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OS MAIS EXCLU�DOS DOS EXCLU�DOS
O sil�ncio dos mortos como modelo
dos vivos proibidos de falar.1
 
In Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento
Brasileiro: Estudos sobre o nosso lugar no mundo
, 2a. edi��o,
Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1997, pp. 82-111.

 

Devo come�ar por fazer recordar aos franceses aqui presentes uma cita��o do eminente m�dico brasileiro Vital Brasil, que, na ocasi�o de falar pela primeira vez a um p�blico de l�ngua francesa, disse: “Pe�o que me perdoeis pelos danos que eu venha a fazer � gram�tica, porque estou falando numa l�ngua que n�o � a minha e que, como o percebereis em poucos instantes, talvez n�o seja tampouco a vossa.”

Meu �nico consolo que me traz a presente circunst�ncia de um di�logo plurinacional � a de poder imaginar que talvez alguns dos africanos, asi�ticos e americanos que me escutam terminar�o por acreditar que vos falo em franc�s.

O assunto que pretendo sugerir �s vossas medita��es vos parecer� talvez estranho. Num col�quio dedicado aos sofrimentos dos homens, mulheres, crian�as e velhos submetidos a injustas exclus�es e discrimina��es, � dado por pressuposto que se fale sempre de minorias que protestam da justeza de sua causa, para fazer valer seus direitos. O grupo exclu�do do qual pretendo vos falar �, ao contr�rio, composto da vasta maioria da esp�cie humana. Pior ainda, ele se comp�e apenas de pessoas que n�o protestam jamais, que n�o se exprimem nunca sen�o por um sil�ncio que com demasiada facilidade tomamos como sinal de indiferen�a ou aprova��o. Pretendo falar-vos dos mortos, dos homens dos tempos passados. Embora sendo verdade que eles s�o as mais inermes de todas as criaturas, eles n�o teriam o que fazer neste col�quio se sua exclus�o do di�logo humano n�o fosse, no meu entender e segundo vos pretendo mostrar se mo permitirdes, o modelo mesmo, o arqu�tipo de todas as formas modernas de exclus�o e de discrimina��o.

H� muitos tra�os que delineiam nosso s�culo com um perfil que o singulariza entre todos, mas o mais significativo � sem d�vida a mudan�a radical da atitude dos homens para com o passado. Essa mudan�a foi preparada desde o advento do historicismo, mas n�o atingiu a plenitude sen�o no s�culo XX. O historicismo ensinou-nos a “relativizar” as id�ias, referindo cada uma � sua “�poca”, de onde n�o poderiam sair sen�o na condi��o de testemunhas de estados de esp�rito que n�o voltariam jamais � vida. Ele nos ensinou a ver as id�ias e as cren�as dos homens de outrora como exemplares de esp�cies extintas. Ele nos ensinou a n�o nos esfor�ar mais para estar na verdade, mas para “ser do nosso tempo”.

Com Karl Marx, o historicismo j� n�o � mais apenas um simples quadro de refer�ncia te�rico e se torna uma for�a agente, que modela o mundo � sua imagem: a imagem de um fluxo temporal absolutizado, que desgasta a significa��o das id�ias at� fazer delas simples res�duos do fato consumado. As opini�es e as cren�as dos homens de outrora, n�o devemos mais discuti-las, julgar de sua veracidade ou falsidade: devemos explic�-las em fun��o de estados de coisas que nada t�m a ver com o seu conte�do, mas que se sup�e hav�-las “produzido” desde fora por uma esp�cie de “simpatia” m�gica entre as estruturas maiores da sociedade, da hist�ria e do psiquismo, e aquilo que cada homem acredita pensar livremente. Explicamos os teoremas da geometria pela luta pol�tica, os metros da poesia pelos interesses de classe. Estamos longe do tempo em que Sto. Tom�s podia ler os textos de Arist�teles tal como se fossem de edi��o recente, para separar neles o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior. N�o pousamos jamais nosso olhar sobre o assunto dos escritos antigos: miramos de esguelha, n�o visamos sen�o �s causas que supomos hav�-las produzido e a “explica��o” que delas nos podem dar. Com o advento da psican�lise, esse desejo de olhar de vi�s vai mais longe ainda: ante um homem que tenta nos comunicar os conte�dos de sua consci�ncia, n�o miramos sen�o os conte�dos de seu inconsciente, que freq�entemente nada t�m a ver com aquilo que ele deseja nos fazer ver. Desde ent�o, o progresso dos m�todos e das teorias – das an�lises pejorativas de Nietzsche at� o desconstrucionismo – n�o fez sen�o nos levar cada dia mais longe do ponto focal visado pelos homens cujas a��es e palavras professamos estudar e compreender.

O desejo de enxergar as grandes estruturas e os ciclos maiores por tr�s dos fatos e dos homens singulares �, decerto, algo de leg�timo, talvez de louv�vel. Mas com freq��ncia esse impulso nos leva a fazer, dos homens dos tempos passados, puros objetos de nossa pesquisa, o que nos faz esquecer que s�o homens, isto �, interlocutores leg�timos que t�m o direito de nos falar de iguais para iguais.

N�o � o objetivo da presente comunica��o descrever-vos esse longo processo de transforma��o de nossa imagem dos homens de outrora. V�s o conheceis, talvez, melhor do que eu. O que pretendo � mostr�-lo enquanto forma de exclus�o – o feito de uma �poca que se cr� suficientemente boa para saber, das outras, muito mais do que elas mesmas o sabiam, tal como o superior conhece o inferior melhor do que ele mesmo.

Para empreender esse esbo�o de nossa imagem dos tempos passados sub specie exclusionis, vou come�ar por um breve exame de uma constante das rela��es entre os seres da nossa esp�cie: a reciprocidade.

 

1. Resposta e efeito

Donde vem a satisfa��o que sentimos quando uma flor que plantamos desabrocha, quando o c�o que chamamos por um assobio vem se deitar aos nossos p�s? N�o se trata, por acaso, de simples rea��es normais e previs�veis ao simples desencadear de um mecanismo de causa e efeito? Por que ent�o nos parecem mais significativas do que o ronco do motor quando damos partida a um autom�vel, do que a mudan�a da tela do computador quando clicamos o mouse? � que nelas podemos entrever toda a dist�ncia que separa um efeito de uma resposta. Esta �ltima pode sempre ser negada, pode vir diferente do que esper�vamos, e � algo de mais precioso do que a manifesta��o de nosso simples poder de produzir efeitos. Em todos os casos em que responde � nossa expectativa, ela nos parece ser como que a retribui��o de uma aten��o amorosa. Percebemos que por tr�s dela existe algo como uma decis�o, o exerc�cio de alguma liberdade, um consentimento que manifesta uma harmonia e uma graciosa compreens�o m�tua entre n�s e o mundo. Por esta mesma raz�o, temos mais paci�ncia com o c�o desobediente ou com a planta que demora a brotar do que com o carro que n�o pega ou com a tela de computador que “congela”. Isto prov�m da natureza mesma das informa��es que nos s�o trazidas pela sua recusa de nos obedecer: o autom�vel, o computador que n�o funcionam s� nos informam acerca de seu pr�prio estado. O c�o que se furta ao nosso chamado expressa algo que � como sua opini�o a nosso respeito. Ele nos julga, enquanto a m�quina n�o julga sen�o a si mesma.

Uma rea��o se aproxima tanto mais de uma resposta e se distingue tanto mais de um simples efeito quanto maior a sua complexidade, portanto a imprevisibilidade do sujeito, sua liberdade de nos aceitar ou nos rejeitar, liberdade que no c�o, e at� certo ponto mesmo na planta, � normal e constitutiva, enquanto no carro ou no computador � somente defeito e anormalidade.

Dar ou negar respostas � pr�prio do ser vivo. Eis por que a capacidade de prever respostas � considerada uma habilidade superior, e mais pr�xima do ideal de sabedoria, do que o simples conhecimento de rela��es de causa e efeito.

Todo conhecimento do ser humano pelo ser humano implica sempre, em algum grau, a possibilidade ao menos de conjeturar suas respostas, mas tamb�m a impossibilidade de as calcular com uma exatid�o tal que acabassem tendo para n�s uma significa��o menor que a da obedi�ncia do c�o ou a do funcionamento regular de um utens�lio eletr�nico. No ser humano, a imprevisibilidade absoluta coincidiria com a total aus�ncia de conhecimento a seu respeito, a absoluta previsibilidade com a supress�o de seu estatuto humano, com sua redu��o ao substrato biol�gico ou bioqu�mico ou talvez f�sico de sua hominidade.

� porque as respostas de um ser humano podem ser variadas que elas t�m para n�s uma significa��o. � porque essa significa��o n�o pode variar para fora da gama admitida pelo ato ou pela palavra que a suscitam que ela nos � compreens�vel, em princ�pio e de jure, e � o fato de ela dever ser compreens�vel que nos permite, quando n�o o �, julg�-la absurda.

Por todas essas raz�es, n�o se pode admitir como dotada de sentido nenhuma id�ia ou cren�a a prop�sito do ser humano, que n�o implique, em certa medida ao menos, o interesse pela resposta que se sup�e que ele teria a lhe oferecer. Se tenho uma opini�o sobre um certo indiv�duo, mas me � imposs�vel prever o que ele pensaria dela, ent�o ela n�o cont�m efetivamente nenhum conhecimento a respeito dele, ela deixa escapar totalmente seu objeto, ela n�o sai do c�rculo de iman�ncia onde comparo, umas com as outras, minhas v�rias imagens de mim mesmo.

 

2. Reciprocidade e bilateralidade atributiva

Existe portanto, no conhecimento do ser humano pelo seu pr�ximo, sempre a admiss�o de um certo grau de reciprocidade, seja positiva, seja negativa. Conhe�o um homem na medida em que sei que o horizonte daquilo que ele sabe dele mesmo � igual, maior ou menor do que aquele em que o enxergo.

Em nenhum caso isso � mais evidente do que na radical discord�ncia. Saber que n�o estou de acordo com algu�m � saber que ele n�o est� de acordo comigo. A impossibilidade de prever sua rea��o a minhas opini�es importaria em ignorar por completo se entre n�s h� acordo ou desacordo. Quando estudamos culturas estrangeiras, sabemos que alguns de seus costumes s� nos parecem estranhos na medida mesma em que, como o diz a pr�pria palavra costume, n�o parecem estranhos de maneira alguma �queles que os seguem. Aos olhos destes, � nossa rea��o de surpresa que parece estranha.

Em toda rela��o pessoal, o conhecimento que julgamos ter de nossos pr�ximos n�o � jamais pertinente se n�o traz dentro de si informa��es corretas concernentes ao que eles pensam de n�s. A imagem do pr�ximo � por assim dizer bidirecional, e � s� a retrovis�o que nos d� o centro de perspectiva dessa imagem. Sem este feedback, permanecer�amos semi-cegos e desorientados como uma flecha que, tendo esquecido seu alvo, voasse nas trevas. (� mais ou menos a situa��o em que me encontro, falando-vos numa l�ngua que suponho ser o franc�s sem saber se ela o � tamb�m para os que me escutam.)

A mesma coisa se passa na pol�tica: n�o podemos compreender uma ideologia, um partido, um movimento qualquer, se n�o temos uma id�ia do que nossas interpreta��es deles significam desde o seu ponto de vista.

Reduzindo o pr�ximo � condi��o de um objeto inerme, destituindo-o de sua capacidade de nos julgar e de nos abalar, isto �, arrebatando-lhe sua for�a e seu potencial de periculosidade, j� n�o lidamos mais sen�o com marionetes que se movem e falam a nosso belprazer.

Jamais, no conhecimento do homem pelo homem, a virtude de objetividade corresponde a um deslocamento do observador para alturas divinas onde esteja protegido de todo feedback, de toda possibilidade de uma resposta. Bem ao contr�rio, esse deslocamento n�o seria sen�o um sonho de onipot�ncia infantil, a abdica��o do senso das medidas, que � a garantia �nica da objetividade de nossos conhecimentos.

� mesmo espantoso que esse sonho de onipot�ncia tenha sido consagrado como o ideal da objetividade cient�fica, que a impossibilidade de separar o observador das coisas observadas tenha sido deplorado como um s�rio obst�culo ao conhecimento, quando ela � precisamente a garantia da realidade de todo conhecimento, a garantia de um liame indissol�vel de sujeito e objeto.

Com tanto mais raz�o, em nenhum caso o reconhecimento da necessidade do feedback depende de que o pr�ximo esteja conosco numa rela��o de proximidade f�sica. Se um modesto jornal de uma cidade do interior do Brasil publica cr�ticas ao Sr. Lionel Jospin as quais o Sr. Jospin n�o ler� jamais, ainda neste caso � preciso que o articulista tome por modelo de sua argumenta��o a invers�o imagin�ria das rea��es poss�veis do Sr. Jospin ao seu artigo.

Em todo conhecimento que buscamos sobre o ser humano, a expectativa da reciprocidade � uma necessidade t�o premente, que podemos d�-la por pressuposta. � s� quando ela falta que ela nos atrai a aten��o. Nesses momentos, a impress�o de incongru�ncia ser� tanto mais forte quanto mais inconsciente tenha sido a expectativa de reciprocidade.

T�o fundamental � essa expectativa, que a norma jur�dica das rela��es humanas tem como crit�rio essencial o que o jurista brasileiro Miguel Reale chamou bilateralidade atributiva.

“Existe bilateralidade atributiva – escreve Reale – quando duas ou mais pessoas est�o numa rela��o segundo uma propor��o objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente alguma coisa. Quando um fato social apresenta esse g�nero de rela��o, dizemos que � jur�dico.” 2

Segundo Reale, a diferen�a entre os fen�menos jur�dicos e os n�o jur�dicos – econ�micos, psicol�gicos, etc. – � que nestes a bilateralidade n�o � atributiva, isto �, a correspond�ncia n�o est� assegurada, n�o obedece a um padr�o uniforme ou obrigat�rio.

Portanto, � precisamente nessas esferas que o esfor�o de conjeturar e prever a resposta se torna ainda mais importante, e este esfor�o � repetido com tanta freq��ncia que acaba por se integrar no conjunto dos automatismos da vida cotidiana e nas rotinas do conhecimento cient�fico sem necessitar de uma teoriza��o especial.

 

3. O feedback, condi��o de todo conhecimento do homem, da natureza e de Deus

Por isso, mesmo ante os objetos da natureza – e me ocorre agora que Eugen Rosenstock-Huessy definia a natureza como “o mundo menos a fala” –, nossa confian�a no sucesso de nossas id�ias se baseia inteiramente na certeza de que os seres naturais reagir�o a nossos atos de uma maneira determinada, e n�o indeterminada: sei que um c�o � feroz porque conhe�o o feedback que ele me daria caso eu me aproximasse dele fundado na hip�tese de que n�o o �.

Em todas as circunst�ncias, � essencial ter o conhecimento da resposta poss�vel. A total aus�ncia desse conhecimento equivale ao estupor ante um enigma incompreens�vel. Toda a dificuldade que temos para conhecer Deus reside precisamente na impossibilidade de prever a resposta que Ele daria a nossos atos ou opini�es. A falta de uma resposta control�vel leva ao desespero o homem que se dedica � busca do conhecimento de Deus.

Seja no estudo do homem, da natureza ou de Deus, a resposta d� o centro de perspectiva e a medida do quadro de nossa vis�o das coisas.

Uma das diferen�as maiores que assinalam a passagem do mecanicismo cl�ssico � ci�ncia contempor�nea � que os homens de ci�ncia abandonaram o projeto de nos dar uma “imagem” do mundo como puro objeto, para lhe substituir a figura movente de uma intera��o e de uma constitui��o m�tua do observador e da coisa observada. A intera��o tomada como modelo prestou relevantes servi�os nas pesquisas ecol�gicas e se constituiu finalmente num dos pilares do “novo paradigma” cient�fico.

 

4. A Hist�ria como espet�culo

Por todas essas raz�es, � muito estranho que em geral a necessidade de levar em conta a reciprocidade tenha sido t�o menosprezada pelos estudos hist�ricos e pela vis�o geral que nossa cultura tem do passado humano. A extens�o desse menosprezo pode ser avaliada pela rea��o de estranheza com que o historiador contempor�neo responder�a se lhe pergunt�ssemos o que ele imagina que Arist�teles ou Lao-Ts� ou Napole�o Bonaparte ou Lu�s XIV pensariam do que ele escreve a respeito deles.

No entanto, bem examinadas as coisas, essa rea��o � que � estranha. N�o � espantoso que os �nicos objetos que acreditamos poder conhecer sem nenhum feedback sejam precisamente seres humanos, ou seja, entes capazes de ter uma opini�o? Poderia eu orientar-me no mundo antigo sem outro guiamento sen�o as opini�es de meus contempor�neos, que o conhecem t�o de longe quanto eu? Mesmo que o tivessem conhecido de perto, restaria perguntar: em qual tribunal do mundo o depoimento das testemunhas vale alguma coisa, se desprovido de qualquer confronto com o do r�u?

Por mais perfeita, cient�fica ou realista que se pretenda a nossa reconstitui��o do passado, ela n�o chega jamais sen�o a fazer dele um espet�culo, algo que vemos e que n�o nos v�. Os mortos est�o para sempre exclu�dos do di�logo, s�o os exclu�dos por excel�ncia. Ele t�m olhos mas n�o v�em, t�m ouvidos mas n�o ouvem. N�s os espiamos pelo buraco da fechadura que denominamos “Hist�ria”. Eles s�o os objetos inermes de nossa paix�o de ver sem sermos vistos, que em �ltima inst�ncia � a paix�o de julgar sem ser julgado. Esta paix�o recebe em nossos tratados e teses universit�rias o nome dignificante de objetividade. � talvez a maior mentira desde o come�o do mundo.

 

5. A supress�o da presen�a humana

Antigas tradi��es tiveram sempre consci�ncia de um dever para com os mortos. Ele n�o tinha nada a ver com as nossas homenagens pregui�osas ou com o nosso amb�guo reconhecimento de uma “import�ncia hist�rica” que nos d� o direito de mal interpret�-los ao sabor de nossas conveni�ncias. As velhas tradi��es n�o tinham a pretens�o de saber sobre os mortos mais do que eles mesmos sabiam; menos ainda a de julg�-los do alto de uma plenitude dos tempos, de explic�-los em fun��o de tal ou qual teoria da Hist�ria, de tal ou qual m�todo sociol�gico. Para elas, n�o se tratava jamais de vasculhar pelas costas deles as suas motiva��es secretas, de reduzi-los a fantoches movidos por for�as inconscientes, de fazer deles, em suma, objetos. Elas os respeitavam, escutavam seus conselhos, obedeciam-nos, �s vezes, longo tempo ap�s eles terem se retirado deste mundo. Eles eram presen�as humanas, eles tinham direito de cidade entre os vivos e faziam escutar suas vozes nas assembl�ias. Eles eram compreendidos, em suma, tal como se compreendiam a si mesmos. E n�o � esta, por acaso, a mais elevada compreens�o que podemos ter do nosso pr�ximo? A confian�a cega que depositamos nos progressos da ci�ncia hist�rica n�o estar� nos afastando cada vez mais do conhecimento da identidade concreta de nossos antepassados, na medida em que a amplia��o exagerada do cen�rio torna imposs�vel um di�logo com seres reduzidos artificiosamente �s dimens�es de gr�os de areia?

A maneira mesma pela qual procuramos dar �s a��es e palavras dos tempos passados um “sentido presente”, na ilus�o de os “revivificar” generosamente, consiste quase sempre em lhes atribuir inten��es muito distantes das de seus protagonistas e autores. Dizemos, por exemplo, como se fosse a coisa mais �bvia do mundo, que “Descartes inaugurou o subjetivismo moderno”. � atribuir a Descartes o que outros fizeram dele sem consult�-lo. O pr�prio Descartes n�o se reconheceria nesse retrato, todo feito da inser��o de sua pessoa, de sua vida e de seus pensamentos no quadro maior de ciclos hist�ricos que no tempo de sua vida n�o se tinham cerrado sen�o pela metade, na melhor das hip�teses, e que talvez lhe fossem perfeitamente estranhos.

As ci�ncias hist�ricas estariam condenadas a n�o compreender os homens do passado sem fazer de sujeitos humanos simples objetos, sem dissolver sua fisionomia na de seus descendentes quase sempre infi�is?

N�o me sinto de maneira alguma qualificado para dar a essa pergunta uma resposta geral. Mas um s� exemplo, tomado ao campo especializado que me � mais acess�vel, isto �, � hist�ria da filosofia, pode ilustrar a dire��o na qual se deve, segundo creio, buscar a resposta.

Quem quer que aborde os estudos sobre o pensamento grego se surpreende de ver os conflitos entre interpreta��es mutuamente excludentes da filosofia de Plat�o, ou de Arist�teles, atravessarem os s�culos e os mil�nios sem se aproximar, no m�nimo que seja, de uma solu��o. Ao contr�rio, s�o as quest�es e as d�vidas e os pontos de vista que se multiplicam, tomando com freq��ncia formas novas e imprevistas. � s� do ponto de vista estritamente quantitativo que isso pode ser dito um progresso. Bem feitas as contas, o resultado de todas essas controv�rsias n�o �, na maioria dos casos, sen�o a fragmenta��o do objeto de pesquisa numa poeira rodopiante de imagens, cada uma delas assegurando ser “o verdadeiro Plat�o” ou “o verdadeiro Arist�teles”.

Ao longo desse trajeto, podemos perceber o retorno c�clico de gigantescos ensaios de reconstru��o, que periodicamente restauram a unidade do objeto e oferecem aos s�culos seguintes um campo unificado onde as pesquisas n�o s�o mais uma confronta��o cega de hip�teses inconcili�veis, mas uma colabora��o organizada e prof�cua.

No que diz respeito a Arist�teles, esses momentos foram apenas dois, se nos limitarmos ao campo Ocidental: o s�culo XIII e nosso pr�prio s�culo. No primeiro, a s�ntese de aristotelismo e cristianismo inaugurada por Sto. Alberto Magno e Sto. Tom�s de Aquino abriu o campo a um prodigioso florescimento dos estudos aristot�licos, que se prolongou at� Leibniz. No nosso s�culo, a redescoberta de alguns temas aristot�licos no seio da f�sica e da biologia modernas, assim como o retorno do tema das rela��es entre �tica e pol�tica, nos d� a promessa de extraordin�rios aprofundamentos na nossa compreens�o da filosofia do Estagirita.

O que h� de comum entre essas duas not�veis s�ries de acontecimentos intelectuais separados por sete s�culos s�o duas coisas:

1. Nem uma nem a outra foram obras de historiadores.

2. Em cada uma delas n�o se tratava de aprofundar o conhecimento da filosofia de Arist�teles, de obter uma descri��o mais completa ou uma interpreta��o mais rigorosa dela, mas de estudar as quest�es do dia � luz de Arist�teles. N�o se tratava de interpretar Arist�teles, mas de se deixar interpretar por ele.

Hoje em dia est� bem claro que o resultado e a verdadeira novidade dos esfor�os de Sto. Tom�s n�o foi o de cristianizar Arist�teles, o que era ali�s perfeitamente dispens�vel uma vez que Tom�s se persuadira do acordo essencial entre aristotelismo e cristianismo, mas, bem ao contr�rio, o de aristotelizar o cristianismo, dando � express�o do dogma a forma de um sistema dedutivo, o que nada na evolu��o do cristianismo at� ent�o deixava prever, e que iria produzir na hist�ria subseq�ente da Igreja as mais prodigiosas conseq��ncias.

Quanto ao renascimento aristot�lico que presenciamos hoje em dia, n�o � surpreendente que ele seja em grande parte obra de f�sicos e de bi�logos, que n�o abordam os textos do mestre em busca de uma vis�o hist�rica do pensamento antigo, mas de uma vis�o aristot�lica de sua pr�pria ci�ncia.

Mas, enquanto essas coisas acontecem diante dos nossos olhos, que se passa com Arist�teles no campo dos estudos de hist�ria da filosofia propriamente dita? Durante quase todo o s�culo, historiadores se bateram em v�o em torno das hip�teses gen�ticas e das quest�es de m�todo levantadas em 1928 por Werner Jaeger, sem encontrar um ponto de acordo. Hoje como em 1928, os dois partidos, o “gen�tico” e o “sistem�tico”, t�m combatentes de valor que se desdobram em esfor�os dial�ticos de uma grande eleg�ncia que n�o chegam jamais a persuadir o partido contr�rio3.

Por que isso acontece? A resposta � de uma evid�ncia quase escandalosa: os historiadores buscam a imagem de um Arist�teles grego, de um Arist�teles do seu tempo, de um Arist�teles descrit�vel e mais ou menos fechado, de um Arist�teles tornado coisa, enquanto os bi�logos e os f�sicos buscam um interlocutor vivente, capaz de vir em sua ajuda, portanto de julg�-los e de julgar o estado de sua ci�ncia.

Invertendo os termos – mas n�o o sentido – de uma senten�a c�lebre do Profeta �rabe, devemos tirar desses fatos uma conclus�o inexor�vel: S� quem pode nos prejudicar pode nos ajudar. Aquele que n�o nos oferece o menor perigo n�o pode nos servir sen�o com fins decorativos.

Pe�o que n�o me interpreteis �s avessas. N�o censuro de maneira alguma os esfor�os dos historiadores, que est�o perfeitamente no seu lugar. O que digo � que a imagem geral que nossa cultura atual faz do passado busca sua inspira��o, de maneira quase exclusiva, no modelo dos “historiadores do aristotelismo”, nunca no da “biologia aristotelizada”.

Seja na educa��o, seja na imprensa, seja nos debates ideol�gicos, seja na linguagem cotidiana, n�o nos referimos ao passado da humanidade sen�o como a algo do qual se deve fugir o mais r�pido poss�vel, como a algo que deve ser abandonado e fechado para sempre no seu quadro temporal imut�vel e mudo como num esquife cronol�gico, para evitar a todo pre�o que volte � vida e, de p� diante de n�s, nos julgue e nos condene.

N�o � uma coincid�ncia que a primeira e talvez a mais c�lebre rea��o contra os abusos do historicismo com rela��o � Gr�cia tenha sido obra de um pensador que em seguida se tornaria a v�tima do germe de historicismo que, sem saber, trazia em si. Refiro-me ao pr�prio Werner Jaeger. Tentando restaurar a comunica��o com o passado da nossa cultura, ele procurou fazer do ideal pedag�gico dos gregos um modelo de valor permanente, subtra�do aos desgastes do tempo. Mas isso exigia tamb�m, no seu entender, que ele fornecesse alguma prova da unidade da cultura Ocidental, e lhe pareceu que podia encontr�-la por interm�dio da teoria aristot�lica (mas tamb�m goetheana) da “forma interna”. O ideal do homem da filosofia de Plat�o seria, segundo Jaeger, a “forma interna” subjacente a todo o desenvolvimento hist�rico da nossa cultura. Eis um rem�dio que logo em seguida se revela mais perigoso do que a doen�a mesma. Aplicar �s culturas o conceito de “forma interna” � dar-lhes uma unidade biol�gica, substancial, o que teria muito surpreendido ao pr�prio Arist�teles; � dar ao seu desenvolvimento um modelo similar ao do curso linear do crescimento e envelhecimento dos organismos animais, onde n�o existe jamais um retorno ao passado. Essa contradi��o do ideal pedag�gico de Jaeger nos mostra at� que ponto a absolutiza��o do hist�rico se tornou um mal profundo da nossa cultura.

 

6. A retroproje��o hist�rica

A partir dessas considera��es, busquei formular h� alguns anos um m�todo de investiga��o que me pareceu pertinente chamar retroproje��o hist�rica. Ele consiste em fazer do presente o objeto do julgamento dos homens do passado, em enfocar portanto o passado n�o enquanto objeto, mas enquanto agente consciente que nos v� e nos compreende pelo menos tanto quanto n�s mesmos o vemos e compreendemos.

Pode-se perguntar, � claro, se meu apelo a uma mudan�a de atitude do historiador em face do passado n�o se baseia na hip�tese absurda de uma ressurrei��o ou de um di�logo quim�rico com os mortos, como numa sess�o de espiritismo.

Mas � evidente que, com uma grande margem de sucesso, e sem emprego de meios divinos ou paranormais, podemos facilmente confrontar nossa interpreta��o do passado com o julgamento poss�vel que dela teriam feito os viventes desse passado, e faz�-lo por tr�s meios:

1. O prolongamento l�gico das conseq��ncias de suas opini�es, at� que possam ser aplicadas ao caso espec�fico da nossa interpreta��o delas.

2. A sondagem das expectativas de futuro impl�citas nos atos e palavras dos homens do passado.

3. A investiga��o da pot�ncia de autoconsci�ncia que podemos desenvolver, agora, a partir das id�ias e dos valores dos tempos passados.

 

7. Os quatro discursos de Arist�teles

O que me levou mais diretamente a esse empreendimento foi a necessidade de uma nova estrat�gia para a investiga��o que eu estava fazendo a prop�sito de Arist�teles, daquilo que denomino sua “teoria dos quatro discursos”.

No meu livro Arist�teles em Nova Perspectiva, levantei a hip�tese de uma unidade te�rica impl�cita que desse sustenta��o � emerg�ncia das quatro ci�ncias aristot�licas do discurso humano. A Po�tica, a Ret�rica, a Dial�tica e Anal�tica proviriam de uma mesma fonte unit�ria: uma doutrina geral da credibilidade e da prova, que est� subentendida em todo o sistema aristot�lico. Essa doutrina, por sua vez, teria uma rigorosa homologia estrutural com a gnoseologia e a psicologia de Arist�teles. Uma vez explicitada, tal doutrina lan�aria as bases de toda uma nova filosofia da cultura, portanto de uma nova teoria (e t�cnica) geral da interdisciplinaridade.

N�o cheguei a essas conclus�es atrav�s de uma “releitura” dos textos do mestre de Estagira, � luz dos conhecimentos e m�todos hist�rico-filol�gicos atuais. Ao contr�rio, tentei imaginar o que teriam podido ser as respostas do pr�prio Arist�teles a certas quest�es precisas da atualidade, concernentes, no caso, a esse ideal t�pico dos nossos tempos ao qual denominamos interdisciplinaridade. Como teria Arist�teles enfrentado, digamos, o problema colocado pelo dualismo bachelardiano que afirma a coexist�ncia de um universo das imagens po�ticas e de outro das leis racionais? A obra de Scott Buchanan, Poetry and Mathematics, lhe teria parecido mais pr�xima da verdade ao afirmar a identidade essencial do po�tico e do matem�tico? A mim me pareceu que para Arist�teles nem o dualismo bachelardiano nem a fus�o operada por Buchanan teriam parecido suficientes. Sua vis�o n�o teria podido ser sen�o a de uma convers�o progressiva da Po�tica em Anal�tica atrav�s da media��o inevit�vel da Ret�rica e da Dial�tica, tal convers�o estando na natureza mesma do processo cognitivo tal como concebido por ele, o qual pressup�e a transforma��o das percep��es em esquemas pl�sticos e destes em esquemas eid�ticos, bases dos conceitos. Para ele, a aparente dualidade teria se resolvido numa quaternidade.

Em seguida eu iria ter a alegria inesperada de ver minhas conclus�es confirmadas, por m�todos muito diversos, nos estudos, ambos igualmente not�veis, de Deborah L. Black e Salim Kemal sobre o “silogismo imaginativo” no aristotelismo �rabe4.

Ent�o se tornou para mim evidente a fecundidade do m�todo que eu me havia audaciosamente permitido empregar. A invers�o do olhar, que eu propunha, surgia como um utens�lio delicado mas poderoso, ao mesmo tempo, para o historiador e o fil�logo. J� n�o se trataria apenas de ver o passado no espelho da hist�ria das id�ias segundo a imagem que faz�amos delas e de n�s mesmos, mas sim tamb�m, e sobretudo, de supor por tr�s desse espelho a exist�ncia de um outro olhar, vivente e ativo, capaz de nos dar, caso necess�rio, uma resposta diferente daquela que decorria necessariamente da id�ia que t�nhamos de n�s e do passado.

Um “passado vivente”, por justa e precisa que pudesse ser sua imagem segundo o historiador mais agudo e escrupuloso, n�o seria no entanto propriamente vivente na simples leitura que dele fiz�ssemos; para ser vivente de fato e de direito, ele teria de fazer sua pr�pria leitura de n�s – sua leitura de nossas leituras dele. O car�ter vivente do passado se encontra menos no realismo de sua imagem, por mais completa e fiel, do que na sua capacidade de ver – e de nos fazer ver – a nossa imagem. Onde os melhores historiadores conseguiram fazer o passado vir a n�s, restaria a tarefa de nos levar at� ele, de nos submeter ao seu exame. Sabemos muito desse passado. Resta-nos conhecer o que ele sabia de n�s, o que ele sabe de n�s.

Em suma, se nossa preocupa��o de objetividade � algo mais que um simples desejo de reifica��o do passado, n�o se trata s� de saber o que pensamos de Plat�o ou de Descartes, mas tamb�m o que Plat�o e Descartes teriam pensado de n�s. O historiador deve tornar-se objeto, o historiado sujeito. Esse m�todo funda-se no pressuposto de que todo pensamento ou ato humano n�o tem sentido sen�o no quadro de um futuro projetado, desejado ou temido, e de que por isto � sempre poss�vel julgar o presente ante um tribunal dos tempos passados, tal como um adulto se p�e em julgamento ante o tribunal de seus sonhos de inf�ncia e de seus projetos de juventude, e por eles mede quase que infalivelmente seu fracasso ou sucesso. Trata-se, com isso, de corrigir os excessos e as distor��es inerentes a uma confronta��o onde um dos antagonistas se encontra protegido sob a carapa�a de uma confort�vel invisibilidade. Sem nos submeter a um tal julgamento, sem nos expor aos olhos dos mortos tanto quanto eles est�o expostos aos nossos, nossa pretensa objetividade hist�rica n�o ser� jamais sen�o uma ilus�o lisonjeira.

Muito tempo e muito esfor�o foram despendidos para que a ci�ncia e a cultura modernas se libertassem de um etnocentrismo ing�nuo – ou talvez malicioso, mas de mal�cia ing�nua – que tomava por absolutos e incondicionados certos valores que a evolu��o dos fatos hist�ricos n�o tinha produzido sen�o como adapta��es do homem ocidental a situa��es transit�rias. No entanto, a neutralidade axiol�gica a que as ci�ncias humanas se habituaram desde Max Weber, e o relativismo metodol�gico que se tornou o primeiro mandamento da pesquisa antropol�gica desde Margaret Mead, produziram, a longo termo, a queda num relativismo doutrinal, paradoxalmente dogm�tico e absolutista, o qual, fazendo de si mesmo a �nica vis�o aceit�vel do mundo, n�o resulta sen�o em restaurar retroativamente o mesmo etnocentrismo, sob pretextos inversos, uma vez que s� o Ocidente moderno tem por cren�a oficial o relativismo e que todas as culturas, quando se revoltam contra ele e defendem a absolutidade de seus valores e de suas verdades, s�o imediatamente condenadas como “atrasadas”, “radicais”, “fan�ticas”, “fundamentalistas”. N�o lhes resta, ante a autoridade absoluta do relativismo, sen�o o protesto absolutamente impotente do dominado ante o dominador.

Por outro lado, o relativismo dos antrop�logos e dos soci�logos n�o tomou sob a prote��o de seu comedimento axiol�gico sen�o alguma comunidades privilegiadas existentes ainda hoje – os �ndios, por exemplo –, recusando similar benef�cio �s comunidades extintas, �s �pocas passadas de nossa pr�pria cultura e �s comunidades “fundamentalistas” de nosso pr�prio tempo – isto �, aos mortos de morte f�sica e aos mortos de morte metaf�rica, todos condenados juntos a permanecer mudos e inermes ante a voz onipotente e onipresente do relativismo erigido em verdade absoluta. A revoga��o do etnocentrismo deixou intacto o cronocentrismo, que � o germe do qual ele renasce perpetuamente. E n�o � por acaso que em geral as comunidades exclu�das do di�logo sob pretexto de fundamentalismo s�o justamente aquelas que conservam o sentido de um di�logo com o passado, por exemplo os mu�ulmanos, os judeus ortodoxos, os cat�licos tradicionalistas – pessoas para as quais a revela��o cor�nica, o encontro de Mois�s com Yaveh no Monte Sinai, o sacrif�cio do Calv�rio n�o s�o rel�quias de uma �poca extinta, mas atualidades viventes � luz das quais se julgam os atos do dia. Eis como o relativismo moderno, que professava derrubar os muros do preconceito e da discrimina��o, termina por se constituir ele mesmo como a fortaleza da exclus�o. E se � verdade que cada uma dessas comunidades tem hoje em dia o dever de buscar uma via de concilia��o entre seu amor das tradi��es e seu desejo de ocupar um lugar num mundo pluralista, n�o o � menos que este mundo tem o dever de fazer de seu relativismo alguma coisa de melhor que um dogmatismo modernista hip�crita e intolerante.

Mas � claro que o �nico proveito que se pode obter do relativismo, quero dizer, de um relativismo s�rio que se atenha aos limites da metodologia sem pretens�es a uma autoridade dogm�tica, seria precisamente o de nos libertar de todo provincianismo, tanto espacial quanto temporal, o de alargar nossos horizontes e nos fazer subir a uma vis�o mais exata do quadro das rela��es onde nosso olhar se insere como um ator na cena, jamais como um puro espectador. O destino ideal de todo relativismo � o de ser provis�rio, � o de se transcender, de se transformar em outra coisa, de morrer como d�vida para renascer como certeza mais nuan�ada e verdadeira. T�o logo o relativismo deixa de ser um simples ponto de partida e se afirma como ponto de chegada, t�o logo ele deixa de ser um m�todo e se afirma como doutrina, ele se torna o mais opressivo e tir�nico dos dogmatismos, o mais injusto dos ju�zes, um magistrado invis�vel e onipresente que julga e condena sob o pretexto de se abster de julgar, e que portanto n�o � jamais responsabilizado por seus tem�veis veredictos5.

 

8. Conseq��ncias �ticas e pol�ticas da exclus�o dos mortos

A recusa de um di�logo de igual para igual com os viventes de outrora � o res�duo de um historicismo perempto em teoria mas investido de uma for�a nova enquanto ideologia e pressuposto inconsciente da imagem do mundo dominante neste fim de s�culo. As conquistas pol�ticas e sociais, a constitui��o de um mercado global com todas as mudan�as ps�quicas e sociais que o acompanham, tudo isto � de natureza a nos encerrar cada vez mais no presente, a estreitar nossa consci�ncia hist�rica, a fazer-nos ver o passado humano como um cemit�rio do irrelevante, portanto a nos colocar, por assim dizer, fora do tempo, isto �, fora de n�s mesmos, num estado de del�rio hipn�tico.

Mas, � medida que o passado se afasta de n�s, vai ficando cada vez mais dif�cil tom�-lo como termo de compara��o, e uma �poca que n�o pode ser comparada sen�o consigo mesma est� reduzida a um estado de autismo. Eis a origem dos abismos de inconsci�ncia que sulcam o espa�o de nossos debates p�blicos. Para n�o dar sen�o um exemplo, que me parece pertinente ao tema deste col�quio:

Nossos contempor�neos, imbu�dos de ilus�o igualit�ria, cr�em que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem se perguntarem se esse objetivo pode ser realizado por outros meios sen�o a concentra��o de poder. Essa ilus�o torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitiza��o, sem precedentes, dos meios de poder. O imagin�rio moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como a ep�tome do poder pessoal discricion�rio, e n�o se d� conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de la�os e compromissos de lealdade m�tua com seus servos, e que ademais n�o tinha outros meios de viol�ncia sen�o uns quantos cavaleiros armados de espada, lan�a, arco e flecha; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, �s vezes trazendo-o na garupa, de volta da taberna onde ambos se haviam embriagado, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas onde o grito se perde na dist�ncia, por uma l�mina vingadora. Pela foice do campon�s. Por uma faca de cozinha.

Em compara��o com ele, o homem poderoso de hoje est� colocado a uma tal dist�ncia dos dominados, que sua posi��o mais se assemelha � de um deus ante os mortais. Em primeiro lugar, os poderosos est�o isolados de n�s geograficamente: moram em condom�nios fechados, cercados de port�es eletr�nicos, alarmes, guardas armados, matilhas de c�es ferozes. N�o entramos l�. Em segundo lugar, seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que n�s temos; falar com um deles � uma aventura que demanda a travessia de barreiras burocr�ticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infal�veis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre s�o os verdadeiros detentores do poder: h� fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e nossos pedidos, nossas impreca��es e mesmo nossos tiros arriscam acertar uma fachada in�cua, deixando a salvo o verdadeiro destinat�rio que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos raz�es para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele. Ap�s dois s�culos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe deste latif�ndio: os poderosos pairam acima de n�s na nuvem �urea de uma inatingibilidade divina.

O servo-da-gleba tamb�m tinha o direito de ir e vir, sem passaportes ou vistos e sem ser revistado na alf�ndega (o primeiro senhor de terras que resolveu taxar a travessia de suas propriedades desencadeou uma rebeli�o camponesa e pereceu num banho de sangue; o epis�dio deu tema a uma novela de Heinrich von Kleist: Michel Kolhaas). Tinha ainda o direito de mudar de territ�rio, caso lhe desagradasse o seu senhor, e instalar-se nas terras do senhor vizinho, que era obrigado a receb�-lo em troca de uma promessa de lealdade. E, por fim, se ca�sse na mais negra mis�ria, tinha as terras da Igreja, onde todos eram livres para plantar e colher, por um direito milenar; a Revolu��o encampou essas terras e as rateou a pre�o vil, enriquecendo formidavelmente os burgueses que podiam compr�-las em grande quantidade, e criando a horda dos sem-terra que foram para as cidades formar o proletariado moderno e trabalhar dezesseis horas por dia, sem outra esperan�a sen�o a de uma futura revolu��o socialista (que os reverteria a uma condi��o similar � de escravos romanos). E, se atrav�s de lutas e esfor�os sobre-humanos o movimento sindicalista obt�m finalmente para essa horda a jornada de trabalho de oito horas e a semana de cinco dias, ela ainda est� abaixo da condi��o do campon�s medieval, que n�o trabalhava, em m�dia, sen�o uns seis meses por ano. Eis como o progresso dos direitos nominais n�o se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais. 6

A dist�ncia que separa, nos nossos debates correntes, os conceitos e os fatos, d� �s vezes � vida intelectual contempor�nea o ar de um di�logo de loucos. A causa mais profunda disto � a absolutiza��o do tempo, que causa a perda da perspectiva hist�rica e a incapacidade de nos medirmos. Ap�s haver calado os homens de outros tempos, nossa �poca, prisioneira de sua singularidade absoluta, termina por se tornar invis�vel e incompreens�vel a si mesma, uma vez que, como o dizia o aristotelismo medieval, individuum est ineffabile.

Reencontrar o di�logo com o passado � reconquistar o sentido da unidade da esp�cie humana, e seria loucura pretender reintegrar na humanidade este ou aquele grupo que estejam hoje entre os exclu�dos e os discriminados, sem antes revogar a discrimina��o de toda a humanidade que nos precedeu.

O homem que, n�o podendo falar nem tendo quem fale por ele, n�o est� � altura de por em quest�o o que dizemos dele, est� para n�s como os mortos est�o para os vivos. Mas t�o logo nos damos conta de que esta analogia � algo mais que analogia, que ela traduz a rela��o real e efetiva que temos com os mortos, � justo perguntar se a exclus�o que reduz metaforicamente os exclu�dos � condi��o de mortos n�o se funda numa pr�via exclus�o, literal e efetiva, dos mortos da assembl�ia dos falantes. Se n�o f�ssemos surdos �s vozes dos mortos, dificilmente o ser�amos �s vozes daqueles que reduzimos a uma condi��o similar � dos mortos. Se o afastamento f�sico total e definitivo n�o fosse suficiente para sufocar o grito dos homens, tamb�m n�o o seriam as barreiras de ra�a, de sexo, de cren�a, de na��o.

Que importam no fim das contas, a discrimina��o e a exclus�o de tal ou qual grupo, se o cronocentrismo de nossa cultura exclui e discrimina quase toda a humanidade? N�o seria talvez excessivo perguntar se as discrimina��es parciais que este col�quio discute n�o s�o porventura express�es menores e localizadas de uma geral discrimina��o do homem mudo pelo homem falante. Dos ausentes pelos presentes. Dos mortos pelos vivos.

O primado do momento que passa sobre toda a hist�ria humana n�o � somente um erro de perspectiva, uma falta de realismo; ele � tamb�m o primado do eu sobre o outro, dos interesses imediatos sobre as exig�ncias da raz�o e do amor ao pr�ximo. De um pr�ximo que um artif�cio cronoc�ntrico torna distante. Se em nossa vida pessoal o imediatismo est� intimamente associado ao ego�smo e � repress�o da consci�ncia moral, porque n�o o estaria tamb�m no plano maior da hist�ria e dos mil�nios? Com tanto mais raz�o, as exclus�es e discrimina��es n�o sendo sen�o outros nomes de uma esp�cie de ego�smo social, n�o � razo�vel pretender mover-lhes combate e ao mesmo tempo preservar ao abrigo de todo ataque esse ego�smo temporal que � o cronocentrismo.

 

NOTAS:

  1. “Les plus exclus des exclus: Le Silence des morts comme mod�le des vivants defendus de parler”, confer�ncia no simp�sio internacional Forms and Dynamics of Exclusion, UNESCO, Paris, 22-26 de junho de 1997. Tradu��o de Carla Vital. Voltar
  2. Miguel Reale, Li��es Preliminares de Direito, 23a. ed., S�o Paulo, Saraiva, 1996, p. 51. Voltar
  3. V. Enrico Berti, Arist�teles no S�culo XX, trad. Dion Davi Macedo, S�o Paulo, Loyola, 1997. Voltar
  4. Deborah L. Black, “Le ‘syllogisme imaginatif’ dans la philosophie arabe: contribution m�di�vale � l’�tude philosophique de la m�taphore”, em M. A. Sinaceur (org.), Penser avec Aristote, Toulouse, �res-UNESCO, 1991; Salim Kemal, “Aristotle's Poetics in Avicenna's Commentary”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII: 1990, 173-210. Voltar
  5. V. “O Antrop�logo Antrop�fago: Considera��es sobre o Relativismo”, confer�ncia pronunciada na Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, a ser publicada proximamente pela Faculdade da Cidade Editora. Voltar
  6. Olavo de Carvalho, O Jardim das Afli��es, 2a. edi��o, V, IX, �32: pp. 267-269. S�o Paulo, � Realiza��es, 2000. ISBN 85-88062-01-1. (Nota original, referente � 1a. edi��o: O Jardim das Afli��es, IV, IX, �32: pp. 350-351.) Voltar

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