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Da d�vida cr�dula

Olavo de Carvalho

 

O que leva um homem a duvidar � ou a percep��o de um problema sugerido pelos dados de uma realidade ao menos aparentemente contradit�ria, ou uma sugest�o de sua pr�pria imagina��o excitada pelo medo, pela suspeita, pela incompreens�o, pela simples m� vontade. Tal � a diferen�a entre a d�vida filos�fica e a d�vida ociosa.

A mente treinada n�o tem dificuldade em distinguir esses dois tipos de d�vidas e em rejeitar o segundo como indigno de aten��o filos�fica. Quatro s�culos de cultura c�ptica, por�m, fizeram da d�vida imagin�ria um h�bito, um valor e um dogma do senso comum, t�o dif�cil de desarraigar quanto as mais toscas supersti��es e crendices, e igualmente danoso para a intelig�ncia.

Num meio social desguarnecido de valores culturais consolidados, a d�vida ociosa pode alastrar-se para todos os dom�nios da atividade pensante, paralisando as intelig�ncias e tornando imposs�vel o aprendizado. N�o hesito em dizer que, entre os jovens estudantes brasileiros, esse fen�meno � o maior obst�culo � aquisi��o de uma cultura filos�fica.

� da pr�pria ess�ncia da d�vida filos�fica articular-se racionalmente em vista de uma solu��o, ao passo que a d�vida ociosa �, por natureza, obsessiva e proliferante. Enquanto o questionador filos�fico s� rejeita uma afirma��o quando os motivos de neg�-la sejam patentemente mais razo�veis que os de aceit�-la, o esp�rito acometido de d�vida ociosa n�o hesita em proceder como se simples hip�teses inventadas, pelo simples fato de serem destrutivas, devessem ser mais confi�veis do que as cren�as do senso comum ou os dados dos sentidos. Ao velho prest�gio rom�ntico do negativo e do macabro acrescenta-se a moda mais recente: a apologia geral da "independ�ncia" e da "rebeldia" faz com que cada um se sinta um grande homem quando em nome de hip�teses artificiosas nega aquilo que v� ou sente, sem notar que, ao faz�-lo, sacrifica suas percep��es aut�nticas e pessoais no altar de um cacoete coletivo, e que sua afeta��o de independ�ncia cr�tica n�o passa, assim, do mais puro servilismo e esp�rito de rebanho.

Duas influ�ncias filos�ficas remotas que, por estar incorporadas em correntes de opini�o coletivas, exercem facilmente sobre a mente dos principiantes uma autoridade tendente a legitimar o ceticismo ocioso, s�o a filosofia anal�tica e o marxismo. A primeira oferece ao estudante a possibilidade de viver imerso num mar de d�vidas paralisantes, das quais se sente ao mesmo tempo solidamente abrigado sempre que foge para o recinto estreito do "m�todo cient�fico", como se este n�o fosse apenas um conjunto de procedimentos coletivos de verifica��o e prova que subentende, na mente individual que o pratica, a capacidade para uma infinidade de certezas diretas que transcendem, em muito, os dois crit�rios admitidos nesse mesmo m�todo, isto �, os dados atom�sticos dos sentidos e as leis da l�gica indutiva. Quanto ao segundo, oferecendo para as d�vidas filos�ficas a falsa solu��o de absorv�-las na praxis revolucion�ria, o que no fim das contas n�o � sen�o mudar de assunto, permite que na mente do estudante coexistam, sem choque aparente, a d�vida mais corrosiva ante os valores e cren�as do advers�rio e a mais sonsa credulidade ante as pretens�es da sua pr�pria ideologia. Que ambas essas filosofias acabem sempre se fechando nas suas "tradi��es" pr�prias, incapazes de dialogar com o que quer que n�o consinta em obedecer �s regras de seus respectivos "universos de discurso", e que cada uma delas esteja inseparavelmente associada a um esquema de poder - capitalista e comunista --, j� deveria ser suficiente para mostrar que a mente que se pretenda livre e independente n�o deve, desde logo, aceitar as premissas de uma ou de outra. Mas a d�vida ociosa, sendo por natureza irracional e sentimental, n�o busca verdadeiro conhecimento, e sim apenas o apoio prestigioso de uma coletividade que a estimule a duvidar seletivamente daquilo que odeia e crer n�o menos seletivamente naquilo que adora. Por isto mesmo ela sente uma atra��o irresist�vel por uma dessas ideologias, quando n�o pelas duas ao mesmo tempo, dizendo ante Wittgenstein e Marx: Entre les deux, mon coeur balance.

A d�vida cr�tica � apenas uma dentre as muitas opera��es da intelig�ncia discursiva, e seu exerc�cio fecundo subentende a intelig�ncia �ntegra, informada e culta, armada daquele senso das propor��es que s� uma longa educa��o pode dar. Mas, precisamente, a d�vida prematuramente estimulada, seja pela moda, seja por interesses pol�ticos maldosos, faz com que o exerc�cio dessa opera��o em particular se antecipe e se substitua ao todo da intelig�ncia, bloqueando qualquer aprendizado poss�vel.

Enquanto n�o libertarmos desse c�rculo vicioso a mente do estudante brasileiro, n�o haver� aut�ntica filosofia entre n�s.

 

14/12/99

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