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Deus acredita em voc�?
Entrevista � R�dio Europa Livre (rep�rter Cristina Poienaru)
Bucareste, 21 de outubro de 1998

 

        � Voc� acredita em Deus?

        � Respondo como Henry Miller: o problema n�o � se eu acredito em Deus, mas se Deus acredita em mim.
        A realidade de Deus � para mim uma evid�ncia invenc�vel, na medida em que Deus se identifica com a infinitude metaf�sica que � o fundamento de toda realidade poss�vel. As pessoas hoje em dia t�m alguma dificuldade de compreender isso porque se deixaram enganar por falsas l�gicas (como a de Georg Cantor, por exemplo) e acabaram por perder todo sentido da infinitude metaf�sica.
        A resposta de Miller significa que nossa vida � uma hist�ria escrita tanto por Deus quanto por n�s mesmos, e que no enredo voc� corre o risco de escolher o papel de farsante, de mentiroso, de vigarista. � importante ter id�ias verdadeiras, mas isso n�o � tudo. � preciso tamb�m viver no verdadeiro, isto �, n�o fingir que voc� sabe o que n�o sabe, nem que n�o sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se voc� n�o � fiel a essas duas exig�ncias, sua vida � uma mentira e o conte�do pretensamente verdadeiro de seus pensamentos n�o � sen�o uma parte da farsa total - aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se tornar mais veross�mil. A� Deus n�o pode acreditar em voc�, porque, no fundo, voc� n�o existe.

        Voc� acha que � bom existir uma cren�a religiosa sem igreja?

       � Certamente. O alto clero mentiu muito para os fi�is no s�culo XX e eles t�m o direito de guardar uma certa dist�ncia da Igreja, certamente sem reneg�-la, mas num esp�rito de espera prudente at� que Deus se digne de lhes dar novas luzes. Para n�o dar sen�o um exemplo, um pouco antes do Conc�lio a Igreja de Roma assinou com as autoridades sovi�ticas o tristemente c�lebre Pacto de Metz, que a obrigava a abster-se de toda den�ncia contra os regimes comunistas durante as sess�es do Conc�lio. O pacto, que era secreto, foi ocultado da imprensa ocidental e n�o foi divulgado sen�o algum tempo depois, pelos jornais sovi�ticos. Se voc� leva em conta que at� essa �poca os regimes comunistas j� tinham matado quase uma centena de milh�es de pessoas, das quais pelo menos uns trinta milh�es de crist�os que n�o tinham cometido outro crime sen�o o de ser crist�os, voc� compreende a gravidade quase infinita desse acordo. Hoje em dia condena-se o Papa Pio XII por ter feito certo sil�ncio em torno da persegui��o aos judeus na Alemanha, mas quem queira desculp�-lo pode ao menos alegar, para raciocinar por absurdo, que n�o eram ovelhas do seu rebanho, que ele n�o tinha a obriga��o de dar o alarme se o lobo atacava apenas as ovelhas do seu vizinho. Mas o que se pode pensar do pastor que entrega ao lobo as ovelhas do seu pr�prio rebanho? Ante essa cumplicidade abomin�vel, as cr�ticas bem polidas e de ordem puramente te�rica que a Igreja continuou a fazer ao marxismo n�o passam de hipocrisia. E como voc� haveria de querer que, depois de coisas desse g�nero, milh�es de fi�is n�o perdessem a confian�a na Igreja e n�o escolhessem ser, ao menos a t�tulo provis�rio, crist�os sem Igreja? Foi o Vaticano que traiu a confian�a deles, � a ele que cabe arrepender-se e lhes pedir perd�o, em vez de fazer essas rid�culas genuflex�es rituais ante o mundo ateu, que se tornaram a moda oficial do dia.

        � O ecumenismo � poss�vel?

        � No tempo em que os pensadores crist�os, mu�ulmanos e judeus se compreendiam uns aos outros, n�o se falava de ecumenismo porque ele era uma realidade vivente que n�o precisava de nome. Sto. Tom�s e Sto. Alberto disputavam, decerto, com os judeus e mu�ulmanos, mas eles os compreendiam e respeitavam. Ap�s o s�culo XIV todos os la�os espirituais e intelectuais com o Islam e o juda�smo se romperam e hoje em dia voc� n�o encontra sen�o raros especialistas que sejam capazes, por exemplo, de lhe dizer os nomes de tr�s ou quatro pensadores mu�ulmanos modernos. O di�logo dos esp�ritos foi substitu�do pelos acordos de chancelarias, e hoje em dia o ecumenismo n�o � sen�o o disfarce de uma pol�tica globalizante que n�o tem nada de espiritual. No entanto o verdadeiro ecumenismo, que � dos esp�ritos, permanece sempre poss�vel, e basta recordar o di�logo de Franz Rosenzweig e Eugen Rosenstock, ou as obras de Louis Massignon, para ter exemplos concretos dessa possibilidade. Numa escala bem menor, fiz de minha pr�pria vida um exemplo desse g�nero de ecumenismo, escrevendo por exemplo meu ensaio O Profeta da Paz, que � uma exegese simb�lica da vida do Profeta Maom� � luz das tradi��es cat�lica e judia. Creio que do ponto de vista da pura interioridade h� sempre aproxima��es surpreendentes entre as diversas religi�es, mas que isso n�o tem nada a ver com os espet�culos rituais ecum�nicos transmitidos pela m�dia. Falou-se muito do "Estado espet�culo", mas h� tamb�m uma "religi�o espet�culo" que arrisca submergir toda espiritualidade sob uma chuva de falsas luzes.

       � Como voc� situa o conhecimento na Nova Ordem Mundial?

       � O conhecimento a� arrisca tornar-se uma coisa puramente material, como um arquivo de dados registrados por meios eletr�nicos e transmitidos de computador a computador sem passar por uma consci�ncia humana. Hoje em dia pode-se produzir teses acad�micas apenas sintetizando dados previamente hierarquizados por computadores, sem que haja necessidade do menor esfor�o pessoal de intelec��o. � a perfei��o da "consci�ncia coletiva" formada de uma multid�o de cientistas son�mbulos. A doutrina de Wittgenstein sobre um pensamento que se pensa a si mesmo sem necessidade de um sujeito humano torna-se assim uma profecia auto-realiz�vel. Creio que Wittgenstein foi um g�nio da inconsci�ncia, um her�i da covardia intelectual, o criador de uma doutrina que atinge os cumes de uma estupidez quase inimagin�vel. No mundo wittgensteiniano que nos aguarda, os livros n�o ser�o lidos sen�o por eles mesmos, demitindo os leitores humanos. O conhecimento se tornar� uma figura de linguagem para designar os dep�sitos de dados que n�o ser�o conhecidos por ningu�m, e a cultura se tornar� um museu eletr�nico jamais visitado. Certamente, haver� sempre alguns indiv�duos que far�o esfor�os para permanecer conscientes, e mesmo a elite dominante ter� certa necessidade dos servi�os deles. Mas n�o consigo nem imaginar os abismos de sofrimento que eles ter�o de suportar.

       � Voc� acredita que o s�culo XXI ser� crist�o?

       � N�o. Bem ao contr�rio, ele � j� em suas ra�zes o s�culo do Anticristo, o s�culo da opress�o travestida em liberdade, o s�culo em que as pessoas que matarem os santos acreditar�o estar servindo a Deus. J� vemos formar-se uma esp�cie de religi�o administrada, um falso ecumenismo que une os senhores do dia em torno de um credo todo feito de lugares-comuns, uma mistura de banalidades moralistas, de oportunismo pol�tico e de um desejo infinito de agradar a m�dia. � certo que Deus pode dispor de outro modo, mas tudo indica que estamos entrando numa era em que a impostura ser� a �nica forma de religi�o admitida, e na qual o homem que queira permanecer fiel ao Esp�rito n�o poder� busc�-lo sen�o no interior de sua alma solit�ria.

       � Qual � sua defini��o de cultura?

       � A cultura antigamente era a busca de objetivos superiores � simples sobreviv�ncia material. Esta defini��o aplicava-se igualmente bem � Gr�cia e �s pequenas culturas ind�genas do Brasil. Mas hoje em dia o que se chama cultura se torna a cria��o ilimitada de novos apetites materiais que se multiplicam sem fim e que impedem as pessoas de ter outras ambi��es. Voc� v�, todos os debates ditos culturais da atualidade se desenvolvem em torno de assuntos ligados � vida corporal e � busca de bens de ordem material. De um lado, s�o desejos econ�micos: os capitalistas proclamam que o �nico bem � a riqueza e os socialistas respondem que o �nico mal � a pobreza. De outro lado, s�o ambi��es de ordem sexual exaltadas at� ao del�rio: ap�s os direitos dos homossexuais, proclama-se o direito � pedofilia, e assim por diante. A multiplica��o das necessidades e das insatisfa��es materiais (at� mesmo causadas pela pr�pria abund�ncia) n�o tem limite, uma vez que se tenha tomado essa dire��o.
        O mais ir�nico de tudo � que a tradi��o da cultura "politicamente engajada", que foi outrora um instrumento de liberta��o, se tornou um meio de escraviza��o: ela tem por miss�o tornar os homens escravos de suas insatisfa��es menores, de modo a jamais permitir que olhem para o c�u e aspirem a uma vida mais elevada. � preciso que cada um s� pense naquilo que o incomoda no meio imediato, seja o desejo sexual insatisfeito, seja a fuma�a dos cigarros que o perturba, seja a falta de dinheiro ou o �dio invejoso que ele volta contra pessoas que ele imagina mais felizes. As pessoas que se ocupam desse g�nero de coisas permanecem para sempre crian�as doentes, n�o chegam jamais � idade madura que � ren�ncia, perd�o, toler�ncia, generosidade. A cultura tornou-se instrumento da pueriliza��o universal. N�o vejo meio de encontrar uma defini��o de cultura que se aplique por igual a isso e �quilo que outrora se chamava por esse nome. N�o se trata de esp�cies do mesmo g�nero, e portanto toda filosofia da cultura est� hoje condenada a n�o ser sen�o hist�ria das culturas antigas ou legitima��o ideol�gica desse novo fen�meno que n�o tem em comum com elas sen�o o nome.

       � A literatura sul-americana est� em vias de se tornar a mais importante do mundo?

       � Talvez, mas isso � pouca coisa, numa �poca em que toda literatura se reduz a um ludismo imaginativo feito para o consumo ou � manipula��o das massas pela nova administra��o da alma do mundo. O sucesso de Paulo Coelho e o Pr�mio Nobel dado a esse rid�culo Saramago ilustram com perfei��o essas duas fun��es da literatura. Meus interesses passam a l�guas de dist�ncia dessas futilidades, e estou pouco me lixando para a literatura, seja sul-americana, europ�ia ou marciana.

       � Quais s�o as fraquezas da democracia?

       � Georges Bernanos j� tinha dito: a democracia n�o � o contr�rio da ditadura; ela � a causa da ditadura. Basta ver como a no��o de direitos humanos � hoje utilizada para impor �s pessoas novas formas tir�nicas de controle do comportamento, para perceber que Bernanos tinha raz�o. A democracia, para subsistir, tem de se apoiar sempre em alguma coisa totalmente diversa, num sistema de valores extrapol�ticos ou suprapol�ticos, como por exemplo o cristianismo. Mas a pr�pria democracia tende a destruir esses valores e em seguida � deixada a si mesma e se transforma em tirania: tudo democratizar � tudo politizar, e quando n�o restam outros valores sen�o pol�ticos, ent�o � a ditadura, como a definia Carl Schmitt, a pura luta pelo poder, que n�o pode levar sen�o � vit�ria dos mais fortes. Hoje em dia, mesmo os debates ditos intelectuais se tornaram pura luta pol�tica, isto �, lobby, grupos de press�o, manipula��o de verbas, intimida��o dos inimigos, e assim por diante. � o resultado da democratiza��o, e � indiscutivelmente ditadura. Para salvar a democracia seria preciso saber limit�-la, isto �, restringir os crit�rios democr�ticos ao territ�rio estritamente pol�tico e limitar o territ�rio da pol�tica, instituindo para al�m da pol�tica uma zona onde os debates n�o sejam decididos por meios pol�ticos mas pela raz�o, pela sabedoria e pelo amor. Isto seria precisamente a fun��o da cultura, mas a cultura j� est� quase completamente politizada e vamos a largos passos para a ditadura universal, sob o aplauso geral das massas. Como dizia uma velha can��o americana, O when will they ever learn?

       � Qual a rela��o entre a literatura e o totalitarismo (dizem que o totalitarismo produz boa literatura)?

       � N�o creio que o verdadeiro artista, para criar belas obras, necessite nem da liberdade pol�tica nem da opress�o, nem de riqueza, nem de mis�ria. S�o estimulantes artificiais, exatamente como a coca�na. Tudo depende da livre vontade, a qual � ela mesma um tipo de cria��o art�stica preliminar � materializa��o das obras. As condi��es exteriores n�o t�m um papel fixo e constante e o artista pode se adaptar �s condi��es mais diversas. Veja: Thomas Mann e Jacob Wassermann n�o esperaram o nazismo para escrever seus mais belos romances, mas os produziram em plena democracia, ao passo que Dostoi�vski criou toda a sua obra sob a opress�o tzarista e Soljenitsin sob a ditadura comunista. As teorias que fazem a cria��o liter�ria depender como um efeito mais ou menos passivo das condi��es exteriores s�o obra de gente incapaz, de professores med�ocres que, por si mesmos, n�o criam nada e n�o compreendem a cria��o do que quer que seja. Infelizmente s�o essas pessoas que hoje em dia d�o o tom dos estudos liter�rios.

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