O debate na PUC
O debate promovido pelo Instituto M�rio Alves no dia 11 de agosto na PUC de S�o Paulo foi um sucesso em toda a linha, malgrado algumas notas destoantes. Transcorrido num ambiente de not�vel cordialidade, deu aos participantes a oportunidade de confrontar tr�s interpreta��es da obra de Gilberto Freyre, todas elas bem fundamentadas. O dr. Jacob Gorender, um dos mais c�lebres l�deres comunistas brasileiros, foi o primeiro a falar, apresentando um resumo das suas obje��es � interpreta��o gilbertiana do Brasil, publicadas pela primeira vez em O Escravismo Colonial (S�o Paulo, �tica, 1980). O Escravismo Colonial � uma das melhoras obras que algu�m j� escreveu sobre esse per�odo hist�rico. N�o hesito em consider�-la t�o importante, mutatis mutandis, quanto Casa Grande & Senzala. Gorender a� discute com todos os int�rpretes do Brasil-Col�nia, diverge de todos e ganha a parada. Prova que a economia colonial n�o pode ser definida nem como feudal, nem como patriarcal, nem como capitalista, nem muito menos como simples "economia exportadora", mas que foi um modo de produ��o original, o escravismo mercantil, baseado inteiramente na m�o-de-obra escrava. No hemisf�rio Ocidental, o Brasil foi assim o pa�s escravista por excel�ncia. No meu entender, essa tese est� ali provada e bem provada. Discordei apenas das obje��es que, dela, Gorender deduzia contra a descri��o freyreana da sociedade colonial. Gorender alegava que a "institui��o fundamental" desse per�odo fora o escravismo, e n�o a fam�lia patriarcal. Objetei que: 1� a busca da "institui��o fundamental" da qual se pudessem deduzir todas as outras � uma preocupa��o leg�tima dentro do marxismo, mas n�o tem sentido no m�todo freyreano, essencialmente pluralista e pragm�tico, alheio a redu��es causais. 2� Casa Grande & Senzala n�o � obra de hist�ria econ�mica e sim de "hist�ria das mentalidades". Mesmo se o pano-de-fundo econ�mico da sociedade colonial fosse diferente daquele que Freyre imaginava, isso n�o impugnava e! m na da a descri��o que ele fez da psicologia colonial, t�o bem documentada e provada quanto a argumenta��o econ�mica de Gorender. 3� Se entre duas teses bem provadas parecia haver uma contradi��o, essa contradi��o, por um lado, n�o impugnava nenhuma das duas, porque as descri��es eram feitas desde pontos de vista diferentes e n�o facilmente articul�veis. De outro lado, essa contradi��o nos colocava um problema hist�rico dos mais interessantes � como p�de se desenvolver a mentalidade patriarcal, descrita por Freyre, ao lado do escravismo mercantil diagnosticado por Gorender. Longe de fugir desse problema impugnando arbitrariamente uma das duas teses, dever�amos enfrent�-lo e tentar resolv�-lo, pois a� talvez residisse algo de muito importante para a compreens�o da hist�ria brasileira. Por exemplo, se é fato que o regime dominante foi o escravismo mercantil, tamb�m � fato que houve mais miscigena��o aqui do que nos outros pa�ses escravistas, e, se a miscigena��o n�o pode ser explicada, obviamente, pelo pr�prio escravismo mercantil, ent�o ela deve ter tido outras causas, que, atuando independentemente da base econ�mica e at� contra ela, produziram o ambiente psicol�gico descrito em Casa Grande & Senzala. Que causas? Essa quest�o era um instigante desafio para os cientistas sociais brasileiros. O deputado Aldo Rebelo falou por �ltimo, apresentando uma eloq�ente defesa da obra freyreana e atacando com veem�ncia as tentativas de trocar o modelo brasileiro de integra��o racial � que nessa obra encontra sua auto-express�o e se torna um valor autoconsciente � pelo modelo americano. Como concordo em g�nero, n�mero e grau com a posi��o do deputado, e como tenho argumentado em favor dela em artigos de jornais e revistas, n�o preciso resumi-la de novo aqui. Por uma feliz coincid�ncia, eu acabava de enviar a �poca mais um artigo sobre o assunto, que estava sendo impresso nas oficinas da Editora Globo enquanto convers�vamos na PUC e foi para as bancas na manh� do dia 12. Uma nota destoante foi dada pelo pr�prio deputado, quando, gratuitamente, afirmou que a Igreja cat�lica negava que negros e �ndios tivessem alma � uma inverdade, um absurdo e uma impossibilidade pura e simples, pois a Igreja tinha santos negros canonizados desde dez s�culos antes da descoberta do Brasil, e quanto aos �ndios seria c�mico um esfor�o t�o grande da parte da Igreja para catequizar criaturas desprovidas de alma, livres, portanto, da possibilidade das penas infernais. Atruibuo � pura e simples desinforma��o essa tirada de mau-gosto, que em si n�o teve import�ncia no contexto da discuss�o e que n�o modifica em nada a imagem positiva de Aldo Rebelo, um dos melhores pol�ticos brasileiros, pelo qual tenho o maior respeito e admira��o. Outra nota desafinada veio de militantes negros enrag�s, um dos quais disse umas coisas sobre Auschwitz que n�o compreendi absolutamente, e outro que alegou ser a famosa "fam�lia brasileira" uma filha, n�o do casamento, mas do estupro das negras pelos brancos. Como meu filho Luiz, um caracter�stico mulato brasileiro, estivesse na plat�ia, pedi-lhe que se apresentasse e perguntei ao cidad�o se o julgava um produto do estupro, sugerindo-lhe que, se n�o pudesse defender essa tese ali mesmo, na frente do pai do rapaz, tivesse a amabilidade de ficar calado, o que ele fez sem maiores obje��es. Em todo caso, a apresenta��o que suscitou mais rea��es foi a do deputado Rebelo, muito inc�moda, � claro, para certo tipo de militantes black subsidiados por funda��es norte-americanas. Mesmo assim, essas obje��es foram t�midas, pelo simples fato de que seria muito dif�cil algu�m impugnar a tese do deputado sem se desmascarar, no ato, como um adepto do imperialismo global. E quem iria querer fazer isso, diante de uma plat�ia de duzentos brasileiros? O Instituto M�rio Alves est� de parab�ns pela iniciativa do debate. A situa��o do mundo � complicada, ningu�m pode pretender t�-la compreendido por inteiro, e a �nica maneira de lan�ar alguma luz sobre o assunto � falar francamente. Numa �poca em que tantos v�m tentando bloquear o debate ou transform�-lo numa pura disputa er�stica a servi�o da luta pelo poder, foi uma grande alegria poder conversar com Aldo Rebelo e Jacob Gorender. Por instantes, senti que est�vamos de volta a um outro Brasil, aquele Brasil onde enfezados esquerdistas e obstinados conservadores prodiam trocar id�ias � porque tinham id�ias � sem �dios, temores ou desconfian�as caipiras. 14/08/00
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