1. Preliminares
Nos anais da safadeza universal, o Sr. Sidney Silveira ocupa um
lugar modesto, mas especialíssimo pela originalidade:
é o primeiro sujeito que tenta escapar de uma
acusação de crime mediante a alegação
de ser mais erudito em matéria
filosófico-teológica do que o denunciante. Cada vez
que o acuso de ter falsificado propositadamente o sentido de um
texto meu para me indispor com a Igreja Católica, lá
vem ele novamente dizendo que quem entende de Sto. Tomás
Aquino é ele, que minhas idéias filosóficas
estão erradas nisto ou naquilo, que não existe
conhecimento intuitivo das essências ou que Edmund Husserl
era herético. Após alguns parágrafos, o
assunto inicial – o crime – desapareceu por completo:
a imputação criminal tornou-se debate
filosófico, elevando o criminoso à
condição honrosa de adversário intelectual da
vítima e deixando a investigação dos fatos
para o dia de são nunca.
Se o apelo à tática da desconversa já
é por si uma prova circunstancial do crime, na
técnica lógica o artifício aí usado se
chama “troca de gênero” (metábasis eis allo guénos): você cobra uma dívida, o devedor lhe responde com
uma receita de cataplasma infalível, e você, trouxa,
ainda anota a receita e sai dali todo satisfeito, sem um
tostão no bolso.
A mudança de gênero já se tornou, na pessoa do
Sr. Silveira, uma espécie de segunda natureza. Ele a
pratica com a espontaneidade de quem respira, a propósito
de tudo e qualquer coisa, sem nem reparar no que faz. Por exemplo:
protestando contra a minha recusa de um debate nos termos
propostos pelo Sr. Carlos Nougué, ele denuncia que apelei
ao argumentum auctoritatis ao invocar a penúria
absoluta de realizações do desafiante no campo da
filosofia tomista em que ele se proclamava uma autoridade
inigualável. Mencionar a falta de autoridade do contendor
pode ser descabido quando usado como argumento contra uma
afirmação filosófica, no curso de um debate.
No instante em que o convite é formulado, porém, o
debate ainda não começou, nenhuma
afirmação filosófica foi feita, e o
único critério para aceitar ou rejeitar o desafio
é o que se sabe da pessoa do desafiante. Se tudo o que este
tem a mostrar são suas realizações futuras,
é prudente guardar distância dele para escapar ao
risco de uma formidável perda de tempo, principalmente se
na própria formulação da proposta o
cidadão já provou sua absoluta incapacidade de
definir o assunto a ser discutido. Não há na recusa
argumento filosófico nenhum, seja o de autoridade ou
qualquer outro, há apenas uma escolha prática
baseada na prudência. O Sr. Silveira toma essa escolha como
se já fosse uma afirmação feita no curso do
debate, e a classifica na tipologia dos argumentos
filosóficos. Que é isso? Percepção
errada, metábasis eis allo guénos.
Toda atividade intelectual pressupõe, além dos
estudos gerais e especiais necessários ao conhecimento da
matéria, a percepção correta da
situação real onde a atividade se desenvolve. Fora
disso, você entra, como diria o falecido Stanislaw Ponte
Preta, no perigoso campo da galhofa. Certa vez o filósofo
romeno Petre Tutsea foi surpreendido a explicar, por mero
divertimento, a diferença entre as fenomenologias de
Heidegger e Husserl a um grupo de presidiários que
não entendiam uma única palavra do que ele estava
dizendo. Perguntado por que se entregava a atividade tão
extravagante, ele respondeu: “Bem, algum dia alguém
precisava esclarecer essa diferença, não
precisava?” O que Tutsea fez em blague o sr.
Silveira faz perfeitamente a sério, confundindo o convite
para um debate com o próprio debate.
No meio cultural subdesenvolvido, o maior risco que você
corre não é o de permanecer inculto. Isso você
pode superar mediante o estudo. O maior risco é o da
alienação, o de viver num mundo de idéias
gerais que não têm nada a ver com a sua
existência concreta. Num estudo muito interessante publicado
décadas atrás, o crítico marxista Roberto
Schwarz observou que os líderes do movimento pela
independência do Brasil, todos eles senhores de terras,
apelaram a slogans ideológicos copiados da
Revolução Francesa, sem nem perceber que
argumentavam contra seus próprios interesses. Era a
aristocracia feudal falando como se fosse a burguesia
revolucionária. Ele chamou a isso “idéias fora
do lugar”. É a marca da cultura subdesenvolvida, que
vive de macaquear o que não compreende, ou melhor, aquilo
que pode até compreender em termos genéricos, mas
cuja função na existência lhe escapa.
Mutatis mutandis, é como no caso daquela
família de pobres retirantes que ganhou um apartamento de
uma instituição de caridade e, jamais tendo visto
antes uma privada, a usou como vaso de flores.
Na cultura subdesenvolvida, a
metábasis eis allo guénos é
doença endêmica. Cada um tenta dizer as coisas mais
eruditas, mais brilhantes, que não têm nada a ver com
a situação. Não é uma falta de
cultura, é um erro estrutural de percepção
nascido de uma falta de autenticidade vital, de uma carência
de substância humana por baixo das construções
ideais do pensamento.
Desde o início da minha vida de estudos notei que isso era,
para os nascidos no Brasil, um handicap mais sério
que a incultura ou a fraqueza natural da inteligência.
Vacinei-me contra isso adotando o conselho, que li em Ortega y
Gasset e Julián Marías, de filosofar sempre desde a
circunstância concreta a mais imediata, não desde
problemas e temas gerais do repertório filosófico,
consagrados nos programas escolares. Se a circunstância
imediata fosse mesquinha e desprezível, avessa e hostil aos
meus belos ideais e sonhos, criminosa mesmo, isso tornava ainda
mais claro o meu dever de homem de estudos: tentar descobrir como
o ser humano, feito para ser imagem e semelhança de Deus,
conseguira baixar tanto. Em vez de buscar refúgio da
estupidez ambiente saltando direto para o céu das
idéias puras, era preciso descobrir o caminho que levava de
uma coisa à outra (e desta para aquela). No curso dessa
atividade, a miséria mesma da situação se
iluminava, mostrava sua razão de ser como capítulo
da epopéia humana rumo ao seu destino eterno.
Não é coincidência que o mais ambicioso dos
meus livros publicados tome como ponto de partida, não
grandes idéias ou questões sublimes, e sim um
episódio particularmente deprimente de imbecilidade
letrada, típico da miséria intelectual brasileira,
subindo daí, passo a passo, para chegar às
especulações de filosofia da História que
são a verdadeira matéria do livro.
Por isso é que não me impressionam os protestos
gentis de tantos leitores e amigos, segundo os quais eu deveria
prestar menos atenção à estupidez ambiente e
em vez disso brindá-los com altas lições
sobre os temas clássicos da filosofia. Os temas
clássicos da filosofia tornam-se apenas fetiches
hipnóticos e ocasiões de alienação se
não chegamos a eles desde uma aguda consciência da
situação imediata e se os usamos como
anestésicos no afã de libertar-nos da mesquinharia
sufocante que reina em torno.
Se a mesquinharia sufocante é a nossa
situação, ela é a nossa realidade, é o
lugar do universo onde estamos, e é desde onde podemos nos
alçar à visão de mundos sublimes, com a
condição de que levemos conosco, resgatando-o, tudo
aquilo que nos oprimia e nos humilhava.
Tal como o homem que enriqueceu não deve esquecer seus dias
de pobreza, para não se tornar arrogante e
insensível, aquele que se tornou um letrado, um
intelectual, não deve desprezar a miséria espiritual
e existencial que lhe serviu de ponto de partida e que será
sempre, por contraste, a sua medida da escala humana. Se Dante
começou sua viagem pelo inferno, por que deveríamos
partir de um terreno mais elevado? E se é verdade, como
dizia Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma
matéria dos vícios, as virtudes intelectuais
não serão conquistadas só pela
freqüentação dos exemplos edificantes, mas por
uma longa, perigosa e difícil transmutação
alquímica dos vícios mentais que se impregnaram
inconscientemente em nós pela contaminação
onipresente dos maus exemplos.
Daí a necessidade de alternar o estudo das grandes obras
com o exame crítico e analítico das deformidades e
vícios do ambiente cultural próximo, não para
cultivar um descabido sentimento de superioridade, mas, bem ao
contrário, para identificar os germes e resíduos que
deixaram no fundo da nossa alma, de modo a podermos, se não
extingui-los de todo, ao menos mantê-los sob controle.
Os leitores de O Jardim das Aflições devem
lembrar-se de que encerro o livro confessando o meu – o
nosso – parentesco mental com o miserável personagem
que lhe servira de estímulo e pretexto.
Do mesmo modo, se eu não carregasse no fundo de mim, bem
amarradinhos e inermes, um Emir Sader, um Rodrigo Constantino, um
Carlos Nougué, um Sidney Silveira e outros tantos, jamais
poderia ter compreendido a sua forma mentis e qualquer
crítica que eu lhes fizesse permaneceria externa, mera
expressão de reações pessoais sem o alcance
de um diagnóstico psico-cultural digno de
atenção.
Aqui, como naquele livro, ao examinar os ditos e feitos desses
indivíduos, não faço senão revisitar
de memória certas deformidades já longamente
ultrapassadas da minha mente em formação, as quais
tive a prudência de conservar escondidas como um segredo
obsceno, ao passo que eles exibem as suas como se grandes obras
fossem e motivos de orgulho.
Quando um Sr. Sidney Silveira, Carlos Nougué ou qualquer
outro se oferece gentilmente para ilustrar com a sua pessoa algum
vício estrutural da mente brasileira, devemos ser-lhes
gratos por dar visibilidade a uma doença que, sem exemplos
individualizados, seria muito difícil de descrever.
O leitor incapaz de notar que, ao escrever sobre essas criaturas,
busco menos criticá-las do que explicá-las como
fenômenos da alma brasileira, está ele próprio
gravemente enfermo de subdesenvolvimento cultural. No
mínimo, está como a criança que, não
podendo compreender as ações dos adultos, lhes
atribui as motivações mais fantásticas e
impossíveis.
2. Fugindo como sempre
Em recente mensagem publicada no Contra Impugnantes, o
Sr. Sidney Silveira reclama que tomei “uma simples imagem
analógica usada em sala (à guisa de exemplo para uma
platéia bastante heterogênea) com o intuito de
mostrar cabalmente que confundia eu ali, ao final das contas, o
eidos, quer dizer, a forma inteligível de um ente,
com os seus acidentes individuantes”.
Releiam o que escrevi a respeito, ouçam a aula mencionada e
confiram se o sr. Silveira, tentando provar a impotência
humana de conhecer essências por intuição,
não usou como exemplo a impossibilidade de apreender
“a essência de um copo envenenado”
(sic). Digam-me em seguida se quem erra sou eu ao dizer
que um copo estar cheio de veneno é apenas um acidente,
não uma essência.
Pego em flagrante burrada, o Sr. Silveira poderia, sem abdicar da
sua tese e sem passar vergonha nenhuma, ao menos confessar que o
exemplo é ruim, inepto, grotesco. Mas não.
“Repetidor do magistério infalível”, ele
não pode reconhecer que falhou nem mesmo num detalhe. Fiel
ao seu hábito, ele nem confessa o erro nem tenta
defendê-lo: muda de assunto. Foge ao ponto em
discussão e camufla o vexame sob uma longa e
eruditíssima argumentação anti-intuicionista.
Ora, por mais certa, exata e infalível que fosse essa
segunda série de argumentos, ela não teria jamais o
dom miraculoso de tornar retroativamente aceitável o
exemplo do copo envenenado, com o qual ilustrei, não a
teoria intuicionista ou qualquer outra, mas a confusão
mental do Sr. Silveira, sua escassa confiabilidade de pensador e
professor.
Notem que, na breve análise que fiz do malfadado exemplo,
não apresentei nenhum argumento em favor do intuicionismo,
apenas mostrei a inépcia de uma crítica em
particular feita a essa teoria no curso de uma aula do Sr.
Silveira. Qualquer pessoa que saiba ler percebe que o assunto ali
não era intuicionismo nem anti-intuicionismo, mas uma
performance pedagógica deplorável. Se o
autor da performance finge que não percebeu nada e
desvia a conversa para uma eruditíssima
refutação tomista do intuicionismo, só
demonstra com isso, novamente, a sua propensão compulsiva
de fugir dos fatos deprimentes para o reino maravilhoso das
abstrações e teorias, com a vantagem adicional de
exibir cultura e simular superioridade mediante o uso daquele seu
característico tom professoral, um estilo que pode enganar
o seu público usual mas que, para o leitor dotado de alguma
cultura literária, revela apenas um mau-gosto dos diabos (o
estilo que o falecido Bruno Tolentino, com precisão cruel,
denominava “penteadeira de velha”).
O mais ridículo de tudo é o sujeito não
perceber – ou fingir que não percebe – que
mesmo a melhor argumentação anti-intuicionista do
mundo, feita ex post facto sob outros e novos argumentos,
colhidos ao longo da semana em tratados escolásticos, nem
poderia responder à minha crítica nem jamais dar
ares de respeitabilidade retroativa àquela desastrada
tentativa de exemplificação pedagógica, que
vexame foi e vexame continuará sendo pelos séculos
dos séculos, até que o Sr. Silveira desça do
pedestal e consinta em impugná-la ele próprio, como
o faria em lugar dele qualquer estudioso honesto, ao menos para
salvar a honra da própria teoria que defende.
Desviando a discussão para o tema do intuicionismo em si, o
Sr. Silveira, como sempre faz, foge do específico para o
genérico e tenta dar a aparência de grande debate
filosófico àquilo que é apenas um
esforço desesperado para disfarçar a vergonha que
passou.
Parece um menino que, tendo feito cocô nas calças,
tentasse provar maturidade exibindo profundos conhecimentos de
fisiologia da defecação.
É patético.
3. Anti-intuicionismo
O Sr. Silveira, no seu novo exercício teatral, poderia ter
poupado ao seu público a extensa repetição
dos ensinamentos tomistas sobre a abstração, que se
encontram em tantos manuais e que são totalmente
extemporâneos à discussão da sua mancada
pedagógica. É exibicionismo, decerto, mas não
puro e simples: é exibicionismo usado como instrumento de
desconversa, de modo a transmutar em aparência de
mérito intelectual a recusa de encarar os fatos.
Mas o pior é que, após ter submetido seus leitores a
mais este cansativo show de erudição despropositada,
ele usa da aparência de autoridade assim conquistada para
fazê-los engolir uma mentira grossa, que é, no fim
das contas, a única substância do seu argumento:“O erro dos intuicionistas em geral está em
conceber o ato do conhecimento desconsiderando a anterioridade
de todo este aparato sensitivo.”
Não conheço um só intuicionista que tenha
negado a prioridade dos dados sensíveis como
condição sine qua non do ato intuitivo. Se
algum o fizesse, seria simplesmente louco. Mas não encontro
o menor sinal dessa loucura em Husserl, em Croce, em Zubiri ou em
qualquer outro filósofo classificável, de perto ou
de longe, como “intuicionista”.
A coisa mais fácil do mundo é atribuir a
alguém um erro imaginário idiota e, impugnando o
erro, cantar vitória sobre o infeliz.
O Sr. Silveira faz isso com a maior cara de inocência, como
convém ao consumado ator que ele é.
Para tornar a performance ainda um pouco mais
cínica, a mentira que ele tece contra os intuicionistas
não pretende atingir somente a eles, mas também a
mim. Aí a mera falsificação torna-se
inversão completa, pois, na discussão sobre o copo,
quem, senão eu, lançou à cara dura do Sr.
Silveira o argumento de que não se pode ter a
intuição de um objeto inacessível aos
sentidos? Como poderia eu alegar tal coisa e, ao mesmo tempo,
“conceber o ato do conhecimento desconsiderando a
anterioridade do aparato sensitivo”?
Por mais anestesiado que esteja pela overdose de
erudição tomista que precede a mentira, nenhum
leitor que tenha lido o meu argumento pode deixar de perceber que
o Sr. Silveira aí o inverte para trocá-lo por uma
estupidez de sua própria invenção.
Caso o Sr. Silveira não resista à
tentação de encobrir mais este fato sob novas
argumentações anti-intuicionistas, peço a
todas as almas caridosas que me lêem o obséquio de
avisar a ele que não estou aqui defendendo o intuicionismo
ou qualquer outra teoria, apenas denunciando mais uma mentira.
É matéria de fato, não de doutrina.
4. Pinçando trechos
Ao queixar-se de que fundamentei minha crítica numa
“simples imagem analógica usada em sala à
guisa de exemplo para uma platéia bastante
heterogênea”, o Sr. Silveira insinua que me aproveitei
covardemente de um trecho isolado para desmoralizar a sua
exposição inteira.
Não fiz isso. Um exemplo não é um trecho
isolado: é a continuidade normal de uma
demonstração que, uma vez exposta em termos gerais,
aí se troca em miúdos. É na
formação do exemplo, é na passagem da
língua abstrata para a visualização concreta,
que se comprova se um expositor entende o que ele próprio
diz, se ele sabe do que está falando ou apenas repete
frases como um papagaio.
Não digo que o Sr. Silveira seja um mero repetidor.
Não. Repetir sentenças tomistas é apenas
metade do serviço que ele presta à humanidade. A
outra metade consiste em ler sentenças de outros
filósofos e averiguar se estas conferem com aquelas. Se
não conferem, ele fulmina seus autores com uma
acusação de heresia e vai dormir tranqüilo,
acreditando que ganhou pontos no Juízo Final.
That’s all, folks, como dizia o Pernalonga.
Que duas sentenças filosóficas separadas por
séculos, impressas em livros de gêneros
literários diferentes para ser lidas por públicos
diferentes em atmosferas culturais diferentes não possam
ser comparadas diretamente, requerendo antes a
mediação de um terceiro fator chamado
“realidade”, é algo que nem passa pela
cabeça desse fiscal da ortodoxia alheia, que alia à
rigidez dogmática da Santa Inquisição uma
tacanhice e uma má-fé que não caberia imputar
à maioria dos inquisidores.
A tacanhice, já vimos em que consiste: é reduzir a
atividade pensante à comparação de frases,
sem nenhuma referência à realidade externa ou mesmo
à própria situação de discurso em que
o tacanho procede a essa atividade. A má-fé consiste
em lançar acusações de heresia com base em
meras frases, sem extenso conhecimento das obras do acusado e sem
aquelas meticulosas entrevistas pessoais em que os inquisidores
buscavam distinguir se no texto investigado havia uma
intenção herética formal, cabal, consciente,
ou alguma outra coisa que pudesse passar injustamente por heresia.
E note-se que tomavam esses cuidados numa época em que os
livros de filosofia tinham em geral uma estrutura uniforme e pouca
variação semântica, as sucessivas
questões culminando em conclusões formais – as
“sentenças” – que, em princípio,
podiam ser julgadas em si mesmas, independentemente do
itinerário dialético que a elas conduzira. Ora,
nenhum livro de filosofia moderna é composto assim.
À homogeneidade das Sumas e tratados medievais a
modernidade opôs uma multiplicidade de gêneros
literários e de linguagens pessoais que tornam simplesmente
inviável a comparação frase-a-frase. Desde
Hegel tornou-se um consenso entre os filósofos que uma
tese, uma afirmação filosófica, nada
significa sem o caminho (não só lógico, mas
psicológico e experiencial) que a ela conduz –
preceito que, por si, torna absurdo julgar uma filosofia só
pelas suas “conclusões”, como se fazia no
século XIII, mesmo supondo-se que as frases pinçadas
para exame no tribunal silveiriano sejam realmente
conclusões e não meras etapas de um desenvolvimento
dialético, sem peso autônomo. Um inquisidor, hoje em
dia, teria um trabalho de muitos anos antes de poder chegar a uma
acusação formal de heresia contra um só
filósofo sequer. O Sr. Silveira passa galhardamente por
cima dessa exigência de uma investigação
séria, e nem percebe que enviar pessoas ao inferno mediante
simples cotejo de frases é uma das ocupações
mais demoníacas a que um pretenso católico pode se
entregar.
Mas, na verdade, se as sentenças condenatórias
lavradas pelo Sr. Silveira prescindem de qualquer fundamento para
além da esfera do verbal, do literal e do aparente,
é simplesmente porque ele desconhece – ou odeia, ou
talvez tema como à peste – a existência de
qualquer coisa fora dessa esfera. A persistência obstinada
com que ele se recusa a examinar os fatos e corre para encobri-los
sob rendilhados doutrinais perfeitamente deslocados é a
prova mais patente do
delírio de interpretação que o
acomete – uma radical incapacidade de apreender a
situação concreta e raciocinar com base nela.
Incapacidade que a fuga para a esfera do doutrinário e do
abstrato só camufla aos seus próprios olhos, mas
revela aos de todos os demais.
Daí sua impotência em produzir exemplos do que diz.
Com a maior facilidade ele salta do concreto para o abstrato, mas
não sabe o caminho de volta.
Um exemplo que inadvertidamente impugna a teoria que desejava
comprovar é prova cabal de que o repetidor de generalidades
não domina o assunto, não sabe a quais fatos da
experiência real as generalidades se referem. Se, seguindo
Sto. Tomás, você acredita que não há
apreensão de uma essência sem
apresentação do respectivo objeto aos sentidos,
não pode alegar, como prova de ineficácia da
faculdade intuitiva, que ela não intui o que não
percebe sensivelmente, como se isto fosse um defeito, um
handicap, e não a condição mesma do
exercício da faculdade considerada. Seria o mesmo que
acusar uma vaca de não dar vinho em vez de leite. O exemplo
fornecido pelo Sr. Silveira, querendo demolir as pretensões
da faculdade intuitiva, diz apenas que ela não cumpre o que
não promete, só cumpre o que promete. Mas isso
é falar a favor dela, e não contra. O Sr.
Silveira provou o contrário do que pretendia, e nem
percebeu que alguma coisa deu errado no meio do caminho.
Não espanta que alunos submetidos a esse tratamento
pedagógico terminem incapazes de distinguir entre condutas
legais e criminosas. O Sr. Silveira é o mais erudito
professor de burrice que já encontrei.
Em segundo lugar: se um exemplo não é de maneira
alguma um trecho isolado, alheio ao restante de uma
exposição, é sim trecho isolado a
menção feita de passagem a assunto lateral, sem
importância decisiva – ou mesmo nenhuma – para a
demonstração de uma tese que ele não ilustra
e à qual nada acrescenta. Pois foi exatamente um trecho com
essas características que o Sr. Silveira pinçou no
meu livro
A Nova Era e a Revolução Cultural para
basear nele sua construção imaginária e
difamatória de um Olavo de Carvalho antitomista, inimigo da
tradição católica. Em suma: ele me acusa,
falsamente, de fazer com ele o que ele verdadeiramente fez comigo.
O capítulo do qual ele extraiu o trecho, desde logo,
não era sobre tomismo, neotomismo ou qualquer coisa que se
aparentasse de longe ou de perto a esses dois temas: era sobre a
estratégia comunista de Antonio Gramsci. O conjunto do
argumento visava a demonstrar que o gramscismo, um sistema de
engodos voltado à conquista do poder político por
meios maliciosos, era a base da estratégia dos partidos de
esquerda no Brasil (algo que hoje todo mundo sabe, mas que na
época era novidade absoluta fora dos círculos da
intelligentzia esquerdista). Que é que isso tem a
ver com tomismo? Nada. E o trecho que o Sr. Silveira aí
escolheu era tão isolado, tão distante da
questão central, que vinha entre parênteses. Com o
agravante de que o caçador de frases nem mesmo se serviu do
trecho inteiro: colheu nele um pedacinho, um pedacinho só.
Vejam – o trecho que ele usou vem em maiúsculas, para
melhor distinção:
“Nos três [marxismo, positivismo, neotomismo], as
idéias, as teorias, não têm um valor
intrínseco mas servem apenas como retaguardas
psicológicas da ação prática. Os
três não querem interpretar o mundo, mas
transformá-lo. ( Cabe uma ressalva com
relação ao neotomismo: NÃO CONFUNDI-LO COM O
TOMISMO, SE POR ESTA PALAVRA SE ENTENDE A FILOSOFIA DE STO.
TOMÁS DE AQUINO. O TOMISMO É FILOSOFIA NO SENTIDO
PLENO; O NEOTOMISMO É, AO CONTRÁRIO, UM MOVIMENTO
CULTURAL E POLÍTICO — IDEOLÓGICO, EM SUMA
— VOTADO À DIFUSÃO DESSA FILOSOFIA, TOMADA
COMO SOLUÇÃO PRONTA DE TODOS OS PROBLEMAS E,
PORTANTO, ESVAZIADA DE BOA PARTE DE SUA SUBSTÂNCIA
FILOSÓFICA. Afinal, tudo o que é neo-alguma-coisa
é, por definição, apenas uma nova casca da
qual essa coisa é o miolo.)”
Nada, nesse trecho, mesmo recortado e extraído do contexto,
autorizava insinuar que, com o termo “neotomismo” eu
me referisse a filósofos tomistas muito anteriores à
eclosão desse movimento em 1879. O Sr. Silveira fez essa
extrapolação porque quis, porque isso lhe dava a
ocasião de me pintar como um inimigo da
tradição, um inimigo da Igreja.
Se entre o neotomismo e aquilo que o antecedia na ordem do tempo
eu fazia a analogia da nova casca e do miolo antigo, enaltecendo a
este na mesma medida em que depreciava aquela, é
óbvio que não era possível que estivesse
metendo no mesmo saco miolo e casca, a nova aparência e a
velha substância. Espertamente, o Sr. Silveira amputou a
frase final, para dar a impressão de que eu fazia
precisamente isso.
Não é preciso dizer que a referência ao
neotomismo, feita de raspão, nem ilustrava nem tentava
demonstrar a tese central do capítulo, apenas lhe
acrescentava, a título de curiosidade, um detalhe marginal
que não tinha com ela a relação
intrínseca de exemplo e tese que o copo do Sr. Silveira
tinha com o seu argumento anti-intuicionista.
O trecho que o Sr. Silveira recortou para com base nele construir
um Olavo de Carvalho à imagem e semelhança da sua
fantasia difamatória foi um pedaço de um trecho
entre parênteses sobre assunto alheio à tese central
do livro.
Ninguém faz isso com intenção honesta.
Não que o Sr. Silveira pratique desonestidade consciente.
Nem que ele ignore os conceitos do honesto e desonesto. Ao
contrário: ele leu tudo o que havia para ler a respeito na
bibliografia tomista e pode dar aulas inteiras sobre filosofia
moral. Só há um problema: para discernir o honesto e
o desonesto, não em si mesmos e em teoria, mas na
situação concreta, é preciso ter
sensibilidade para os fatos – precisamente o que mais falta
na fórmula cerebral do Sr. Silveira. Daí a boa
consciência com que se entrega à prática da
difamação, da mentira, da intriga e das
acusações levianas. Ele só sabe o que
lê, não o que faz.
5. A culpa é da
platéia
Pensam que a coisa parou por aí? Que nada. Para insinuar
que cobrei indevidamente ao seu malfadado exemplo mais
precisão do que era cabível na
situação de discurso (como se eu o tivesse acusado
de mera imprecisão e não de um cabeludíssimo
contrasenso lógico), o Sr. Silveira alega que o exemplo do
copo foi feito ante “uma platéia bastante
heterogênea”. Heterogênea em que sentido? A
platéia que vai a um curso de filosofia tomista pode ser
variada na sua composição sociológica e no
nível de instrução, mas é
manifestamente homogênea no seu interesse em aprender algo
da filosofia tomista. Será descabido, extemporâneo,
deslocado da situação pedir que, nessas
circunstâncias, o expositor se abstenha de dar exemplos
catastróficos que só ilustram o contrário do
que a filosofia tomista ensina?
Um contrasenso não é falta de precisão,
é falta de lógica e falta de compreensão
concreta do assunto explicado. Nenhuma heterogeneidade da
platéia pode levar a culpa disso.
Imprecisão, sim, cometi eu quando falei mal do neotomismo
em bloco, sem distinguir nele o joio e o trigo. Não me
justifico, mas me explico, ao dizer que escrevia para um
público voltado sobretudo à atualidade
política, sem nenhum interesse nas divergências
internas de uma escola filosófica da qual só
conhecia, se tanto, o nome de um único representante:
Jacques Maritain, que exercera alguma influência
política no Brasil, chegando a inspirar a
criação de um partido, o hoje extinto Partido
Democrata Cristão. Dando assim por pressuposto, com muita
razão, que o termo “neotomismo” não
evocaria na platéia senão esse nome e essa vertente
em particular, abdiquei de maiores precisões e toquei em
frente a exposição do tema central, perfeitamente
alheio a essas sutilezas. Eu não poderia jamais imaginar
que, dezoito anos mais tarde, um engraçadinho, para dar a
impressão de que eu combatia não os maritainianos em
especial mas a tradição católica inteira,
iria ampliar desmesuradamente o sentido do termo para
fazê-lo designar, não só todos os membros
daquela escola, o que já seria um exagero, mas autores que
tinham vivido três, quatro ou sete séculos antes do
seu surgimento.
Se fosse necessário provar que eu nada tinha não
só contra esses autores, mas nem mesmo contra outros
neotomistas, imunes à influência de Maritain, basta
lembrar que o curso
Introdução à Vida Intelectual, por
mim proferido desde 1987, que depois se transformou no atual
Seminário de Filosofia, era e é
declaradamente inspirado no livro La Vie Intellectuelle,
de A. D. Sertillanges, e que nele se consagravam e se consagram
muitas semanas de estudo a textos de dois outros destacados
filósofos neotomistas, André Marc e Joseph
Maréchal. Apenas, ao escrever para um público que
não se compunha de alunos meus nem de estudiosos de
filosofia – muito menos de filosofia tomista –,
não me pareceu errado passar por cima desses detalhes e
usar o termo “neotomismo” no único sentido
imediato que ele podia ter para aquele público.
Ou seja: ao apelar à “heterogeneidade da
platéia”, mais uma vez o Sr. Silveira inverte os
dados da situação, usando indevidamente em seu favor
um argumento que não se aplica ao caso dele e sim ao de
quem ele ataca.
6. Em busca de uma
explicação
Se me perguntam, agora, por que um cidadão que se diz
empenhado em restaurar as grandes verdades da doutrina mostra
tanto desprezo pelas humildes verdades de fato, pisoteando a
máxima tomista de que
contra factum non argumentum est, respondo, desde logo,
que o doutrinarismo abstrato, com o inevitável estilo
magisterial grotesco que lhe serve de expressão verbal,
é doença crônica de uma cultura
subdesenvolvida, onde as grandes correntes do pensamento mundial
só aportam na condição de signos de
prestígio e autoridade, desprovidas da função
existencial genuína que tinham na origem.
O doutrinarismo é, nesse ambiente, o
pendant infalível do nativismo bárbaro que
se compraz no culto de idiossincrasias e miudezas locais, tomadas,
pelo simples fato de serem locais, como valores eternos e
sacrossantos. Num país onde o “samba do
Recôncavo Baiano” é reconhecido por decreto do
governo como “um valor universal”, equivalente
portanto à Catedral de Chartres, ao Taj-Mahal ou às
cantatas de Bach, e onde Chico Buarque de Holanda chegou a ser
enaltecido como artista das dimensões de Michelangelo
Buonarotti, não é de espantar que, do outro lado da
escala, numa tentativa canhestra e desesperada de fugir à
mesquinharia circundante, as grandes teorias, as
proposições universais abstratas sejam veneradas
como fetiches, repetidas como fórmulas sagradas que pairam
acima da realidade sem jamais tocá-la, para não se
sujar.
O Sr. Silveira, nesse sentido, é como tantos outros uma
pobre vítima da atmosfera cultural miserável da qual
buscou evadir-se por um salto direto para as verdades eternas, sem
passar por aquele extenuante e demorado corpo-a-corpo da
inteligência com a confusão das realidades imediatas,
que é a condição sine qua non da
formação de um intelectual sério.
A simples rapidez com que, convertido ao catolicismo aos 39 anos
de idade, aos quarenta e poucos já posava de
abalizadíssimo impugnador de heréticos antes mesmo
de ter aprendido a examinar criticamente a moralidade dos seus
próprios atos mais públicos e vistosos, basta para
revelar nele um descompasso fatal entre a aquisição
de cultura teológico-filosófica e a
formação da personalidade, donde resulta a gritante
falta de nexo entre suas idéias gerais e sua
percepção dos fatos.
Decerto, o mal do Sr. Silveira não pode ser imputado
só a ele como indivíduo singular, sendo, como de
fato é, um pouco o mal de todos nós, brasileiros.
Todos, reagindo à turva confusão de uma sociedade
cujo desenho de conjunto nos escapa e na qual nos movemos sem rumo
como destroços num mar revolto, temos a
tentação de apegar-nos a fórmulas abstratas
para escapar ao exame daquilo que desnorteia e humilha a nossa
inteligência. Vivemos como os homens dos tempos primitivos,
que, segundo a brilhante análise de Wilhelm Worringer, se
apegavam às formas puras da arte geométrica para
fugir ao terror da selva informe e indomável.
Quando as fórmulas que escolhemos como tábuas de
salvação se revelam logo manifestamente falsas, como
o marxismo, a psicanálise ou a Nova Era, o dom divino das
decepções repetidas amadurece o nosso
espírito e nos prepara para a verdadeira vida intelectual,
que começa ao compreendermos o adágio tomista de que
veritas filia temporis, a verdade é filha do
tempo.
Quando, porém, a fórmula que vem parar nas nossas
mãos é precisamente a da verdade das verdades, a do
próprio Verbo Divino Encarnado, então, meus filhos,
a tentação de usá-la como defesa contra a
realidade dos fatos é ainda mais forte e quase
invencível, porque aí já não cabe
decepcionar-nos com ela e sim apenas conosco mesmos, com o mau uso
que fizemos do que havia de mais belo, genuíno e precioso;
aí já não podemos dizer que fomos enganados,
mas apenas que nos enganamos a nós mesmos, que
prostituímos o depósito sagrado ao usá-lo
como instrumento de alienação, como carapaça
de proteção de uma falsa auto-imagem.
Entre o auto-engano da alma cristã embriagada de
ilusão magisterial e o engano intelectual vulgar, a
relação é a mesma que Agostinho via entre o
orgulho e os demais pecados capitais: estes se apegam ao mal, para
que se realize; aquele se apega ao bem, para que pereça.