvido e integrado no marxismo mesmo, mui dialeticamente. Contribui para tanto, de maneira ainda mais alucinante, a mania nacional de economia. Com a mediocriza��o da cultura, todas as discuss�es se tornam pol�ticas e, com a mediocriza��o da pol�tica, todas as discuss�es se concentram na economia. As p�ginas de economia, que no meu tempo de jornalista econ�mico ningu�m lia, tornaram-se desde a d�cada de 80 a se��o nobre dos jornais, monopolizando pelo menos metade das manchetes a cada ano. Com isto, torna-se incoerc�vel a tend�ncia generalizada para fazer girar em torno do econ�mico o que possa restar de discuss�es pol�ticas, culturais, morais, etc. Enfim, o sujeito mesmo que do alto dos escombros do muro de Berlim declara que o marxismo est� falecido acaba, ele pr�prio, por demonstrar a vitalidade do defunto, ao apelar a argumentos econ�micos para explicar a queda do comunismo. Pelo menos no que diz respeito ao economicismo, o marxismo est� vivo e bem vivo, no m�nimo como um defunto que, assumindo a forma sutil de fantasma, se assenhoreasse do corpo do seu pr�prio coveiro para nele sobreviver na condi��o de parasita invis�vel.

Para escapar do �ncubo marxista, n�o basta falar mal dele. � preciso, decididamente, tomar outra dire��o, contornar as discuss�es sem fim sobre as bases econ�micas da Hist�ria, experimentar olhar a sociedade humana por outras claves e demonstrar que estas s�o mais eficazes e dotadas de maior for�a explicativa.

Pouqu�ssimos estudiosos brasileiros se aventuram nessa dire��o. E, dentre os que o fizeram, a maioria, por timidez ou obedi�ncia residual ao fantasma da autoridade cient�fica marxista, acaba voltando sempre ao mesmo vocabul�rio -- as classes sociais, os meios de produ��o, etc. etc. etc. --, isto quando n�o regridem mais ainda, apelando a conceitos da ci�ncia materialista pr�-marxista e falando em ra�as, em hereditariedade, em condicionamento geogr�fico e assim por diante.

N�o escapam totalmente dessa derrota regressiva nem mesmo um Oliveira Vianna, um Gilberto Freyre, um Raymundo Faoro, um Jos� Hon�rio Rodrigues, isto para n�o falar da legi�o de estudiosos de segundo plano que superlotam um pa�s que �, pelos meus c�lculos, o recordista mundial de cientistas sociais "per capita".

Dos muitos livros que li sobre o Brasil, s� uns poucos ousavam buscar chaves explicativas totalmente diferentes, irredut�veis a todo cientificismo materialista e a todo marxismo residual. Um foi "O Patriarca e o Bacharel", de Lu�s Martins, que estudava certas condutas t�picas da nossa classe dominante a luz da psican�lise ortodoxa. Mas, depois de Herbert Marcuse, tornou-se f�cil reintegrar na vulgata marxista qualquer diagn�stico psicossocial freudiano, e com isto o livro de Lu�s Martins perdeu o veneno. Outro foi "Desenvolvimento e Cultura", de M�rio Vieira de Mello, que, abordando o esteticismo cong�nito da nossa cultura letrada, herdado de Rousseau e Schopenhauer, acabava por encontrar para certas constantes da vida nacional explica��es bem mais s�lidas e razo�veis do se poderiam encontrar em qualquer neomarxismo consciente ou inconsciente, seja uspiano, puquiano, isebiano ou o escambau. Mas Vieira de Mello n�o voltou ao assunto. Derivou para temas doutrinais de filosofia pol�tica, e o veio aberto pela sua sondagem da nossa psicologia nacional permaneceu inexplorado. S� quem ousou abrir um novo caminho e percorr�-lo, com not�vel teimosia, at� consolidar certos resultados na forma de uma vis�o integral da sociedade brasileira, foi Jos� Osvaldo de Meira Penna.

Seus livros "Psicologia do Subdesenvolvimento" e "Em Ber�o Esplendido", embora constru�dos de ensaios independentes, acabam por constituir uma abordagem met�dica e integral da nossa sociedade desde o ponto de vista da psicologia junguiana, isto �, desde um ponto de vista que nem deve o que quer que seja a tradi��o marxista e materialista dos nossos estudos sociais, nem pode ser reduzido aos pressupostos dessa tradi��o por nenhum procedimento l�gico imagin�vel. Se Meira Penna n�o pode ser engolido no ventre do bicho-pap�o universit�rio, n�o � apenas porque desagrada ao paladar desse gordo animal que nada rejeita, tudo absorve e tudo transforma em marxismo. � porque ele �, de fato, um corpo estranho. � porque n�o existe nenhuma opera��o intelectual, por mais engenhosa, que possa reduzir a vulgata acad�mica brasileira uma vis�o da sociedade brasileira que come�a por enfoc�-la n�o desde o PNB ou desde a distribui��o da propriedade territorial, mas -- com o perd�o da palavra -- desde a alma.

Quando digo abordagem met�dica e integral estou dizendo que, nesses estudos, a metodologia � expl�cita e sua aplica��o se estende a praticamente todos os aspectos mais salientes da vida nacional, desde a administra��o p�blica at� o conv�vio familiar e os sentimentos �ntimos, tudo sistematicamente ordenado segundo os conceitos e categorias da escola junguiana, que Meira Penna domina, segundo me parece, melhor do que qualquer psic�logo de of�cio neste pa�s.

Mas, quando digo escola, � preciso ver que o fa�o "cum grano salis". A escola junguiana pode ser acusada de tudo (e eu pr�prio a acuso de muitas coisas), menos do r�gido ortodoxismo que se imputa, com raz�o, � psican�lise freudiana. Pela pr�pria ordem e seq��ncia que Carl-Gustav Jung imp�s ao seu trajeto de investigador -- ou antes, que lhe foi imposta pela experi�ncia da vida --, a auto-realiza��o do eu consciente entra a� como o centro e a chave da vis�o da sociedade e do mundo, o que significa que, com a variedade inesgot�vel das evolu��es individuais, novas e novas formas de investiga��o se tornam poss�veis, tornando a influencia junguiana uma esp�cie de "spray" disseminado invisivelmente no ar e assumindo mil formas, de modo bem diferente da marcha monol�tica das bem disciplinadas legi�es freudianas. Da� que, na aplica��o das descobertas de Jung ao estudo da vida social ou do que quer que seja, a margem de originalidade poss�vel � bem ampla. No caso de Meira Penna, essa originalidade prov�m sobretudo de que, n�o sendo somente um psic�logo social junguiano, mas tamb�m um profundo doutrin�rio e polemista liberal, ele produziu uma s�ntese pessoal�ssima da vis�o arquetipal junguiana da sociedade com a sua pr�pria abordagem de certos fen�menos brasileiros observados desde o ponto de vista de uma cr�tica liberal, como o burocratismo estatal, o juridicismo desvairado, a ilegalidade consentida, etc. etc.

Se eu estivesse fisicamente presente nesse simp�sio, n�o resistiria � tenta��o de descrever com mais detalhes o resultado dessa abordagem -- um misto de junguismo, filosofia liberal e tropicologia que � uma das vis�es mais esclarecedoras, consistentes, humanas e interessantes que algu�m j� produziu sobre a nossa vida e o nosso pa�s.

� dist�ncia, e por escrito, n�o posso sen�o repetir que nenhum brasileiro consciente pode ignorar essa vis�o. A "Psicologia do Desenvolvimento" e "Em Ber�o Esplendido" s�o um duplo toque do despertador. Eles n�o deixam voc� fingir que acorda. Eles sacodem voc� da cama e, em vez de apenas sonhar com alternativas ao marxismo, provam o movimento andando.

Se Meira Penna n�o houvesse escrito mais nada, s� com esses dois livros ele j� estaria colocado num posto bem alto no pante�o de cl�ssicos dos estudos brasileiros. Que poucos tenham percebido que ele j� est� l� faz tempo, � algo que em nada dep�e contra ele. Dep�e � contra os muitos, que, para variar, n�o sabem o que est�o perdendo. Quanto a voc�s, aqui reunidos, os "happy few", o seleto f�-clube de Meira Penna, cumprimento-os pelo seu discernimento e bom gosto, o que no fim das contas, me desculpem, � cumprimentar a mim mesmo, que h� d�cadas sou s�cio-atleta desta bem-aventurada confraria.

Muito obrigado pela sua aten��o.

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