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Ren� Girard e a coletividade homicida

Olavo de Carvalho
Transcri��o de interven��o na mesa-redonda
em torno do pensamento de Ren� Girard,
realizada no anfiteatro da UniverCidade (Rio de Janeiro), 17 nov. 2000.

 

��������� Depois do que o Prof. Girard nos ensinou, n�o temos mais o direito de ser ing�nuos sobre nossas cren�as, sobre a �tica, o bem e o mal etc. O Brasil h� mais de dez anos est� envolvido numa esp�cie de discurso �tico purgativo, segundo o qual acredita-se que com a puni��o dos corruptos tudo ficar� bem. E isso est� t�o evidentemente relacionado com o rito sacrificial do bode expiat�rio que eu gostaria de sugerir que aproveit�ssemos a presen�a do Prof. Girard entre n�s como uma oportunidade para meditarmos a onda moralizante brasileira � luz dos seus ensinamentos: n�o estar�amos procurando apenas mais um pretexto edificante para a viol�ncia e a persegui��o?

��������� Mas eu desejaria tamb�m colocar um outro problema, de ordem te�rica, que me atormenta desde que li alguns dos livros do Prof. Girard. � o seguinte: evidentemente, existe nas religi�es essa constante que ele assinalou desde o in�cio das suas investiga��es, que � o elemento sacrificial, por�m h� tamb�m outras constantes. Uma delas � a presen�a da linguagem simb�lica. N�o houve nenhuma religi�o que viesse ao mundo inicialmente sob a forma de uma doutrina logicamente exposta, de um sistema l�gico-doutrinal. Ao contr�rio, pode-se desenvolver um sistema l�gico-doutrinal ao longo do tempo, mas a forma inicial de representa��o da religi�o � sempre uma narrativa ou um poema simb�lico, seja composto de elementos fict�cios ou de acontecimentos reais -- como a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo -- fortemente carregados de simbolismo. O que caracteriza esse elemento simb�lico � o fato de ele poder ser compreendido em diferentes n�veis, que guardam entre si uma liga��o anal�gica. Quando tomamos o conjunto das narrativas e s�mbolos de uma religi�o, podemos ver ali ou o esquema da ordem da sociedade ou o esquema da ordem da alma, do mundo interior do indiv�duo humano. Nesta �ltima hip�tese, temos a perspectiva que se aproximaria mais da m�stica ou do �esoterismo�, e na primeira, temos uma perspectiva legal�stica, �exot�rica�, da autoridade religiosa, das regras morais e da constru��o do Estado. Ora, conforme encaramos esse conjunto sob um aspecto ou sob o outro, obtemos, �s vezes, sentidos inversos. Por exemplo, num aspecto m�stico, de busca de uma perfei��o espiritual pelo indiv�duo, aquilo que corresponde � ascese ou � alquimia interior, seria exatamente aquilo que no plano social, no plano coletivo, corresponderia justamente � matan�a, ao genoc�dio. Isto � muito n�tido no Baghavad-Git�, ou na narrativa b�blica das guerras judaicas: o que, na ordem dos fatos exteriores, � viol�ncia e mortic�nio, na ordem interior � ascese, autodom�nio espiritual, vit�ria sobre as paix�es violentas. Na religi�o isl�mica, h� uma s�rie de pr�ticas interiores das ordens m�sticas, que t�m pouco a ver com as obriga��es legais e rituais da religi�o coletiva, mas se destinam a utilizar a subst�ncia das paix�es mais inferiores, mais violentas, como mat�ria-prima que, queimada no forno, no altar da pr�tica m�stica, se converter� em virtude, em conhecimento espiritual, naquele sentido em que � poss�vel dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes s�o feitas da mesma mat�ria dos v�cios: partindo dos v�cios, tomando-os como mat�ria-prima e queimando-os no forno da medita��o e da concentra��o, o pecado se substitui pela gra�a. Quando abandonamos esse n�vel interior e rebatemos isso para o plano da sociedade, a� entramos em plena matan�a dos inocentes, em plena persegui��o do bode expiat�rio.

��������� Para colocar esse problema de maneira mais clara, eu vou sugerir a leitura comparativa de dois livros: um � do pr�prio Prof. Girard, que � O Teatro da Inveja, o qual interpreta toda a obra de Shakespeare � luz da teoria do desejo mim�tico, da inveja e do bode expiat�rio; o outro livro, que interpreta a obra de Shakespeare no sentido interior e m�stico, � o de Martins Lings, que se chama The Secret of Shakespeare. S�o as duas melhores obras que j� se escreveram sobre Shakespeare. As interpreta��es que elas nos apresentam s�o radicalmente diferentes e se colocam em planos distintos, mas pessoalmente n�o vejo antagonismo entre elas. Vejo uma complementaridade justamente quando, passando do n�vel interior para o n�vel exterior, coletivo ou pol�tico, sa�mos do esp�rito que vivifica para a letra que mata, isto �, passamos da abordagem m�stico-asc�tica (Lings) para a abordagem ritual�stico-sacrificial (Girard). � justamente o aspecto da letra exterior que corresponde ao territ�rio abrangido por este espl�ndido estudo do Prof. Girard, A persegui��o. O que eu gostaria de saber � como � que ele articula esses dois planos, se � que essa compara��o j� lhe ocorreu. O tema, em si, � de import�ncia extraordin�ria e nos lan�a no n�cleo mais vivo, mais explosivo do problema da interpreta��o das cria��es culturais: como � que aquilo que de um lado significa a matan�a dos inocentes pode, por outro lado, significar o sacrif�cio do eu, do ego�smo e das paix�es violentas? O pr�prio Prof. Girard insinua uma solu��o ao dizer que o coletivo � assassino por natureza, afirma��o que devemos articular com a li��o de Sto. Agostinho, de que a verdade que salva habita no interior do homem. Essa articula��o abre perspectivas para a compreens�o do car�ter intrinsecamente anti-espiritual e homicida de todo coletivismo, eternamente em guerra contra o reino interior, o reino de Cristo. Pois o reino de Cristo �, essencial e inseparavelmente, o resgate da v�tima sacrificial e a afirma��o do primado da interioridade.