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A Justi�a brasileira perante a Nova Ordem Mundial

Mensagem enviada por Olavo de Carvalho ao II Encontro Regional da Justi�a do Trabalho da 15� Regi�o, S. Jos� do Rio Preto, SP.

 

Impossibilitado de estar fisicamente presente a esse simp�sio, atendo ao gentil convite do TRT de Campinas enviando como representantes, desde o outro lado do oceano, alguns exemplares dessa esp�cie de seres, por natureza, alados e a�reos: as palavras. Num escritor, elas s�o os �nicos atributos que importam; e talvez, desobstru�das de toda interfer�ncia da minha presen�a f�sica, acabem me representando melhor do que eu mesmo. Dito isto, entro no assunto. De tempos em tempos ouvimos falar que a justi�a brasileira est� em crise. Crise � um estado de conflito radical entre os princ�pios fundamentais e as leis incumbidas, teoricamente, de realiz�-los na esfera pr�tica. Quando uma sociedade perde de vista os princ�pios que a inspiram e fundamentam, as discuss�es sobre as leis proliferam ilimitadamente, sem que ningu�m tenha a certeza �ntima e sincera de defender a opini�o correta, pois s� os princ�pios poderiam fundar esta certeza e nessa hora o que falta n�o s�o opini�es, mas justamente os princ�pios capazes de arbitr�-las. � a� que cada um procura tanto mais teimosamente persuadir os outros quando menos persuadido ele pr�prio se encontra. Ao mesmo tempo, junto com as opini�es, proliferam as pr�prias leis, numa tentativa est�ril e v� de ordenar por fora aquilo que por dentro j� n�o � sen�o fragmenta��o e desordem no meio da cegueira geral.

Recentemente, um amigo meu, o advogado C�ndido Prunes, me informou que, s� no que concerne a um item espec�fico e limitado — a aloca��o de recursos do or�amento federal —, o n�mero de dispositivos legais j� sobe a 5.200, entre leis, decretos, medidas provis�rias, etc. etc. Id�ntico florescimento quantitativo observa-se em muitos outros dom�nios da legisla��o, entre os quais � at� covardia mencionar o direito tribut�rio. A multiplica��o das normas vigentes tem dois efeitos bastante �bvios: em primeiro lugar, elas perdem sua for�a normativa, j� que cada uma � atenuada, mediatizada, desviada e eventualmente, na pr�tica, at� mesmo neutralizada por uma centena de outras. Em segundo lugar, se considerarmos — para voltar s� ao caso do or�amento — que s� rar�ssimos seres humanos s�o capazes de decorar 5.200 versos, quanto mais 5.200 normas, a situa��o assim criada torna nulo e sem efeito um dos princ�pios fundamentais, que � aquele segundo o qual ningu�m tem o direito de alegar desconhecimento da lei. Na pr�tica, ningu�m tem mais � a possibilidade de alegar, verossimilmente, o CONHECIMENTO da lei. Nenhum brasileiro pode hoje, nos atos mais simples da vida comercial, familiar, funcional, etc., acreditar que sua simples boa-consci�ncia espont�nea seja um indicador confi�vel de que ele est� dentro da lei. Quando as leis se transformam num emaranhado inabarc�vel a olho nu, a prud�ncia recomenda que o cidad�o esteja ciente de que a qualquer momento pode estar cometendo alguma infra��o sem perceber.

Eis a� um exemplo de conflito radical entre um princ�pio e as leis que, teoricamente, deveriam ser o seu prolongamento l�gico. Ao contr�rio do que acontece no dom�nio do puro pensamento te�rico, onde as conseq��ncias derivam das premissas linearmente e sem desvios, no curso tortuoso da vida hist�rica acontece que as conseq��ncias se voltam contra as premissas e, numa rebeli�o suicida, revogam seus pr�prios fundamentos. Isso � o que se denomina uma crise da justi�a.

A express�o "crise da justi�a" parece denotar, desde logo, o imp�rio da injusti�a. E o imp�rio da injusti�a, por sua vez, n�o pode apresentar outra apar�ncia sen�o a de um caos sangrento, a luta de todos contra todos. Ser� isso o que ocorre no Brasil?

Algo na vida cotidiana de algumas grandes capitais parece confirmar esse diagn�stico. A atmosfera de medo, brutalidade e desconfian�a, o banditismo triunfante e auto-satisfeito, a insubordina��o e corrup��o de tantos funcion�rios do Estado — tudo isto confirma a veracidade ao menos parcial do diagn�stico de injusti�a generalizada que se associa espontaneamente � express�o "crise da justi�a".

No entanto, quem percorra o interior do Brasil, tanto o campo quanto as pequenas cidades nas quais se distribui a maior parte da nossa popula��o, ou mesmo as capitais de prov�ncia que ainda n�o entraram em crescimento canceroso e conservam propor��es compat�veis com a escala humana, n�o encontra nada daquela turva e inquietante desordem que sacode as capitais maiores. Mesmo nas regi�es mais pobres, onde a desigualdade social mais pronunciada deveria — se a viol�ncia tivesse causas econ�micas — produzir os maiores dist�rbios, o que se observa ainda � o mesmo bom e velho povo brasileiro de sempre, ordeiro, pac�fico, sempre mais inclinado a enfrentar suas dificuldades pelo trabalho e pela ora��o do que a jogar as culpas sobre outras pessoas (mesmo quando estas t�m de fato uma parcela de culpa nada pequena) e sempre resistindo, com uma serenidade milagrosa, � tenta��o da amargura e do ressentimento.

Em 1997, num debate de que participei em Porto Alegre, defrontei-me com o sr. Jo�o Pedro Stedile, o qual, agitando os bra�os e elevando a voz, proclamava existir na �rea rural brasileira "um estado end�mico de viol�ncia". Com toda a calma, mas sem poder conter de todo o riso ao menos discreto que a situa��o me inspirava, apelei ao testemunho do pr�prio sr. Stedile, que dizia uma coisa enquanto orador e outra completamente diversa enquanto escritor. Pois o livro de sua autoria, "A Quest�o Agr�ria no Brasil", do qual, por uma dessas coincid�ncias providenciais, um exemplar tinha vindo parar �s minhas m�os algumas horas antes do debate, informava que em toda a extens�o do campo brasileiro, onde se concentram mais de 30 por cento da nossa popula��o, o n�mero de homic�dios, ao longo da �ltima d�cada, n�o tinha passado de 40 por ano, um n�mero inferior ao registro, n�o digo anual, mas mensal, de qualquer delegacia de bairro nas grandes capitais. O n�mero, se algo provava, era que o campo era ainda, como sempre, a regi�o mais pac�fica do Brasil. E esse n�mero seria ainda reduzido pela metade se l�deres apressados como o pr�prio Sr. Stedile, incitando e comandando invas�es sem sentido nem proveito, n�o tivessem precipitado artificialmente situa��es de �dio que uma estrat�gia mais inteligente e mais humana teria evitado, alcan�ando com menos dores os objetivos de um movimento que, em si, nada tem de injusto.

O sr. Stedile n�o deve ter apreciado muito essas observa��es, pois, quando chegou a sua vez de me interpelar, recusou-se a faz�-lo, bufando, esfregando nervosamente as m�os e alegando que seu oponente n�o merecia a honra de ser interrogado, afirma��o que interpretei como sinal de que suas perguntas, se as fizesse, teriam sido demasiado cient�ficas para os meus parcos recursos intelectivos.

Mas conto esse epis�dio s� para ilustrar que, em plena crise da justi�a, reconhecida e proclamada por todos, o estrato mais profundo da vida brasileira, a vida do povo brasileiro, permanece obediente a regras tradicionais de conviv�ncia que nem a confus�o das leis, nem a perplexidade dos intelectuais urbanos, nem a brutalidade e a corrup��o das grandes cidades lograram abalar.

Ao dizer isto, acabo de formular um problema. Problema, dizia Ortega y Gasset, � consci�ncia de uma contradi��o. Porque o fato � que n�s, homens letrados, professores, jornalistas, doutores, bachar�is, nos atormentamos diante da crise da justi�a, que para n�s significa desorienta��o e caos, significa n�o saber o que fazer, significa perplexidade e dificuldade para discernir o certo e o errado, enquanto no interior do Brasil os homens iletrados, o pov�o que com tanta emp�fia denominamos ignorante, parece perfeitamente orientado, perfeitamente sabedor do certo e do errado, perfeitamente capaz de obedecer quase que por instinto �s regras n�o escritas que tradicionalmente ordenam as rela��es entre os homens, os grupos, as fam�lias, e permitem que a vida, mesmo no meio de tantas dificuldades e desventuras, ainda tenha um rosto humano.

A justi�a est� em crise? Sim, a justi�a escrita est� em crise. Os pap�is avolumaram-se, os registros acumularam-se, as decis�es de tantos legisladores e int�rpretes foram formando uma montanha densa de enigmas e impossibilidades, at� o ponto em que os tribunais inferiores, n�o sabendo o que fazer, t�m de chutar cada vez mais os problemas para os escal�es superiores e estes, como se fossem deuses, t�m de arbitrar o inarbitr�vel, inteligir o inintelig�vel e produzir justi�a desde o ac�mulo de injusti�as.

A �ltima coisa que eu desejaria ser, hoje, � ministro do Supremo Tribunal Federal. Contaram-me que cada uma dessas criaturas tem de examinar, em m�dia, oito processos por dia. Algum de voc�s j� teve de tomar na vida uma decis�o for�ada pela urg�ncia das circunst�ncias? Pois esses senhores tomam uma atr�s da outra, incansavelmente, movidos a comprimidos para n�o dormir e a enxertos de pontes de safena. Sim, a justi�a dos homens letrados est� em crise.

Essa crise, para piorar, n�o vem s� de dentro. De todos os lados, vendo a justi�a vacilar, outros homens letrados perdem a confian�a nela e a atacam, desejando subjug�-la, pedindo que seja submetida a controle externo — como se o controlador n�o tivesse de ser em seguida controlado por outro controlador, e este por outro, e assim por diante infindavelmente, e como se a prolifera��o dos controles n�o fosse, por si pr�pria, a prova mais eloq�ente do descontrole do conjunto.

Mas, no meio de tanta celeuma e desorienta��o geral, olhem em torno. N�o ver�o um povo descontrolado e possesso, mas um povo tranq�ilo e firme, fiel a normas de senso comum que ningu�m lhe ensinou, que parecem vir espontaneamente do fundo das �pocas ou talvez do fundo da natureza das coisas. Esse povo, que desconhece as leis, parece conhecer mais profundamente que n�s, letrados, os princ�pios que as fundamentam. Eles bastam para orient�-lo nas quest�es b�sicas da vida, pelo menos at� o ponto em que � necess�rio recorrer � justi�a dos letrados, porque a� tudo se complica formidavelmente.

N�o � de hoje que esses dois Brasis coexistem em camadas separadas e mutuamente impenetr�veis como o �leo e a �gua: o Brasil da ordem costumeira, lento, firme, seguro de si, e o Brasil das leis escritas, nervoso, inquieto, sempre devorando-se a si mesmo em acessos furiosos de autodestrui��o em que o proibido se torna obrigat�rio e o obrigat�rio proibido.

N�o ser� precisamente nesse descompasso entre a vida e as leis que reside a famosa "crise da justi�a"?

Nesse caso, a justi�a brasileira n�o est� em crise s� neste momento. Ela viveu em crise, pelo menos, desde o s�culo passado.

As leis s�o obras de gente letrada, e a gente letrada tem o h�bito de olhar menos para o povo iletrado do interior do que para as gentes ainda mais letradas do Exterior. Sim, desejamos acompanhar as transforma��es do mundo, temos medo do que v�o dizer de n�s em Nova York e Paris, tememos ser chamados de atrasados e caipiras. Por isto, t�o logo alguma nova doutrina surge por l�, nos apressamos a remoldar por ela todo o conjunto das nossas leis. Nossas constitui��es, que se sucedem velozmente, refletem menos a ordem real da nossa vida do que os ideais da classe letrada, a que o povo permanece profundamente indiferente. N�o as fizemos para expressar o que realmente somos, para manifestar por escrito os princ�pios que governam a nossa vida. Ao contr�rio: fizemo-las para ser o que n�o �ramos, fizemos para nos tornar, por obriga��o escrita, aquilo que, de olho num mundo em r�pida transforma��o, as classes letradas desejavam que f�ssemos. Repetidamente, n�s, o povo, temos decepcionado essas grandes esperan�as dos reformadores. Repetidamente temos insistido em ser somente o que somos.

A crise atual da justi�a, novamente, sacode as classes letradas sobre o pano de fundo da indiferen�a popular, reiterando o descompasso entre os dois Brasis.

No momento, por�m, a crise apresenta um componente novo, ausente em todas as mudan�as anteriores, traum�ticas o quanto fossem, com que procuramos adaptar a um mundo em mudan�a um povo que quase sempre insistia em n�o mudar. � que antes nos limit�vamos a copiar, com admira��o e inveja, as novas normas produzidas no Exterior. �ramos n�s, os letrados brasileiros, que �amos no encal�o da moda.

Agora, os novos moldes n�o esperam at� que os copiemos. J� n�o somos n�s que os procuramos. S�o eles que nos procuram, s�o eles que se imp�em, respaldados em poderes incalculavelmente vastos que decidem os destinos do mundo e n�o nos perguntam se concordamos.

As novas normas, os novos valores, as novas leis, os novos crit�rios v�m prontos do Exterior e n�o querem saber nossa opini�o. Os nos adaptamos, ou somos jogados para fora dos trilhos da Hist�ria, ou ao menos para fora do mundo economicamente real. Nossa �nica escolha � entre a obedi�ncia e a exclus�o. Eis a justi�a brasileira ante a Nova Ordem Mundial.

Crise da justi�a? Esta express�o, como vimos, tem sentido duplo. Designa, de um lado, a confus�o geral entre os doutores, � qual o povo permanece largamente indiferente, regido, como sempre, por princ�pios e costumes que ele n�o aprendeu com os doutores. Este � o sentido imediato da express�o "crise da justi�a".

Mas, numa escala hist�rica mais duradoura, ela designa o descompasso permanente entre a esfera das leis escritas, sempre em mudan�a para acompanhar o ritmo do mundo, e a vida do povo brasileiro, que, assentando-se nos princ�pios e na autoconfian�a da consci�ncia limpa, n�o precisa conhecer as leis para agir de maneira correta e s�.

H� duas crises da justi�a brasileira: a nova e a velha. A nova reflete a dificuldade que as classes letradas encontram para criar um aparato judicial que funcione t�o bem quanto se sup�e que funcione a justi�a de tal ou qual pa�s dito mais avan�ado. Essa crise reflete o desejo das classes letras de lutar contra o arca�smo, o desejo de entrar na modernidade.

Mas a crise mais velha, o div�rcio entre leis e costumes, agrava-se precisamente na medida em que a classe letrada vai mudando as leis antes mesmo que o povo tenha se dado conta de que elas existem. Por isto dizia Euclides da Cunha: "Estamos condenados ao progresso." Sim, condenados: o progresso, a modernidade, nos vem sempre de fora, de repente, como um traje apertado que nunca nos cabe direito.

Enquanto esse desajuste consistiu apenas numa diferen�a de ritmo entre as classes letradas e o povo, foi sempre poss�vel alguma solu��o de compromisso, gra�as ao g�nio brasileiro do meio-termo, da concilia��o, das solu��es pr�ticas fundadas num acordo t�cito de descumprir as leis da maneira mais legal poss�vel. Mas agora j� n�o s�o as nossas classes letradas que buscam adaptar-se a um modelo estrangeiro admirado e invejado. Agora � o pr�prio modelo que chega de repente e nos imp�e, do dia para a noite, as mais bruscas modifica��es de costumes, de normas, de leis.

A modernidade bate � nossa porta, n�o como um portador de boas novas, mas como um oficial-de-justi�a que nos traz uma intima��o: adaptem-se ou morram.

A quest�o que se coloca para todos n�s, nesta hora, � se esta adapta��o supremamente radical e brusca n�o abrir� at� �s dimens�es de um abismo intranspon�vel o hiato j� existente entre a cultura do nosso povo e as institui��es legais com que as classes letradas procuram revesti-la. A quest�o � saber se, para ajustar-nos ao mundo, n�o nos desajustaremos definitivamente de n�s mesmos, perdendo, para sempre, o senso de unidade cultural j� t�o enfraquecido por tantas adapta��es anteriores. A quest�o � saber se, para adaptar-nos � Nova Ordem Mundial, n�o institucionalizaremos a desordem nacional, cristalizada no abismo entre a cultura popular e as leis.

A Nova Ordem Mundial, por si — garanto —, n�o est� nem ligando para esse problema. O que ela quer � obedi�ncia, ajuste, concord�ncia, coer�ncia geom�trica de um mundo arquitetado por engenheiros comportamentais para a maior gl�ria do poder global. Se para tanto for preciso esmagar aqui e ali um pa�s a mais ou a menos, quem se importa? O carro da Hist�ria, dizia Trotski, esmaga as flores do caminho.

Entre o carro e as flores, deixo portanto voc�s ante esse enigma, que n�o me cabe resolver em seu lugar.

Que cada um, no sil�ncio da sua intimidade, medite e receba, com a ajuda de Deus, a inspira��o melhor, e que o pensamento de todos acabe por encontrar o caminho mais afortunado para este pa�s.

Muito obrigado a todos pela sua aten��o.

 

26/08/99

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