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Coment�rios �s refuta��es borr�nicas

 

Ao publicar nesta homepage os presentes coment�rios, enviei ao mesmo tempo a seguinte carta � reda��o de �poca:

Senhor redator: Preferindo guardar meu espa�o em �poca para coisas mais importantes, coloquei em meu website, http://www.olavodecarvalho.org, uma resposta detalhada ao blefe pueril com que, na edi��o de 21 de outubro, o sr. Luca Borroni-Biancastelli fingiu refutar minhas cr�ticas a Lord Keynes.

Olavo de Carvalho

 

No meu artigo “Palmas para Keynes” (�poca, 16 set. 2000) , fiz as seguintes afirmativas: 1. Keynes protegeu o c�rculo de espi�es sovi�ticos de Cambridge. 2. A proposta econ�mica de Keynes resultava em fazer do Estado o maior dos capitalistas. 3. O New Deal inspirado em Keynes deu errado e s� foi salvo pela eclos�o da guerra (que, por defini��o, favorecia o controle estatal da economia). 4. A famosa senten�a “A longo prazo estaremos todos mortos” pode ser lida como resposta de Keynes � cr�tica de que transformar o Estado em empreendedor geraria infla��o atrav�s do aumento dos gastos p�blicos. 5. Os admiradores que louvam Keynes como salvador do capitalismo s�o sobretudo burocratas esquerdistas aos quais ele deu um lugar de honra no seu novo modelo pseudocapitalista.

Prometendo arrasar mediante seu saber econ�mico de grosso calibre a minha “pseudo-an�lise” de leigo, o prof. Luca Borroni-Biancastelli (�poca, 21 out. 2000) responde com evasivas �s duas primeiras afirma��es, nada diz quanto � terceira, falseia os dados hist�ricos para fingir que desmente a quarta, e por fim d� uma boa confirma��o involunt�ria � quinta com sua ira de esquerdista ferido pelas cr�ticas liberais a seu idolatrado Keynes.

Se isso � uma refuta��o, o prof. Borroni � um tri�ngulo is�sceles. Mas n�o me espantaria que ele acreditasse ser um tri�ngulo is�sceles, j� que pensa tamb�m que meu artigo � uma “pseudo-an�lise” da teoria de Keynes, quando obviamente n�o h� ali an�lise nenhuma, quer genu�na, quer posti�a, mas, precisamente ao contr�rio, a simples express�o sint�tica de um julgamento.

� compreens�vel que quem n�o sabe distinguir an�lise de s�ntese tamb�m n�o saiba a diferen�a entre uma refuta��o e a simples express�o de uma discord�ncia irritada, sublinhada pela ostenta��o grotesca de sentimento de superioridade perfeitamente ilus�rio que denota antes uma mentalidade de adolescente.

Mas, al�m de tomar a s�ntese por an�lise, o prof. Borroni ainda acredita que ela � sobre a teoria de Keynes. Basta ler meu artigo com aten��o para verificar que sobre o conte�do das id�ias de Keynes ele cont�m, no total, uma s� frase, e que essa frase n�o fala da teoria e sim da proposta pr�tica que o autor dessa teoria houve por bem deduzir dela. An�lise � divis�o de um todo nas suas partes constituintes, e n�o se v� como seria poss�vel faz�-la, aut�ntica ou facticiamente, numa senten�a breve e �nica que, al�m do mais, n�o fala de nenhuma delas e se contenta com apontar um efeito hist�rico do conjunto.

Para ser pseudo-alguma-coisa � preciso ter ao menos uma vaga semelhan�a com essa coisa, e meu artigo n�o se parece em nada com uma an�lise. Ele pode portanto ser tudo o que o prof. Borroni queira, pode ser at� um aglomerado de bobagens, mas n�o pode, em hip�tese alguma, ser uma pseudo-an�lise.

Para um carrancudo Ph. D. empenhado em defender sua jurisdi��o acad�mica contra o leigo intruso, o prof. Borroni n�o se revela muito h�bil no dom�nio dos instrumentos elementares de toda linguagem cient�fica.

Para ajudar o ilustre s�bio a superar essa sua dificuldade, esclare�o, a t�tulo de exemplo pedag�gico, que o primeiro par�grafo destes coment�rios � um desmembramento anal�tico das partes do meu artigo “Palmas para Keynes” e que o segundo � uma s�ntese dos defeitos que encontrei na argumenta��o de seu cr�tico, os quais, para maior clareza, passo a analisar criticamente:

1. Em resposta � minha afirmativa de que Lord Keynes favoreceu a espionagem sovi�tica em Cambridge, o prof. Borroni diz: “Quanto �s inclina��es ideol�gicas do grande economista, a verdade � que Keynes sempre execrou as id�ias de Marx.” Ora, uma acusa��o de cumplicidade em espionagem n�o pode, obviamente, ser refutada mediante a alega��o das convic��es ideol�gicas do suspeito. Espionagem n�o � milit�ncia, que subentende ades�o mental. Espionagem pode-se fazer por profiss�o, por suborno, por interesse pol�tico, por envolvimento for�ado, por chantagem, por esp�rito de aventura, por mil e um motivos dos quais a ideologia n�o � nem de longe o mais relevante. No c�rculo de espi�es em Cambridge, o autor da mais importante contribui��o � URSS foi Ludwig Wittgenstein, cujas cren�as pol�ticas estavam ainda mais distantes do marxismo que as de Keynes. Da alega��o extempor�nea do prof. Borroni s� se pode concluir que ele ignora n�o apenas o que � refuta��o, mas tamb�m o que � espionagem e, ademais, tudo o que aconteceu em Cambridge.

2. � minha afirmativa de que “A m�gica besta da economia keynesiana consistia em fazer do Estado o maior dos capitalistas”, o prof. Borroni oferece duas respostas. A primeira assegura, com ponto de exclama��o, que “Keynes nunca defendeu tal tese!”. A segunda, linhas adiante, declara que, para Keynes “o governo s� deve assumir a tarefa de promover a retomada do crescimento econ�mico quando as condi��es do sistema n�o permitirem a atua��o eficaz do capital privado”. Bem, desde logo seria melhor o prof. Borroni escolher uma das duas respostas, pois elas s�o incompat�veis: ou Keynes n�o admitiu que se adotasse nunca a proposta de um Estado-empres�rio, ou admitiu adot�-la em determinadas circunst�ncias. A diferen�a �, precisamente, a que existe entre nada e alguma coisa. Essa distin��o pode ser obscura e dificultosa para o prof. Borroni, mas n�o creio que o seja para o restante da humanidade.

Ademais, h� nesse caso um outro aspecto que, como ali�s praticamente todos os demais, passou despercebido ao nosso Ph. D.: � que, se Keynes s� admitia o Estado-empres�rio em certas circunst�ncias, isto �, “quando as condi��es n�o permitirem a atua��o eficaz do capital privado”, essas eram precisamente, segundo ele pr�prio, as circunst�ncias� vigentes no momento em que ele publicou sua Teoria e, de modo geral, em toda a fase hist�rica que vai do fim da I Guerra Mundial at�... a morte de Keynes! Ou seja: Keynes “nunca” admitiu a transforma��o do Estado em empres�rio, exceto... durante o tempo todo em que viveu.

A resposta do prof. Borroni �, portanto, apenas uma tentativa frustrada de lan�ar uma cortina de fuma�a sobre aquilo que todo mundo sabe: malgrado todas as media��es e atenua��es te�ricas poss�veis, que na pr�tica ficaram sem efeito, a proposta de Keynes consistiu, sim, em fazer do Estado o maior dos empres�rios, aumentando desmedidamente os gastos p�blicos e elevando a infla��o a alturas estratosf�ricas.

3. Embora a afirma��o do completo fracasso da aplica��o das propostas keynesianas nos Estados Unidos esteja no centro mesmo do meu argumento contra Keynes, o prof. Borroni nada lhe responde. A omiss�o � significativa, pois, se um sujeito amea�a dar cabo de nossas opini�es e depois, em vez de mirar bem no cora��o e acert�-las com um tiro mortal, fica tentando roer pelas bordas com uma boca sem dentes, a �nica conclus�o poss�vel � que n�o estamos diante de um advers�rio s�rio, mas de um ignorante muito fraco e abusado.

4. Segundo meu artigo, � cr�tica de que transformar o Estado em empreendedor geraria infla��o atrav�s do aumento dos gastos p�blicos Keynes teria respondido com sua c�lebre evasiva “A longo prazo estaremos todos mortos.” O prof. Borroni acusa-me de citar a frase fora do contexto e informa que ela, na verdade, foi uma cr�tica a Alfred Marshall.

Bem, � certo dizer que coloquei a cita��o fora do contexto, mas o prof. Borroni faz pior: coloca-a num contexto falso.

Na verdade puramente textual, a frase n�o foi dita nem para defender a teoria do pr�prio Keynes nem para atacar a de qualquer outro. Foi apenas uma observa��o a prop�sito de empr�stimos de guerra concedidos pelo Tesouro ingl�s em 1917 e cujo retorno estava demorando mais do que o esperado. (1)

Eu e o prof. Borroni, portanto, ambos cometemos o mesmo delito. N�o � delito grave, em si mesmo. Uma frase dita em determinada ocasi�o por um pensador pode ser perfeitamente usada para resumir ou parafrasear coisas que ele disse em outra ocasi�o, caso o sentido geral coincida ao menos esquematicamente. Por exemplo, Karl Marx n�o disse em parte alguma de O Capital que “a moderna sociedade burguesa n�o eliminou os antagonismos de classe”. Ele disse isso no Manifesto Comunista, trinta anos antes, mas a frase resume, de antem�o, p�ginas e p�ginas de O Capital. Portanto, num texto jornal�stico, sem obrigat�ria fidelidade literal ou remiss�o cient�fica a fontes textuais, n�o haveria nada de mais em usar essa frase como alus�o � doutrina de O Capital.

Identicamente, n�o � abuso usar da frase de Keynes sobre o empr�stimo de 1917, seja para resumir sua atitude ante as advert�ncias de seus cr�ticos, seja para condensar sua cr�tica a Marshall, pois o sentido � esquematicamente o mesmo em ambos os casos e em ambos trata-se apenas de aludir e resumir sem distorcer. Na verdade, o uso dessa frase como uma esp�cie de s�ntese da atitude intelectual de Keynes tornou-se geral entre economistas e n�o-economistas, keynesianos ou antikeynesianos, mais ou menos como se faz com o “Eppur si muove” de Galileu ou o “Cogito ergo sum” de Descartes, tamb�m citados abundantemente fora de contexto, sem qualquer preju�zo do sentido geral das id�ias que resumem. N�o h� nisso nada de especialmente perverso.

A pervers�o come�a no preciso momento em que o prof. Borroni tenta induzir o leitor a crer que, das duas alus�es deslocadas, uma � abusiva troca de contexto e a outra, a sua, uma rigorosa cita��o textual. A� j� abandonamos o terreno da licen�a jornal�stica e entramos no da falsifica��o de fontes.

Nossos delitos, pois, n�o s�o o mesmo. A diferen�a � a que existe entre uma figura de estilo usada para abreviar a explica��o e uma fraude concebida para fins difamat�rios.

5. Que os louvores a Keynes como salvador do capitalismo venham sobretudo de pessoas que teriam tudo para odi�-lo se ele realmente o fosse, � coisa que n�o preciso provar, pois o pr�prio prof. Borroni o prova no momento em que qualifica minhas cr�ticas de “apologia da direita econ�mica mais obtusa”. A palavra “direitista”, certamente, s� pode ser um insulto desde o ponto de vista da esquerda, e � este o ponto de vista que o prof. Borroni subscreve ao fazer a apologia de Keynes.

O tom irritado das suas observa��es, o nervosismo de uma l�gica que se atropela e esborracha em autocontradi��es a cada linha bem mostram que o prof. Borroni ressentiu minhas cr�ticas a Keynes como uma ofensa intoler�vel � dignidade do of�cio de economista que ele cr�, por motivos insond�veis, representar muito bem. E t�o piamente ele se imagina a encarna��o mesma do saber acad�mico nessa �rea, que, sem a menor suspeita de que possa ter-se enganado, ele sup�e que quem quer que diga as coisas que eu disse de Keynes s� pode t�-las aprendido de ouvir-dizer ou de introdu��es populares de segunda-m�o escritas por leigos.

Bem, mesmo que essa conjetura fosse ver�dica, ela n�o bastaria para impugnar essas cr�ticas como “velhos chav�es desprovidos de qualquer fundamento cient�fico”, precisamente porque o valor de uma cr�tica n�o est� no prest�gio acad�mico da sua fonte, mas na veracidade do seu conte�do.

Mas o fato � que, ao embarcar nessa suposi��o com f� de carbon�rio, o prof. Borroni s� revela a sua completa ignor�ncia de que tais cr�ticas a Keynes – e outras muito mais graves – n�o constam s� de livretos populares e sim de obras fundamentais da economia, que, por n�o as conhecer, ele imagina inexistentes e imposs�veis de existir.

Ludwig von Mises, por exemplo, o mestre da escola austr�aca, e indiscutivelmente um cl�ssico da ci�ncia econ�mica, diz que a esperan�a de corrigir as distor��es da economia mediante a interven��o do Estado “� a f�bula de Papai Noel elevada por Lord Keynes � dignidade de doutrina econ�mica, entusiasticamente apoiada por todos aqueles que esperam obter vantagens pessoais com os gastos do governo” (2). � o mesmo que eu digo em “Palmas para Keynes”. O prof. Borroni pode alegar que isso � “de direita” e que ser de direita � o supremo pecado. Mas ter� a cara de pau de alegar que � opini�o de n�o-economista ou cita��o extra�da de manual popular? Do mesmo modo, n�o ser� um excesso de presun��o crer, sem exame, que nada se pode alegar contra Keynes exceto “velhos chav�es sem valor cient�fico”, quando a pr�pria doutrina de Keynes � descrita por von Mises como uma cole��o de “cren�as populares racionalizadas e elevadas � categoria de uma doutrina quase-econ�mica”?

Por que ludibriar o p�blico, levando-o a imaginar que est� diante de um confronto entre o saber especializado e a ignor�ncia leiga, quando os ataques a Keynes n�o partem de fontes estranhas � ci�ncia econ�mica, mas de economistas muito mais qualificados que um milh�o de Borronis?

Mais adiante, diz von Mises: “Na pr�tica, todos esses expedientes de uma suposta pol�tica de pleno emprego mais cedo ou mais tarde conduzem � instaura��o de um socialismo modelo alem�o (nazismo).” Ter� o prof. Borroni a desfa�atez de negar que a pol�tica econ�mica keynesiana do governo Roosevelt se apoiou em medidas policiais e repressivas, com campo de concentra��o e tudo? Se tem, que leia ent�o John T. Flynn, The Roosevelt Myth (3), e depois opine com conhecimento de causa, em vez de presumir que a exibi��o caipira de t�tulos acad�micos substitui com vantagem a informa��o exata e o estudo s�rio.

O mais curioso no texto do prof. Borroni � sua confiss�o final de que Keynes tinha “escasso interesse pela m�quina burocr�tica estatal” e que isso constitui “um ponto fr�gil” da sua doutrina, bem como, ali�s, da de Marx. Ora, esse desinteresse, mais que mera fragilidade te�rica do pensamento de Keynes, revela nele (como tamb�m em Marx) uma espantosa leviandade e um imoral desinteresse pelos meios pr�ticos de realiza��o de suas id�ias. Pois, se a burocracia � o instrumento por excel�ncia da mudan�a, ignor�-la � simplesmente falsear por completo o pr�prio racioc�nio econ�mico, produzindo a impress�o de que o Estado � um Deus ex machina que pode agir sobre a economia sem depender dela, sem ser sustentado por ela, dando miraculosamente ao povo algo que n�o tomou desse mesmo povo. � desencadear conseq��ncias econ�micas, pol�ticas e sociais monstruosas, cuja previs�o deve constituir motivo de inquieta��o para todos, exceto para o te�rico nefelibata que, do alto da sua torre de marfim, considera o mundo um jogo intelectual e, seguro de estar morto a longo prazo, faz dos destinos da humanidade um brinquedo, como O Grande Ditador de Charlie Chaplin.

Por isso mesmo, n�o considero impr�pria a linguagem com que falei de John Maynard Keynes. Segundo o prof. Borroni, � linguagem “de taberna”, porque usa o termo “desgra�ado”. Mas “desgra�ado” � termo religioso: designa aquele que foi exclu�do da Gra�a. Keynes e seu c�rculo de amiguinhos em Cambridge estavam bem cientes de sua radical inimizade a um Deus que n�o chegavam a declarar inexistente. Por isso mesmo, numa caricatura expl�cita, denominaram “Os Ap�stolos” a seu grupo, unido n�o no amor de Cristo, mas na m�tua sedu��o er�tica e na comum afei��o a jogos intelectuais de um artificialismo sem par, entre os quais o mais divertido era a espionagem a servi�o de uma ideologia assassina na qual nem sequer acreditavam: se podiam brincar com o inferno, por que n�o haveriam de brincar com os destinos da Terra?

Esse aspecto das coisas � fundamental para quem deseje compreender a inspira��o que movia o grupo de Cambridge. Posso falar dele com mais detalhe, numa outra ocasi�o. Mas ele est� t�o longe do c�rculo de vis�o do prof. Borroni quanto a burocracia estava longe das cogita��es daquele que, brincando, brincando, entregou a ela as chaves da onipot�ncia. Por isso, em vez da associa��o b�blica que o autor do texto teve em vista, a palavra “desgra�ado” s� traz ao seu pretenso cr�tico a evoca��o extempor�nea de um ambiente de taberna em cuja conversa��o, decerto, predominam express�es de teor bem diverso, provavelmente at� mais adequadas a descrever o car�ter de Lord Keynes. Nisto, como em tudo o mais, o prof. Borroni passou longe da quest�o. Talvez assim seja melhor: ele n�o tem ainda nem o saber nem a maturidade espiritual necess�rios para tomar consci�ncia do tipo de jogo em que se meteu.

Olavo de Carvalho

 

Notas

(1) Collected Works, vol. IV, p. 65.

(2) A��o Humana. Um Tratado de Economia, trad. Donald Stewart Jr., Rio, Instituto Liberal, 2a. ed., 1995, p. 748.

(2) Old Greenwich, Connecticut, Popsvox Publishing, 1997.