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Dois estudos sobre Aldous Huxley

Olavo de Carvalho

Pref�cios a Admir�vel Mundo Novo e A Ilha,
escritos para a reedi��o dessas obras pela Editora Globo, S�o Paulo, 2001.

 

1. Admir�vel Mundo Novo

 

�������� Se houve no s�culo XX um escritor que nunca cedeu ao cansa�o e ao t�dio, que conservou at� o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que n�o cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreens�o, at� chegar, em seus �ltimos dias, �s portas de uma aut�ntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.

�������� Como artista, � cheio de imperfei��es. Nenhuma de suas obras d� a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contr�rio, cada uma delas, se tem o brilho de um achado liter�rio premiado por um �xito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo p�blico, foi com freq�encia visto com certo desd�m pelos cr�ticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a cr�tica erudita julga livros e n�o almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, � bem melhor do que a cr�tica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o p�blico o enxergou melhor que os cr�ticos. Poucos homens de letras souberam honrar t�o bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o p�blico lhes devotou.

�������� S�mbolo e resumo de sua trajet�ria vital � a luta de d�cadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doen�a que aos 17 anos reduziu sua vis�o a aproximadamente um d�cimo do normal n�o foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocasi�o de especula��es v�s sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percep��o, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflex�es epistemol�gicas bem mais interessantes do que muitas obras de fil�sofos acad�micos sobre o assunto. � Algumas dessas reflex�es surgiram ao longo de sua experi�ncia com os exerc�cios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar c�lebre. O Dr. Bates era um inimigo dos �culos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que s�o estrangulados pela camisa-de-for�a de uma lente de grau fixo. Muito de sua t�cnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual� e o amor � luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formid�vel import�ncia filos�fica de sua t�cnica. Mas Huxley, � medida que recuperava a vis�o gra�as aos exerc�cios de Bates, ia fazendo duas descobertas filos�ficas fundamentais. ������ A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o soubesse, pelo fil�sofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filos�ficas deste e de muitos s�culos. Segundo Zubiri, n�o existe aquela coisa kantiana de dados sens�veis brutos, ca�ticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padr�es a priori. A percep��o humana �, inerentemente, percep��o intelectiva ou, na f�rmula zubiriana, �intelig�ncia senciente�. Isto tapava, de um s� golpe, o abismo que tr�s s�culo de idealismo filos�fico haviam cavado entre conhecimento e realidade. �Realidade�, diz Zubiri, � o aspecto formal que o ser oferece � percep��o humana. N�o h� uma �coisa em si� a ser apreendida para al�m da percep��o, porque, precisamente, o que o ser oferece � nossa percep��o � o seu �em si� e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele � �de suyo�, de seu, de pr�prio, de real.

�������� Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do fil�sofo s� vieram a difundir-se no mundo a partir da d�cada de 70, ap�s a morte de romancista), chegou, pela experi�ncia pessoal da luta pela vis�o, a conclus�es similares. A �arte de ver� (The Art of Seeing, 1943) n�o consistia no esfor�o interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instru��o que inquire ativamente a testemunha em vez de deix�-la falar o que quer. Bem ao contr�rio, consiste numa aceita��o passiva e gentil daquilo que as coisas, �de suyo�, queiram nos mostrar. A redu��o da libido dominandi intelectual �s suas justas propor��es fazia do ato de ver uma devo��o contemplativa ante a realidade do mundo.

�������� A segunda descoberta filos�fica de Huxley, no curso de seus exerc�cios �pticos, filia-o a uma tradi�ao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acad�mico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experi�ncias, revelava-se essencialmente como luz -- luz no sentido f�sico, sustentada, por�m, desde o �ntimo, pela luz espiritual. A ativa��o desta �ltima, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz intelig�vel que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente � sua revela��o pela luz f�sica. A medita��o deste ponto remonta � �filosofia iluminativa� de� Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) fil�sofo persa cujas descobertas s� encontraram, no Ocidente, um eco acidental e long�nquo em observa��es casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na �poca em que fazia as experi�ncias relatadas em The Art of Seeing, j� estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmene sohrawardiana.

�������� Esses pontos j� bastam para mostrar a intensidade filos�fica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da m�dia dos romancistas do seu tempo.

�������� Mas a especula��o vivenciada dos mist�rios da percep��o levou-o a algumas interessantes experi�ncias no campo da t�cnica ficcional. Em �Contraponto� (1923), ele esbo�a a reconstitui��o da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposi��o de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, � primeira vista, na s�ntese kantiana. Mas, lida com mais aten��o, cada cena do romance j� traz em si, como em miniatura, o t�nus emocional do conjunto. N�o se trata, pois, da unifica��o intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que �dados� atom�sticos kantiano, os epis�dios de �Contraponto� s�o m�nadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu �ngulo pr�prio, a forma do conjunto.

�������� Algo dessa t�cnica repete-se nas primeiras p�ginas do �Admir�vel Mundo Novo�. Flashes da produ��o de beb�s in vitro, do doutrinamento de crian�as para a cidadania padronizada, das divers�es programadas como parte da disciplina civil, v�o recompondo, aos poucos, a imagem global� de um mundo do qual a liberdade de escolha foi exclu�da e onde as criaturas repousam confortavelmente na submiss�o hipn�tica � ordem estatal perfeita. A sociedade futura a� descrita, que o autor situa no s�culo VII d. F. (�depois de Ford�, ou �s vezes �depois de Freud�) � aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: �Uma s�rie de id�ias, pensamentos, sugest�es e inten��es, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordin�rio das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos.� Um universo assim constru�do teria uma constitui��o nitidamente kantiana: s�ntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa n�o �, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. N�o se pode controlar administrativamente as emo��es humanas sem a ajuda qu�mica (as pastilhas de soma), nem habituar as multid�es � satisfa��o bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposi��es gen�ticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simult�neo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle gen�tico, adestramento comportamental e intoxica��o coletiva n�o s�o dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: s�o �rg�os solid�rios e insepar�veis de um mesmo e �nico sistema. Onde quer que apare�a um deles, os outros o seguir�o, mais cedo ou mais tarde. A l�gica deste romance imita e condensa a l�gica da Hist�ria.

�������� Por isso mesmo o �Admir�vel Mundo Novo� � menos uma utopia, uma especula��o sobre um futuro poss�vel, do que a percep��o imediata do nexo interna por tr�s de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na �poca em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, n�o somente do mundo poss�vel no s�culo VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber� a unidade subjacente �s id�ias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concep��es de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As refer�ncias, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros �ma�tres � penser� da d�cada de 20 abundam nas p�ginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagn�stico da unidade de sentido por tr�s de tend�ncias de pensamento que se ignoravam umas �s outras no instante mesmo em que, �s cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edif�cio: o edif�cio da Nova Ordem Mundial.

�������� O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, � mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se d�o conta de quanto ele contribuiu para form�-la, coisa que no entanto j� estava �bvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro �A Revolu��o Invis�vel� (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que feito de t�o magna import�ncia fosse obra de um autor que representa mais do que ningu�m a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, � coisa que n�o deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, n�o � outra coisa sen�o a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o Sr. Wells se sentiria t�o � vontade quanto Bouvard e P�cuchet.

�������� As contribui��es menores n�o devem por�m ser desprezadas. Nossas concep��es atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualit�rio das massas n�o teriam sido poss�veis sem o relativismo antropol�gico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi t�o prec�ria quanto � minguado o talento liter�rio do Sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudoci�ncia e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua fun��o, como j� dizia Karl Marx, n�o � a de compreender o real, mas a de mud�-lo. Mas as id�ias n�o precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para al�m de seus limites razo�veis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos c�es. O homem n�o pode ser compreendido integralmente � luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscern�vel de um c�o, o que dar� � psicologia de Pavlov, na pr�tica, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo an�logo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanal�ticos, militantes prolet�rios ou pe�as de uma linha de produ��o, dando uma esp�cie de �segunda realidade�, como diria Robert Musil, �s ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria t�o dif�cil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do d�cimo andar, j� se encontrasse � altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que as rodeia � dessa mesma �ndole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com suas pr�prias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contest�-la em pensamento.

�������� A unidade maci�a do pesadelo descrito neste livro n�o � um produto da mente, construido com ind�cios esparsos, um vulgar �silogismo imaginativo� eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contr�i uma terceira, fict�cia, e nela cr�. � antes a vis�o real da unidade da atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada -- erroneamente -- num s�culo futuro. Erroneamente, digo eu, porque o pr�prio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: �As profecias feitas em 1931 est�o para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava�, afirmou ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante colet�nea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuas�o qu�mica, hipnop�dia, influ�ncia subliminar e outras t�cnicas de manipula��o comportamental que,� previstas para o s�culo VII d. F., j� estavam prontas para o uso na segunda metade do s�culo XX. Passado mais meio s�culo, por�m, j� transcendemos a �poca das descobertas t�cnicas e entramos, em cheio, na da sua aplica��o rotineira em escala mundial. Uma boa descri��o parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Minist�re de la R�forme Psychologique (Paris, �ditions Notre-Dame des Gr�ces, 1998), que analisa as t�cnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os ausp�cios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclus�es do seu exame s�o duas. Primeira, a educa��o das crian�as no mundo de hoje despreza a sua forma��o intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidad�ozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as t�cnicas usadas para esse fim pouco t�m a ver com o que que se denominava tradicionalmente �pedagogia�, mas se constituem essencialmente de manipula��o pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, � formula��o de uma �tica padronizada para abolir todas as diferen�as culturais e religiosas, � instaura��o de um poder m�dico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e sa�de, � cria��o de tribunais mundiais para impor � toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e P�cuchet -- nada disso � coincid�ncia, nada disso � s�ntese mental de dados esparsos. � a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagn�sticos.

�������� No entanto, o mundo em que vivemos ainda n�o se parece, no seu todo, com o Admir�vel Mundo Novo. A diferen�a principal � que neste os �selvagens�, isto �, as pessoas que rejeitavam a exist�ncia antiss�ptica na sociedade perfeita e continuavam presas de h�bitos b�rbaros como ler a B�blia, rezar e educar seus pr�prios filhos em vez de entreg�-los ao Estado, se encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de quil�metros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que s� acreditam nos notici�rios da TV e que entregam n�o s� seus filhos como tamb�m seus pais � guarda do Estado. Por isto a vida moderna n�o tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley.

�������� Mas isso n�o quer dizer que, no dom�nio da estrutura social, ao contr�rio do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas �ltimas quatro d�cadas, a elite bem-pensante inventou meios t�o eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesej�veis, que separ�-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecess�ria. A presen�a de um crente nas altas c�tedras universit�rias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se t�o inconceb�vel, que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente � disposi��o dos bons cidad�os. A secret�ria de Estado Madeleine Albright foi at� expl�cita: qualquer americano que contribu�sse regularmente para uma igreja e se preparasse ativamente para o Ju�zo Final se tornariam um virtual candidato a ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de �selvagens� n�o est�o nos confins da Terra como no romance. Elas est�o entre n�s.

�������� Nas suas �ltimas d�cadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores �selvagem�. Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e m�sticas, adquirindo uma antevis�o daquilo que Fritjof Shuonn viria a chamar �unidade transcendente das religi�es�, t�o diferente do ecumenismo burocr�tico de hoje quanto� as vis�es de Sta. Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreens�vel, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucin�genas a rota de fuga para fora da percep��o padronizada. Mas a experi�ncia fracassada n�o foi est�ril. Se n�o abriu para quem quer que fosse �as portas da percep��o�, despertou Aldous Huxley para a tem�vel realidade da manipula��o qu�mica do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos falazes e ilus�rios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu �ltimo romance, A Ilha, esp�cie de contrapartida dial�tica do Admir�vel Mundo Novo.

�������� Da observa��o microsc�pica do mecanismo da percep��o at� a intui��o global dos rumos da hist�ria humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em conseq��ncia, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contempor�neos, cedendo � suprema tenta��o, n�o fizeram sen�o dispersar numa poeira de estilha�os.

�������� Nenhum de seus livros d� conta integral da riqueza de sua experi�ncia do mundo. Mas em nenhum deles est� ausente a tens�o entre o apelo unificante do alto e as brutais for�as centr�fugas que tentam dissolver a unidade da consci�ncia para mais facilmente amold�-la � mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do esp�rito em seus reflexos no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no s�culo XX, souberam colocar a ocupa��o liter�ria a servi�o de finalidade t�o alta e t�o nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley, malgrado seu m�ltiplos defeitos, sobreviver�. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para �a �nica coisa necess�ria�.

26/03/01

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2. A Ilha

 

�������� Os cr�ticos acusaram freq�entemente os personagens de Huxley de n�o ser propriamente seres humanos, mas apenas s�mbolos de id�ias.

�������� Contra essa censura posso levantar de imediato tr�s obje��es:

�������� 1) Mesmo que ela fosse certa, n�o bastaria para arrasar de vez a reputa��o de Huxley como ficcionista, de vez que cr�tica semelhante j� se fez a Swift e Voltaire.

�������� 2) Ela n�o � propriamente uma censura, mas a defini��o mesma do g�nero �s�tira�, no qual se incluem, de algum modo (j� veremos qual), as principais obras de Huxley. N�o � poss�vel satirizar os seres humanos naquilo que t�m de pessoal e aut�ntico, mas s� no que t�m de exterior, de t�pico, de copiado e de mec�nico.

�������� 3) Mas as hist�rias de Huxley escapam mesmo �s limita��es intr�nsecas do g�nero sat�rico. � verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O Admir�vel Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o embaixador Bahu, em A Ilha, n�o s�o realmente pessoas de carne e osso: s�o encarna��es das utopias, sonhos e ilus�es da intelectualidade ocidental. Mas se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos interessam e nos comovem como os de gente de verdade, � pelo fato de que, no s�culo XX, o poder enormemente ampliado da m�dia cultural fez com que as id�ias passassem a ter uma influ�ncia formadora mais direta e decisiva sobre os cora��es humanos. S�mbolos, frases-feitas, emo��es e trejeitos mentais criados pelos intelectuais fincaram ra�zes t�o profundas no subconsciente das pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscern�veis das rea��es pessoais aut�nticas. � olhar e ver: muitas personalidades em torno de n�s s�o realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos s� s�o c�micos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa rea��o perante eles � amb�gua: n�o conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torn�-los definitivamente c�micos. Pois todos n�s, uns mais, outros menos, macaqueamos as modas culturais, e este � um destino inescap�vel do homem moderno: nem possu�mos mais aquele fundo comum de valores e s�mbolos que permitia ao campon�s da Idade M�dia ser ele mesmo justamente porque era igual a todos, nem nos tornamos t�o prodigiosamente individualizados que possamos inventar nossa pr�pria linguagem. A �nica autenticidade poss�vel ao homem moderno � um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou menos copiados.

�������� � nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emo��o aut�ntica, entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus personagens. Da� sua maior originalidade como ficcionista � sua capacidade de fazer o leitor vivenciar o jogo das id�ias estereotipadas como se fosse um drama humano de verdade. Por isso suas obras n�o podem rotular-se categoricamente como s�tiras, j� que participam, a um tempo, da s�tira e do drama: s�tira das id�ias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas id�ias geraram ao transformar-se em a��es. � precisamente essa vis�o intermedi�ria entre a s�tira e o drama que o habilita a sondar com olhar prof�tico o futuro que se gera no ventre das id�ias. Cada um de seus romances � como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de madrugada e, de espada em punho, o amea�ava: �Eu sou a a��o dos teus pensamentos.�

�������� Muito do que Aldous Huxley escreveu � a dramatiza��o sat�rica das id�ias que se tornaram vida pessoal e trag�dia pessoal entre os intelectuais midi�ticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do privil�gio maior da mediocridade -- falar a linguagem m�dia -- e que por isto d�o o tom dos debates p�blicos, encarnando a personalidade das �pocas. Essas criaturas s�o as testemunhas principais que o historiador das id�ias interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do s�culo XVIII n�o ir� sondar as profundezas abissais da ci�ncia de Leibniz, mas deslizar sobre as superf�cies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes esp�ritos n�o pertencem propriamente � sua �poca: uma parte do seu ser est� mergulhada num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcan��vel, e s� uma parcela ou recorte deles � vis�vel a seus contempor�neos. Mas a mente do intelectual m�dio � o ponto de intersec��o dos horizontes de consci�ncia da sua �poca: o que aparece na sua tela interior � aquilo que todos v�em ao mesmo tempo, a coincid�ncia de todos os recortes, a interconfirma��o de todas as percep��es e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso � t�o bem recebido por seus contempor�neos, e por isto � t�o f�cil, das suas palavras, deduzir o que �o p�blico� pensava.

�������� O intelectual m�dio � ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas culturais. Mesmo quando as critica, n�o vai al�m delas, limitando-se a opor uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, op�em ao socialismo a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a m�nima id�ia do parentesco que os une.

�������� Huxley era um ouvido especialmente atento �s conversa��es dos intelectuais m�dios, das quais ele n�o apenas captava com facilidade o �esp�rito da �poca�, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclus�es sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas id�ias, em vez de esgotar-se como puras futilidades de sal�o, fossem levadas � pr�tica como modelos do mundo futuro. O Admir�vel Mundo Novo � o mundo que teria resultado � e que de certo modo resultou � da aplica��o das modas intelectuais da d�cada de 30. A Ilha � o mundo criado pelas utopias psicoterap�uticas e orientalistas dos anos 50-60.

�������� Aldous Huxley morreu antes de que essas id�ias tomassem corpo na cultura da �New Age� e, partindo das esperan�as ut�picas de um novo mundo de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na trag�dia mundial das drogas, das seitas escravizadoras, das experi�ncias ps�quicas autodestrutivas. N�o obstante, ele captou antecipadamente a loucura por tr�s de tudo isso, e � precisamente essa antevis�o que d� o tema deste romance.

�������� Publicado em 1963, este livro foi lido como uma esp�cie de ant�tese do Admir�vel Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha sido extirpada em benef�cio da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era como que a materializa��o dos sonhos de liberdade da gera��o flower power: amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito �s diferen�as individuais, incentivo � express�o das emo��es, tudo num ambiente ecol�gico de rever�ncia pela natureza.

�������� Sublinhava essa interpreta��o o fato de que a utopia fosse, no cap�tulo final, brutalmente destru�da pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo, encarna��o de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo, militarismo, religi�o tradicional, lei e ordem.

�������� Compreendido assim, A Ilha n�o era sen�o a tradu��o ficcional de lugares-comuns da ret�rica esquerdista da �poca, mista de �New Age� e �New Left�. Da� o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a gera��o mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia, em vez de ter um efeito deprimente, parecia exalt�-la at� �s nuvens: Pala f�ra destru�da por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado pelo mais p�fio ex�rcito sul-americano, transcendia no mesmo ato os julgamentos humanos e subia aos c�us como um Ersatz comunista de Jesus Cristo.

�������� �xitos de livraria baseados em equ�vocos de interpreta��o n�o s�o raros na hist�ria da literatura. Na verdade, A Ilha � o mais tem�vel inqu�rito sobre o auto-engano da gera��o que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo ut�pico da �poca, seria imposs�vel que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo � dist�ncia de quatro d�cadas ainda parece dif�cil de suportar, t�o contaminados das ilus�es e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Da� que, deslizando sobre a superf�cie da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da �ltima li��o de um s�bio.

�������� Em primeiro lugar, a destrui��o de Pala n�o vem do exterior. � o pr�prio pr�ncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajud�-lo no golpe militar destinado a romper o equil�brio do para�so agr�cola e colocar o pa�s, pela for�a, na modernidade industrial. Os ideais da �gera��o Woodstock�, com efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agr�cola como ve�culos de express�o de seu �dio � sociedade industrial, mas essa revolta era, ela pr�pria, um fen�meno da intelectualidade urbana e universit�ria, e supunha uma dose de liberdade de express�o e meios de comunica��o que seriam inconceb�veis em qualquer sociedade agr�cola. Quando Murugan acusa os governantes de Pala de �conservadores e reacion�rios�, ele p�e o dedo na ferida: os ideais que produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala. A utopia n�o � destru�da do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua autocontradi��o cong�nita.

�������� Em segundo lugar, os golpistas, t�o parecidos com os militares do Terceiro Mundo nos seus m�todos de moderniza��o autorit�ria, nada t�m de conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho Raj�, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime da ilha, acaba se voltando contra as tradi��es locais por influ�ncia de sua m�e, a rani F�tima, a qual durante sua forma��o cultural na Europa recebera a influ�ncia dos ensinamentos teos�ficos de Helena Blavatsky, tornando-se devota dos �Mestres do Astral�, especialmente um tal Koot-Hoomi -- figura inconfundivelmente diab�lica segundo todos os c�nones da religi�o tradicional -- , em cima de cujas concep��es se forma a alian�a entre a fam�lia real de Pala e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi s�o elementos inconfund�veis da pr�pria ideologia �New Age�. Embora j� um tanto velhos na �poca, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop com que o movimento dos jovens atacava e corro�a as bases crist�s da sociedade Ocidental.

�������� Os militares de Rendang-Lobo tamb�m n�o s�o, de maneira alguma, �a direita�. Est�o ansiosos para fazer neg�cios com a Standard Oil s� para poder comprar armas do bloco sovi�tico e dar prosseguimento ao seu sonho macabro de �revolu��o permanente�. Seu chefe, o Cel. Dipa, � uma esp�cie de Chavez avant la lettre. Seu modernismo revolucion�rio representa a outra face da ideologia �jovem� dos anos 60: o lado brutal e sanguin�rio personificado pelos Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala n�o � destru�da por seus inimigos, mas pela contradi��o interna da mais mentirosa ideologia de todos os tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia encarnar o esp�rito de �paz e amor� ao mesmo tempo que espalhava no mundo �um, dois, tr�s, muitos Vietn�s�.

�������� Ainda mais significativo � que a origem das concep��es ut�picas do regime de Pala remontasse � fus�o de vagos remanescentes do budismo t�ntrico com as id�ias de evolucionismo biol�gico trazidas, no s�culo passado, por um m�dico escoc�s, meio s�bio, meio charlat�o, que adquirira prest�gio na ilha curando uma misteriosa doen�a de seu governante por meio do �magnetismo animal�. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e magnetismo comp�e a f�rmula inconfund�vel do teosofismo de Madame Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo an�rquico de Pala e do modernismo autorit�rio de seu pr�ncipe golpista �, rigorosamente, a mesma.

�������� Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo ingl�s para corroer as tradi��es religiosas aut�nticas das na��es orientais e torn�-las mais vulner�veis � domina��o cultural estrangeira por meio de um entorpecente pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1]

�������� Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral n�o � menos fedorento que o teosofismo expl�cito de Rendang-Lobo. J� no segundo cap�tulo do livro, o n�ufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, � curado de seus males pelo m�todo freudiano da ab-rea��o no curso de uma psicoterapia improvisada... por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota, neta do atual guru m�dico da ilha, resume na sua pessoinha os princ�pios de educa��o e �tica ali vigentes: s�o os princ�pios do sincerismo, do �botar para fora�, que os �grupos de encontro� e as t�cnicas psicoter�picas de �sensibiliza��o� e �libera��o� disseminaram no mundo a partir de Esalen, Calif�rnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O festival de experimentos ps�quicos e �libera��es� desembocou no imp�rio mundial dos traficantes de drogas e na transforma��o da delinq��ncia juvenil (e infantil) numa cat�strofe global de propor��es incontrol�veis. Na �poca, por�m, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as crian�as de Pala s�o versadas em �auto-express�o�, aquela confiss�o simpl�ria e c�nica dos pr�prios maus sentimentos que, teoricamente, os tornaria inofensivos. O fato � que a �auto-express�o�, ensinada em grupos-de-encontro por psiquiatras e psicoterapeutas �libertadores� nos conventos cat�licos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos amorosos com seus terapeutas, levando praticamente � destrui��o de v�rias ordens religiosas. De bra�os dados com o pseudo-orientalismo, a �liberta��o� psicoter�pica abriu caminho para que milh�es de jovens abandonassem o cristianismo e se entregassem �s mais tir�nicas manipula��es ps�quicas nas m�os de seitas delinq�enciais como �Love Family�, que, em nome da express�o espont�nea das emo��es, obrigava crian�as de quatro anos de idade a submeter-se, junto com seus pais, � pr�tica de sexo grupal. A imensid�o dos danos psicol�gicos trazidos a essa gera��o jamais poder� ser medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas s�o demasiado profundas para vir � tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas, nos milhares de cl�nicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas, sobretudo ao longo da Costa Oeste americana -- o lugar onde nasceria, segundo a promessa da �poca, a nova civiliza��o de sanidade, paz e amor. [2]

�������� Os efeitos terrificantes, por�m, n�o nasceram do mero acaso. Fruto e raiz t�m sua continuidade l�gica. Os �grupos-de-encontro� nasceram da pesquisa militar sobre guerra psicol�gica e controle comportamental. Um de seus pioneiros, Kurt Lewin, j� na d�cada de 40 havia chegado � conclus�o de que a press�o sutil e disfar�ada do grupo era o meio mais efetivo de produzir mudan�as de comportamento. A li��o foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos �grupos-de-encontro� da d�cada de 60. A �libera��o�, em suma, n�o passava de �engenharia do consentimento�. Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle comportamental infinitamente mais eficiente e irresist�vel do que todas as t�cnicas descritas no Admir�vel Mundo Novo. Como admitiu um dos praticantes do m�todo, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicol�gica), �n�o importa quanto o orientador desses grupos tente ser n�o-diretivo, ele ser� ainda sutilmente ditatorial e at� mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o mais r�gido adestrador, porque todo o controle est� escondido�. [3] Por uma coincid�ncia que neste contexto adquire as dimens�es de um s�mbolo, Blake dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil � a empresa com a qual o pr�ncipe herdeiro Murugan est� louco para fazer neg�cios.

�������� Ap�s presenciar uma sess�o de �educa��o para o amor� das crian�as de Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufr�gio, protesta: �Isto � puro Pavlov!�. O instrutor, com aquele ar beat�fico de tantos lavadores de c�rebros da d�cada de 60, responde: �Pavlov usado exclusivamente com bom prop�sito. Pavlov para a amizade, para a confian�a, para a compaix�o.�

�������� Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos m�todos de dirigismo sutil, a ideologia palanesa � irm� g�mea do autoritarismo de Rendang-Lobo. A Ilha n�o � a trag�dia de um para�so de liberdade destru�do pela invas�o de militares malvados: � a trag�dia da autodestrui��o de uma utopia intrinsecamente m� e mentirosa envolta em belas palavras.

�������� No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido aos encantos da �religi�o sem dogmas� dos palaneses, resolve experimentar a moksha, a erva alucin�gena ritual que, em vez de precipitar somente o consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admir�vel Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos primeiros instantes, Will �v� a luz�, ou pelo menos pensa que v�. Mergulha num estado de beatitude indescrit�vel e sup�e ter conhecido o pr�prio Deus. De repente, a vis�o se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes horrendos aparecem misturados � figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A vis�o de Will mostra a verdadeira natureza da religi�o palanesa: uma religi�o de �experi�ncias ps�quicas�, incapaz de transcender a dualidade c�smica e elevar-se ao reino da eternidade. � a religi�o dos �grupos-de-encontro�, o substitutivo posti�o que uma estrat�gia pol�tica oportunista quis substituir ao cristianismo. T�o logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do ex�rcito invasor: � a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo que a falsa vis�o espiritual.

�������� Poucos livros foram t�o fundo na compreens�o do auto-engano cong�nito da cultura contempor�nea. Perto da pedagogia palanesa da ilus�o, as t�cnicas de controle social do Admir�vel Mundo Novo parecem ing�nuas e rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o totalitarismo expl�cito da d�cada de 30 parece coisa de orangotangos. O diagn�stico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 n�o p�de ser compreendido por seus contempor�neos. Eles estavam embriagados na mentira nascente, e a antevis�o de Huxley passou l�guas acima de suas cabe�as. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos �jovens idealistas� dos anos 60. As t�cnicas de controle social e engenharia do consentimento j� n�o s�o experi�ncias limitadas, efetuadas na privacidade de grupos-de-encontro: s�o o dia a dia das escolas p�blicas, onde nossos filhos se encontram � merc� daquilo que Pascal Bernardin chamou �minist�rio da reforma psicol�gica�. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada crian�a, submetida � press�o sutil do grupo, a� adota alegremente as condutas desejadas, sem ter a m�nima id�ia de poss�veis alternativas. Nos EUA, os resultados da ado��o maci�a dessas t�cnicas no ensino j� s�o patentes: os �ndices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas escolas p�blicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa, enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a viol�ncia das crian�as, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo superior �s suas for�as. No Brasil, esse processo ainda est� no come�o, mas basta ler os �Par�metros Curriculares Nacionais� do Minist�rio da Educa��o para perceber que a engenharia de comportamento a� predomina amplamente sobre a forma��o intelectual e a instru��o moral honesta. O esp�rito dos �grupos de encontro� dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal, firmemente decidido a �libertar� as crian�as do legado da civiliza��o crist�. Quando a �liberta��o� mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua identidade com Rendang-Lobo, haver� choro e ranger de dentes. Mas, como aconteceu com a gera��o de 60, nenhum dos autores da trag�dia reconhecer� suas culpas: cada um deles se proclamar� um idealista tra�do pelos rumos imprevis�veis da Hist�ria e, revigorado pelo sentimento de inoc�ncia, tirar� da cartola um novo projeto de �mundo melhor�.

�������� Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa que se oculta por tr�s da inoc�ncia dos idealistas.

22/4/01

 


[1] V. Peter Washington, O Babu�no de Madame Blavatski, trad. Ant�nio Machado, Rio, Record, 2000, assim como Ren� Gu�non, Le Th�osophisme. Histoire d�une Pseudo-R�ligion, Paris, �ditions Traditionnelles, 1929 (reed. 1978).

[2] Um document�rio impressionante da devasta��o ps�quica resultante dos experimentos ps�quicos da d�cada de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim Siegelman, Snapping. America�s Epidemic of Sudden Personality Changes. New York, Lippincott, 1980.

[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control, South Bend, St. Augustine�s Press, 1999.

[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel P�dagogue ou le Minist�re de la R�forme Psychologique, Paris, �ditions Notre-Dame des Gr�ces, 1995.