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Coisa de ignorante

Olavo de Carvalho

 

Um leitor da Folha queixa-se de que meu artigo �A grandeza de Josef Stalin� peca por atribuir a II Guerra Mundial a uma causa �nica em vez da multiplicidade de causas que ele, leitor, como ali�s o p�blico em geral, aprendeu a recitar de cor. A obje��o � totalmente deslocada e revela apenas falta de experi�ncia no trato desses assuntos.

J� � abusivo que algu�m se aventure a responder a uma explica��o assim de atropelo, antes de sequer pensar em examinar a pesquisa que ela resume. Vexaminoso e supremamente bobo � opor a documentos rec�m-revelados um estere�tipo de explica��o causal consagrado na cren�a popular, e ainda fazer isso com ares de quem d� li��es de Hist�ria.

A mera confus�o que o leitor faz entre a reconstitui��o dos fatos e a investiga��o de supostas �causas� j� basta para mostrar que ele ignora tudo da ci�ncia hist�rica exceto o que possa ter colhido em livros de gin�sio ou em filmes de TV.

Uma coisa � reconstituir, pelos documentos, a seq��ncia l�gica das decis�es e a��es de um dos protagonistas do drama, outra coisa totalmente diversa � especular as �causas� determinantes do processo como um todo. A primeira dessas opera��es � Hist�ria, em sentido estrito, a segunda � uma aventura interpretativa que s� de vez em quando tem algo a ver com ci�ncia hist�rica.

Se na reconstitui��o descobrimos que um dos agentes envolvidos teve, de antem�o, uma vis�o clara do curso poss�vel dos eventos, orientou suas decis�es a cada passo segundo um diagn�stico objetivo da situa��o e chegou a resultados aproximativamente id�nticos aos que planejava, dizemos que foi o �criador� desses resultados, mas n�o a �causa� deles, de vez que nenhuma cria��o humana, seja na pol�tica, na arte ou em qualquer outro campo de atividade, pode se produzir ex nihilo, mas tem de tomar como mat�ria-prima e ocasi�o certos processos causais preexistentes que o pr�prio agente n�o poderia ter criado. Se essa distin��o, em si mesma clara e inequ�voca, ainda parece obscura ao meu interlocutor, um paralelo com a arte eliminar� suas dificuldades: Wolfgang Amadeus Mozart foi o �criador� da �Flauta M�gica�, mas n�o foi a �causa� de que numa certa �poca e num certo pa�s, em tais ou quais circunst�ncias, um indiv�duo de nome Wolfgang Amadeus Mozart viesse a criar precisamente uma �pera denominada �Flauta M�gica� e n�o outra coisa, ou mesmo coisa nenhuma. A cria��o pode ser documentada, reconstitu�da em suas fases, compreendida na sua l�gica interna e articulada com  outras cria��es do mesmo autor, tudo isso independentemente e antes de qualquer especula��o de �causas�, que teria de remontar a etapas bem anteriores e levar em conta um quadro de refer�ncias praticamente ilimitado, perdendo em precis�o o que ganhasse em amplitude especulativa. O pr�prio Mozart teria, decerto, muito mais facilidade para recordar a seq��ncia de etapas percorridas na composi��o da �pera do que em explicar �por que�, afinal, a criou, exceto se como �causa� se entendesse a mera inten��o subjetiva do personagem. O �por que� as coisas aconteceram, na maior parte dos casos, s� Deus sabe. O historiador contenta-se, quase sempre, com o �como�, e n�o se aventura a conjeturar os porqu�s antes de certificar-se de que todas as seq��ncias de a��es dos v�rios protagonistas s�o bem conhecidas, n�o s� isoladamente mas na sua m�tua articula��o temporal.

A simples revela��o de documentos in�ditos que alteram o conhecimento de uma das seq��ncias j� basta, por si, para colocar entre par�nteses, at� novo exame, todas as hip�teses causais conhecidas, e alegar uma destas contra a autoridade dos documentos �, para falar o portugu�s claro, coisa de ignorante.

29/12/03