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Qual o conceito de gnose do sr. Fedeli?

Olavo de Carvalho

 

N�o tendo um corpo de militantes a meu servi�o, nem mais que uns minutos por semana para consagrar ao sr. Fedeli entre viagens e mil e um trabalhos, n�o posso evidentemente acompanhar e responder pari passu �s acusa��es que me fazem ele e seu fiel escudeiro Felipe Coelho. Nem creio que isso seja importante, pois o tempo, por si, se encarregar� de esclarecer as coisas. A �nsia, a pressa, a velocidade alucinada com que esses indiv�duos disparam incessantemente p�ginas e p�ginas de p�ginas de acusa��es contra mim j� mostra que n�o pensam em outra coisa, que destruir a reputa��o de Olavo de Carvalho se tornou para elas uma quest�o de vida ou morte.

N�o me sentindo nem um pouco amea�ado, posso examinar o caso aos poucos, de maneira mais ou menos casual e assistem�tica, por mera curiosidade e sem nenhum intuito de �me defender�, j� que a fantasia tribunal�cia � do sr. Fedeli e n�o minha.

Um ponto que me parece especialmente importante � o conceito geral de gnose que entra nesta discuss�o.

Quando se trata de aplicar um conceito geral a um caso particular, a �nica prova admiss�vel reside na coincid�ncia exata ou pelo menos adequada das propriedades deduzidas do primeiro com aquelas observadas no segundo. Logo, para saber se sou um gn�stico ou n�o, seria preciso, primeiro, saber qual o conceito geral de gnose usado pelo sr. Fedeli.

Felizmente, para descobrir isso n�o � preciso desencavar um conceito de gnose impl�cito nas an�lises que ele fez do meu pensamento. Meses antes da eclos�o da nossa controv�rsia ele j� havia exposto esse conceito num trabalho publicado em sua homepage. Isso nos d� a garantia de colocar a presente an�lise no terreno firme de uma f�rmula inicial jamais impugnada ou corrigida pelo autor no que quer que fosse, excluindo tamb�m, ao menos por enquanto, a hip�tese de que ele tenha depois concebido uma defini��o ad hoc para me fazer caber dentro dela.

Para conceituar a gnose, poder�amos dizer que ela pretende ser "o conhecimento do incognosc�vel".

Evidentemente, essa conceitua��o revela uma contradi��o que � t�pica da gnose. Conhecer o incognosc�vel � uma contradi��o conceitual e l�gica. Mas ocorre que a gnose repele a intelig�ncia e a l�gica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e n�o discursivo e l�gico.

Conhecer o incognosc�vel, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal, coisas imposs�veis de compreender. De fato n�o podemos compreender ou conhecer a pr�pria ess�ncia de Deus que � ser infinito e transcendente, imposs�vel de ser captado por nosso intelecto. Tamb�m n�o podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser n�o existe, e o mal moral n�o tem raz�o que o justifique.

Assim, a gnose pretende oferecer ao homem um conhecimento natural que o colocaria em posi��o de compreender - e portanto superar - a Deus, de compreender a mal, e, ademais, de conhecer sua natureza mais �ntima, que seria divina.

A gnose � ent�o a religi�o que oferece ao homem o conhecimento do bem e do mal.

Ora, sabe-se que a �rvore do fruto proibido do �den era exatamente a �rvore do conhecimento ou ci�ncia do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tenta��o de Ad�o. Com efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, "seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal" (Gen., III,5). A tenta��o de Ad�o e Eva foi a de se tornarem deuses. Essa � a grande tenta��o do homem, que, levado pelo orgulho, como L�cifer, n�o admite sua finitude, n�o aceita sua conting�ncia.

Essa tenta��o �, de fato, uma revolta anti-metaf�sica. Ora, � esse um outro modo de conceituar a gnose: uma revolta anti-metaf�sica.

Se admitirmos essa interpreta��o da tenta��o ad�mica, teremos que concluir exist�ncia uma continuidade da gnose na Hist�ria. E � o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se realmente como uma religi�o ora oculta, ora p�blica, mantendo por�m unidade e continuidade no transcorrer da Hist�ria.

...

Essa unidade hist�rica da gnose atrav�s dos tempos e civiliza��es � constatada por muitos autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:

"Mais perto de n�s que Plat�o e os dr�idas, uma esp�cie de unidade m�stica do mundo indo-europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade M�dia. Se n�s abra�amos o dom�nio geogr�fico e hist�rico que vai da �ndia � Bretanha, constatamos que uma religi�o a� se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterr�neo, desde o s�culo III de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido elaborados inicialmente na P�rsia, depois nos segredos gn�sticos e �rficos e � a f� maniqu�ia".

Por sua vez, H. I. Marrou atesta:

"(...) da fato, a gnose e seu dualismo pessimista exprimem umas das tend�ncias mais profundas do esp�rito humano, uma das duas ou tr�s op��es fundamentais entre as quais o homem deve finalmente escolher. Claude Tresmontant mostrou bem a perman�ncia da tenta��o gn�stica, sem cessar reaparecida, sob formas diversas no pensamento ocidental no curso de sua hist�ria nos Bogomilas e C�taros da Idade M�dia, em Spinoza, Leibnitz, Fichte, Schelling, Hegel. Poder-se-ia continuar esta hist�ria al�m do romantismo alem�o e at� nossos dias: o destino de Simone Weil � particularmente muito significativo; foi bem o seu neo-gnosticismo que a deteve finalmente na soleira da Igreja e sua heran�a se reencontrava na obra hist�rica de sua amiga e disc�pula Simone de P�trement". (1)

Um conceito � obtido a partir da s�ntese abstrativa de tra�os notados num certo grupo de fen�menos tomados como exemplares de uma esp�cie. Se o conjunto dessas notas conseguiu apreender adequadamente a ess�ncia da esp�cie, o conceito poder� ser generalizado para outros fen�menos da mesma esp�cie. A prova de que a generaliza��o � adequada -- insisto -- reside na coincid�ncia entre as propriedades deduzidas do conceito e aquelas observadas nos novos fen�menos que se pretende abranger nele.

Se o conceito fedeliano de gnose pretende abarcar a continuidade essencial de um fen�meno hist�rico em todas as suas manifesta��es, estas devem portanto ter algo em comum que permita pens�-las como unidade. Se a pr�pria formula��o l�gica do conceito exclui alguma das mesmas manifesta��es inicialmente tomadas como exemplares, � porque ele n�o apreendeu corretamente a ess�ncia considerada, mas apenas alguns de seus aspectos acidentais. Uma defini��o feita a partir da coleta de aspectos acidentais n�o apenas � incapaz de dar conta dos fen�menos que abrange, por�m, mais ainda, n�o poder� sem grave erro ser generalizada para abarcar novos fen�menos, pois estes se arriscam a n�o ter com os primeiros outro nexo sen�o acidental.

Um conceito elaborado nessas condi��es � garantia segura de confus�o e erro.

Tal �, precisamente, o caso do conceito criado pelo sr. Fedeli. J� no seu enunciado inicial, �conhecimento do incognosc�vel�, ele exclui do fen�meno gn�stico pelo menos duas de suas manifesta��es modernas mais inquestionadas pelos estudiosos, isto �, o positivismo e o neopositivismo. Possuindo todas as seis caracter�sticas da gnose moderna tal como descrita por Voegelin, estas duas escolas t�m como seu princ�pio fundamental, justamente, a abdica��o sistem�tica de todo conhecimento que esteja para l� da experi�ncia sensorial e portanto, a fortiori, o �conhecimento do incognosc�vel�.

Logo a seguir, ao afirmar que �a gnose repele a intelig�ncia e a l�gica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e n�o discursivo e l�gico� o sr. Fedeli exclui do fen�meno gn�stico todo o racionalismo cl�ssico, a come�ar por Spinoza e Leibniz, que, linhas adiante, citando Marrou, ele mesmo classifica como gn�sticos. Exclui ainda Hegel, tamb�m mencionado como gn�stico por Marrou. Para fazer uma id�ia de quanto Hegel estava longe de todo intuitivismo, basta dizer que ele qualificava de �inimigo da humanidade� quem quer que, fugindo � demonstra��o racional, apelasse � senten�a de um �juiz interior�.

Um conceito que n�o somente n�o pode ser generalizado para abranger outros fatos, mas que n�o abarca nem mesmo os pr�prios fatos dos quais partiu a sua formula��o n�o �, obviamente, um conceito, mas apenas a express�o vaga e autocontradit�ria de uma impress�o subjetiva.

O sr. Fedeli n�o tem, portanto, nenhum conceito de gnose. N�o digo que tenha um conceito ruim, ou tosco, ou prim�rio. N�o tem nenhum. Tem apenas uma imagem, um s�mbolo unificador � o da serpente no Para�so � em torno do qual pode agrupar, pelo m�todo m�gico da analogia, uma multid�o de fatos objetivamente inconexos, cuja acumula��o d� ao conjunto uma apar�ncia de verossimilhan�a fortemente persuasiva -- na verdade, tanto mais fortemente persuasiva quanto menos logicamente fundamentada.

Um s�mbolo n�o pode, como um conceito geral, ser aplicado a casos particulares pelo m�todo racional que confronta as propriedades observadas neste �ltimos com as propriedades deduzidas do conceito geral. Um s�mbolo pode ser apenas �associado�, por analogia, a outros s�mbolos, e organizado numa cadeia de s�mbolos. Mas uma analogia n�o � uma identidade; bem ao contr�rio, � um misto indissol�vel de semelhan�as e diferen�as, de modo que, de uma cadeia simb�lica, por mais extensa e rica que seja, nada se pode concluir quanto � realidade ou irrealidade dos nexos assinalados.

Tamb�m � evidente que qualquer julgamento classificat�rio que se fa�a de um caso particular tomando como base n�o um conceito, mas um s�mbolo, ser� logicamente �irrefut�vel� pelo simples fato de n�o ter um conte�do concetual identific�vel que permita, nele, separar o verdadeiro do falso. Tal � exatamente o que acontece com o ju�zo que o sr. Fedeli faz dos meus escritos.�

Comparado a qualquer esbo�o de apreens�o conceitual, mesmo canhestra, mesmo errada, essa forma de pensamento � primitiva, irracional e puramente m�gica. O desprezo que o sr. Fedeli mostra ao irracionalismo gn�stico � pura afeta��o, ocultando a confian�a cega que ele deposita na sua pr�pria fantasia subjetiva.

Confiar-se a esse m�todo no puro dom�nio investigativo, sem conseq��ncias pr�ticas para ningu�m, j� seria uma irresponsabilidade absolutamente intoler�vel. Us�-lo como crit�rio classificat�rio para um julgamento que pode ter efeitos lesivos sobre a reputa��o alheia � o c�mulo da leviandade. Mas o que mais se poderia esperar de um sujeito que, para disparar sobre outrem uma acusa��o de toxicomania, se baseia num livro que nem leu?

Espero que, diante dessa constata��o, o sr. Fedeli n�o se apegue ao subterf�gio de que essa sua defini��o de gnose foi apenas uma tentativa informal e provis�ria � pois isto implicaria reivindicar, para um texto publicado e referendado pelo autor, o privil�gio da interpreta��o figurada e liberal, que ele jamais concede �s minhas palavras nem mesmo quando proferidas oralmente, de improviso, e transcritas sem minha corre��o. Essa duplicidade de crit�rios trairia de imediato a mais completa desonestidade, agravada ainda pelo fato de que o referido texto, sendo o �nico que na sua homepage � consagrado ex professo � explicita��o de um conceito capital na sua obra escrita, assume nela portanto uma import�ncia igualmente capital.

� evidente que a confus�o do sr. Fedeli n�o tem de ser explicada necessariamente, em primeira inst�ncia, como fruto da mal�cia. O detalhe mais pitoresco � ou mais tr�gico � da sua fantasia � que, buscando definir a gnose pela sua contradi��o constitutiva, ele acaba por emitir, n�o a defini��o de uma contradi��o, mas uma defini��o autocontradit�ria. Qualquer principiante de l�gica percebe a diferen�a entre o enunciado de uma contradi��o e um enunciado que se contradiz a si mesmo. Mas a contradi��o que o sr. Fedeli vislumbrou no seu objeto acabou por se apossar do pr�prio instrumental l�gico com que ele tentava capt�-la, e no fim as n�voas da gnose encobriram o pr�prio olhar que buscava esclarec�-las. O sr. Fedeli � bem mais gn�stico do que jamais poderia imaginar.

Esse caso ilustra o triste destino do estudioso que, armado de um instrumental intelectual prec�rio, se aventura a atacar um assunto superior � suas for�as. A forma mentis do sr. Fedeli � inteiramente moldada e limitada pelos dois �nicos elementos que a comp�em: a extensa leitura dos textos doutrinais cat�licos e as t�cnicas de pesquisa historiogr�fica que aprendeu na USP. Faltam-lhe por completo a habilidade filos�fica para a penetra��o teor�tica dos conceitos e a agudeza sem�ntica para distinguir os sentidos das palavras conforme o contexto e o momento. Sua incompreens�o do que l� raia freq�entemente a estupidez, como se v� na freq��ncia com que ele incorre na confus�o entre figuras de linguagem e conceitos formais e na altera��o pura e simples do sentido das palavras (se bem que seu disc�pulo Felipe Coelho supere o mestre nesse ponto, ao interpretar �virtude salv�fica da devo��o intelectual� como �salva��o pelo conhecimento�).� A prova de que essa confus�o n�o � acidental, mas reflete uma sua incapacidade cr�nica, uma falha na sua forma��o intelectual e talvez at� um escotoma na sua percep��o geral do mundo, � que ele n�o a comete somente ao ler, mas tamb�m ao pensar, como se viu no presente caso, onde, imaginando elaborar um conceito, ele n�o produz sen�o s�mbolos e analogias.

A falta de sensibilidade para a diferen�a entre sentido reto e sentido obl�quo, portanto um literalismo mec�nico e raso, � v�cio redibit�rio em qualquer estudioso cuja ocupa��o consista, basicamente, em interpreta��o de textos. Talvez por isso esse historiador rat� tenha preferido dedicar-se, longe das sutilezas de um p�blico mais culto, � carreira de l�der de seita. A�, numa atmosfera onde o temor reverencial, o fanatismo religioso e o constante sobressalto das ovelhas que se sentem rodeadas de lobos inclinam � atrofia geral do senso das nuan�as da linguagem, o mestre est� livre para repassar ao p�blico as suas defici�ncias de compreens�o, a sua desordem interior e a sua doen�a espiritual.

24/07/2001

Notas

(1) Orlando Fedeli, �Gnose: a religi�o oculta da Hist�ria�, em http://www.montfort.org.br.