Em 2007, quando comecei a colaborar com a revista
Atlântico, de Lisboa, fiz uma lista de pessoas do Brasil
que eu gostaria de apresentar aos portugueses leitores da
revista. Era uma forma de restabelecer uma
aproximação cultural entre os dois países
que não se limitasse à esfera diplomática
e governamental.
O primeiro entrevistado foi
Diogo Mainardi. O segundo,
Reinaldo Azevedo. O terceiro, Olavo de Carvalho, cuja conversa, feita por
e-mail, reproduzo hoje integralmente. Por questões de
espaço, a revista publicou uma parte pequena, embora
substancial, da entrevista (o quarto entrevistado foi
Nelson Ascher). Antes, porém, algumas considerações.
Considero Olavo um dos grandes responsáveis por reabrir
na imprensa e na vida intelectual um espaço de debate
que no Brasil já era tido como morto, enterrado,
goodbye, so long, farewell. Foi nos anos de 1990 que o
filósofo brasileiro inaugurou uma nova fase na
filosofia e na discussão político-cultural em
Terras de Vera Cruz.
Sua faceta notavelmente provocadora é apenas uma das
pontas de um trabalho criativo de pesquisa e reflexão
que não vejo similar no âmbito do debate
público. Ao lançar obras filosóficas da
envergadura de
Aristóteles em nova perspectiva e
O Jardim das Aflições.
De Epicuro à Ressurreição de
César, entre outras, imprimiu no pensamento filosófico
brasileiro um rumo completamente diverso da
dominação doutrinária impingida pelos
autoproclamados filósofos que eram (e são),
apenas, professores universitários ligados à
esquerda, de forma consciente ou não. No Brasil, a
revolução gramsciana foi tão bem
executada na educação, artes e meios de
comunicação que a maior parte da
população assimilou o espírito degenerado
do esquerdismo sem sequer saber que fora estrategicamente
convertida em inocente útil da causa.
Mediante aulas, cursos e divulgação de
idéias pelos jornais, revistas, site e talkradio (www.olavodecarvalho.org), Olavo segue com seu trabalho abnegado de construir um
pensamento original e tentar formar uma elite intelectual. Uma
rápida googlada dá uma idéia, embora
pálida, do efeito explosivo que esse trabalho vem
provocando desde a década de 1990. Aos 60 anos, o
filósofo mora com a família desde 2005 em
Richmond, Estados Unidos, onde desenvolve seus estudos,
principalmente, sobre a mente revolucionária e a
paralaxe cognitiva, e trabalha como colunista do Diário
do Commércio (SP) e Jornal do Brasil.
Olavo aceitou gentilmente responder algumas perguntas para a
revista Atlântico, respostas essas que divido com vocês, não sem
antes fazer um agradecimento especial à Roxane Andrade,
mulher do filósofo, pessoa extraordinária e
gentil que tenho a honra de ter como amiga. À
entrevista:
O que é e há quanto tempo, Olavo, você
desenvolve os estudos sobre a mentalidade
revolucionária?
É uma longa história. Esse estudo surgiu da
confluência mais ou menos acidental de duas
investigações independentes que eu vinha
desenvolvendo desde os anos 80. A primeira diz respeito
às definições de direita e esquerda. Por
um lado, havia uma tendência, na mídia e nos
debates públicos em geral, de minimizar ou até
negar explicitamente a diferença entre direita e
esquerda. Essa tendência tornou-se ainda mais forte
depois da queda da URSS. Por outro lado, a esquerda assumia
cada vez mais orgulhosamente sua identidade de esquerda, ao
mesmo tempo em que a sua influência política se
tornava cada vez mais dominante. A direita, por seu lado, se
encolhia numa timidez abjeta, negando sua própria
existência, escondendo-se sob o rótulo de
"centro" e copiando cada vez mais o
vocabulário e a forma mentis da esquerda. Era claro que
aí havia um problema, principalmente porque os mais
obstinados negadores da diferença entre esquerda e
direita eram provenientes da direita. O problema colocava-se
portanto em dois níveis. Primeiro, o empenho de
dissolver as diferenças entre dois discursos
ideológicos não impedia que pelo menos uma das
forças políticas correspondentes continuasse
existindo historicamente como força atuante e
perfeitamente identificável. Segundo: se a
negação da diferença tencionava esvaziar
a esquerda, diluindo a força atrativa do comunismo num
vago e inofensivo "progressismo", foi a
própria direita que por meio desse artifício
acabou se tornando vaga e inofensiva. Se era assim, era claro
que havia um desnível entre a discussão
pública e as forças políticas reais por
baixo dela. A pergunta que surgia era: Em que consistem a
direita e a esquerda como forças históricas
objetivas, para além de seus respectivos discursos de
autodefinição ideológica? Logo tornou-se
claro que era impossível definir direita e esquerda em
função de seus objetivos proclamados, que
não só eram mutáveis, mas
intercambiáveis.
E o que fez para avançar na
investigação?
A idéia que me ocorreu então foi atacar o
problema num nível mais profundo, buscando
diferenças estruturais de percepção da
realidade, das quais os sucessivos discursos historicamente
registrados como de direita e esquerda pudessem se desenvolver
com toda a sua variedade interna alucinante, sem
prejuízo das estruturas básicas. Se eu
conseguisse descobrir essas duas estruturas permanentes, a
direita e a esquerda estariam delineadas por diferenças
objetivas para muito além do horizonte de
consciência dos indivíduos e
organizações que personificavam essas correntes.
Descobri várias dessas diferenças. A principal
é a diferença na percepção do
tempo histórico. A esquerda – toda a esquerda,
sem exceção – enxerga o tempo
histórico às avessas: supõe um futuro
hipotético e o toma como premissa fundante da
compreensão do passado. Em seguida, usa essa
inversão como princípio legitimador das suas
ações no presente. Como o futuro
hipotético permanece sempre futuro, e por isso mesmo
sempre hipotético, toda certeza alegada pelo movimento
esquerdista num dado momento pode ser mudada ou invertida no
momento seguinte, sem prejuízo, seja da continuidade do
movimento, seja do sentimento de coerência por baixo das
mais alucinantes incoerências.
Somando a isso a descoberta de Jules Monnerot de que a cada
geração é a esquerda quem aponta e
delimita a direita, nomeando como tal aqueles que lhe
resistem, a direita aparecia portanto como o conjunto daqueles
que, por mil motivos variados, resistem à
inversão da razão histórica. Podem
fazê-lo, por exemplo, por ser cristãos e
acreditar que o "fim da história" é
uma passagem para a eternidade e não um capítulo
da história profana. Mas podem fazê-lo
também por ser ateus de mentalidade científica
que preferem moldar as hipóteses segundo os fatos e
não alterar os fatos conforme as hipóteses. A
segunda investigação foi da "paralaxe
cognitiva".
O que é a paralaxe cognitiva?
Assim denomino o deslocamento, às vezes radical, entre
o eixo da construção teórica de um
pensador e o eixo da sua experiência humana real, tal
como ele mesmo a relata ou tal como a conhecemos por outras
fontes fidedignas. Raro e excepcional na antigüidade e na
Idade Média, esse deslocamento começa a aparecer
com freqüência cada vez mais notável a
partir do século XVI, dando a algumas das filosofias
modernas a aparência cômica de
gesticulações sonambúlicas totalmente
alheias ao ambiente real em que se desenvolvem. Um exemplo
claro é a teoria de Kant sobre a incognoscibilidade da
"coisa em si". Se não conhecemos a
substância das coisas materiais, mas somente a sua
aparência fenomênica, que esperança podemos
ter de atingir um dia, a partir de indícios materiais,
isto é, letras impressas numa folha de papel, a
substância da filosofia de Immanuel Kant? Certamente o
filósofo de Koenigsberg não se contentaria se
apreendêssemos somente a aparência
fenomênica da sua filosofia, a qual filosofia, nesse
sentido, é radicalmente incompatível com o ato
de escrever livros – e olhem que Kant os escreveu em
profusão. Por mais coerente que seja consigo mesma, a
filosofia de Kant é incoerente com a sua própria
existência de obra publicada.
Outro exemplo: Karl Marx diz que só o proletariado pode
apreender o movimento real da história, porque as
classes que o precedem vivem aprisionadas na fantasia
subjetiva das suas respectivas ideologias de classe. Mas, se
é assim, por que o primeiro a perceber isso e a
apreender o movimento alegadamente real da história foi
o próprio Karl Marx, que não era
proletário, não tinha nenhuma experiência
da vida proletária e até a idade madura
só conhecia os proletários por meio de leituras?
Ou a ideologia de classe é inerente à
posição social real do sujeito, ou é de
livre escolha independentemente da posição
social, mas neste último caso não é
ideologia de classe de maneira alguma e sim apenas ideologia
pessoal projetada ex post facto sobre uma classe,
também de livre escolha. Os exemplos desse tipo
são tantos que não espero jamais poder chegar a
recensear senão uma amostragem ínfima deles.
Inevitavelmente, a semelhança estrutural entre a
paralaxe cognitiva e a inversão do tempo tinha de se
tornar clara um dia, por mais lerda que fosse a minha
cabeça.
Como conseguiu?
Substituí, no meu estudo, os termos
"esquerda" e "direita" pelos de
"revolução" e
"reação". Daí para diante, foi
ficando cada vez mais evidente para mim a unidade
histórica do movimento revolucionário desde as
rebeliões messiânicas estudadas por Norman Cohn
em The Pursuit of the Millennium até o Fórum
Social Mundial. E aí foi que se tornou também
claro, mesmo para o meu cérebro cansado e obscurecido,
o centro da confusão entre os termos direita e esquerda
– porque muitos movimentos tidos popularmente como
"de direita" operavam, de fato, na clave
revolucionária e não reacionária. De uma
maneira ou de outra, esses movimentos acabavam jogando lenha
na fogueira da revolução, e trabalhando,
portanto, contra seus próprios ideais declarados.
Captar e descrever a unidade do movimento
revolucionário é desenhar claramente, perante os
olhos dos homens "de direita", a verdadeira natureza
do seu inimigo permanente. É desfazer uma infinidade de
confusões catastróficas, que determinaram, ao
longo do tempo, outras tantas políticas suicidas. Se eu
conseguir lançar nesse matagal toda a claridade que
pretendo, creio que terei feito alguma coisa de útil,
pelo menos para dar a Nosso Senhor Jesus Cristo um pretexto
que ele possa alegar em minha defesa no Juízo Final.
A partir de qual momento e o que o levou a desenvolver o
estudo da paralaxe cognitiva?
É outra história comprida, que vou abreviar
dizendo que foi sobretudo uma motivação de ordem
moral. Erneste Renan dizia que não conseguia pensar se
não tivesse a garantia de que suas idéias
não teriam a menor conseqüência no mundo
real. Essa atitude sempre me inspirou horror. A cada frase que
eu dizia em aula, sempre me ocorriam as perguntas: Até
que ponto eu acredito mesmo nisso? E que direito tenho eu de
persuadir os outros de alguma coisa em que eu mesmo não
sei se acredito ou não? Não sei quando me
ocorreu a idéia de fazer essas perguntas não
só a mim mesmo, mas aos filósofos que eu lia.
René Descartes, por exemplo, jura que a
seqüência das suas "Meditações
de Filosofia Primeira" não é um mero
raciocínio, mas o relato de uma experiência real.
Examinando essa experiência, notei que ela era
psicologicamente impossível, exceto como
dedução hipotética. Ou seja: Descartes
tomava como sua história interior real o que era apenas
uma construção lógica, confundindo o seu
eu pessoal histórico com o eu filosófico
abstrato. Isso tinha a estrutura exata de um fingimento
histérico ou, se levado às últimas
conseqüências, de um delírio
esquizofrênico. Creio ter demonstrado isso em duas
apostilas que vocês podem ler no meu website. Não
é estranho nesse sentido que, ao expor suas teorias
sobre a estrutura do mundo físico, isto é, sobre
aquilo que pode haver de menos subjetivo, sobretudo no
próprio sentido cartesiano da res extensa, ele tenha
escolhido fazê-lo sob a forma de uma obra de
ficção, o "Tratado do Mundo". E isso
justamente numa época em que o teatro como
metáfora da realidade universal se tornava moda
literária na Europa. A física de Descartes,
afinal, era um conjunto de afirmações sobre a
realidade objetiva, ou uma fantasia teatral? Descartes
não o sabia, e eu muito menos.
À medida que fui descobrindo novos e novos exemplos
desse fenômeno, acabei concluindo que quase toda a
filosofia moderna se omitia de uma tomada de
posição responsável que permitisse saber
até que ponto seus criadores a levavam a sério
como ciência objetiva ou apenas se deleitavam nela como
num espetáculo de teatro. Quando chegamos a Nietzsche,
a impossibilidade de decidir por uma coisa ou outra se torna
total e invencível. Jamais saberemos "o que
Nietzsche quis dizer precisamente", pois toda sua obra
é um convite à indistinção entre
fantasia e realidade.
Já o mesmo não se pode dizer da filosofia de um
Leibniz, de um Schelling (na velhice ao menos), de um Husserl
ou de um Eric Voegelin. Esses estão tentando falar
mortalmente a sério, mesmo quando erram. A
exploração dessa diferença é que
resultou na tese da paralaxe cognitiva.
De que modo age social e politicamente o portador da mente
revolucionária e de que forma é
possível combatê-la?
A mentalidade revolucionária não é
só inversão do tempo: é inversão
das relações lógicas de sujeito e objeto,
dos nexos de causa e efeito, da relação entre
criminoso e vítima, etc. Uma boa parte do meu estudo
é dedicado ao recenseamento dessas inversões,
psicóticas no sentido clínico mais estrito do
termo. Elas são a essência do movimento
revolucionário, mas essa essência pode se
manifestar sob uma impressionante variedade de formas.
É por isso que o movimento revolucionário
não pode ser definido nem pelo conteúdo concreto
dos seus objetivos declarados a cada momento, nem pelo
discurso ideológico com que os legitima. É
preciso sempre buscar, sob a variedade dessas
aparências, a resposta à pergunta: Tal ou qual
movimento político ou cultural, nas
circunstâncias precisas em que atua, impõe ou
não impõe a seus militantes e simpatizantes
aquele pacote de percepções invertidas? Se a
resposta é "sim", então torna-se claro
que se trata de um movimento inserido na corrente
revolucionária. Se ele tem mais consciência ou
menos consciência disso, é perfeitamente
irrelevante para os resultados históricos objetivos que
ele vai desencadear necessariamente por meio da
inversão da consciência de
populações inteiras.
Se o oposto de revolução é
"reação" ou
"conservadorismo", um reacionarismo ou
conservadorismo consciente não atacará o
movimento revolucionário apenas na superfície
dos seus ideais proclamados ou da sua conduta política
ostensiva, mas na base mesma, que é a inversão
revolucionária da consciência e das
consciências. Como todo movimento revolucionário
se arroga o papel de representante do futuro, ele só
responde perante o tribunal do futuro, mas como esse futuro,
por definição, é móvel, o seu
autonomeado representante no presente não tem jamais de
responder perante ninguém. A mentalidade
revolucionária é, na base, a
reivindicação de uma autoridade ilimitada, de um
poder divino. As pretensões explícitas de tal ou
qual líder revolucionário podem até
parecer modestas e sensatas na formulação verbal
que ele lhes dê no momento, mas no fundo delas
está sempre essa reivindicação, essa
exigência implícita. Os movimentos
revolucionários não criaram as grandes ditaduras
genocidas do século XX por um desvio dos seus belos
ideais ou por um acidente histórico qualquer. Eles as
criaram por necessidade intrínseca da própria
dialética revolucionária, que sempre
terminará em totalitarismo sangrento, seja por um
caminho, seja por outro caminho aparentemente inverso.
É nesse ponto, precisamente, que a mentalidade
revolucionária tem de ser atacada de maneira
implacável e incansável: ela é
demência megalômana na sua essência mesma.
Ela nunca pode produzir nada de bom. Ela é a mentira
existencial mais vasta e profunda que já infectou a
alma humana desde o início dos tempos. Ela é
crime e maldade desde a sua raiz mesma – e é essa
raiz que tem de ser cortada, não as
ramificações mais aparentes apenas.
A boa notícia é que o movimento
revolucionário não é uma constante na
história humana. Ele apareceu numa dada
civilização e num dado momento do tempo. Ele
teve um começo e terá um fim. Apressar esse fim
é o dever de todos os homens de bem.
Qual o reflexo do desenvolvimento da mentalidade
revolucionária sem uma devida
reação?
O principal e mais desastroso reflexo é que o
próprio impulso conservador, um dos mais básicos
e mais saudáveis da humanidade, acaba por não
ter meios próprios de expressão e por copiar as
estratégias e táticas revolucionárias,
infectando-se da mentalidade que desejaria combater. Só
para dar um exemplo, quando você rejeita alguma proposta
revolucionária, logo lhe perguntam: "Mas o que
você propõe em lugar disso?" Aí o
conservador começa a inventar hipotéticas
soluções conservadoras para todos os problemas
humanos, e perde a autoridade da prudência, passando a
discursar na clave psicótica das "propostas de
sociedade". Ser conservador é não ter
nenhuma proposta de sociedade, é aceitar que a
própria sociedade presente vá encontrando pouco
a pouco a solução para cada um dos seus males
sem jamais perder de vista o fato de que, para cada novo mal
que seja vencido, novos males aparecerão. Ser
conservador é não ser jamais o portador de um
futuro radiante, é ser o porta-voz da prudência e
da sabedoria. Ser um conservador é saber que os limites
da capacidade humana não desaparecerão só
porque Lênin mandou ou porque Trotski disse que no
socialismo cada varredor de rua será um novo Leonardo
da Vinci.
Seus estudos mostram como operou a mentalidade
revolucionária em Portugal?
Para responder a essa pergunta seria preciso sondar mais
cuidadosamente o antigo regime. O salazarismo foi uma estranha
mistura de conservadorismo cristão com elementos
extraídos do fascismo, o qual é sem a menor
sombra de dúvida uma ideologia revolucionária. A
característica das ideologias revolucionárias
é ter um "projeto de sociedade", em vez de
respeitar a sociedade existente e tentar
aperfeiçoá-la na medida modesta das
possibilidades humanas e com a cautela que a prudência
recomenda.
Qualquer nação que tenha se infectado
profundamente da mentalidade revolucionária e tenha
dado aos seus valores conservadores uma
formulação política revolucionária
corre o risco de estar sempre à mercê de novos
projetos revolucionários, pelo simples fato de que
perdeu de vista a noção de "ordem
espontânea", que é a essência mesma da
democracia e do conservadorismo. Que é ordem
espontânea? É o conjunto de
soluções aprendidas ao longo do tempo. É
uma ordem espontânea porque não foi imposta por
ninguém. É ordem porque tem um senso arraigado
da própria integridade e rejeita instintivamente toda
mudança radical. Mas é também
aprendizado, isto é, absorção criativa
das situações novas por um conjunto que
permanece conscientemente idêntico a si mesmo ao longo
dos tempos por meio de símbolos tradicionais
constantemente readaptados para abranger novos significados.
Examinem bem e verão que ordem democrática
é precisamente isso e nada mais. Se, ao
contrário, um grupo imbuído do amor a valores
tradicionais tenta deter a mudança, ele está
introduzindo na ordem espontânea uma mudança
tão radical quanto o grupo revolucionário que
deseja virar tudo de pernas para o ar, pois o que esse alegado
conservadorismo deseja é imortalizar no ar um momento
estático de perfeição hipotética.
Se esse momento, na imaginação dele, expressa os
valores do passado, isso não vem ao caso, porque na
prática política esse ideal será um
"projeto de futuro" tanto quanto o ideal
revolucionário. Uma sociedade só embarca no
projeto revolucionário quando perdeu todo o respeito
por si mesma. Um respeito que, entre outras coisas, implica o
amor aos valores do passado como instrumentos de
compreensão e ação no presente,
não como símbolos estereotipados de uma
perfeição ideal no céu das utopias.
E onde entra o salazarismo nesse história?
Não tenho a menor dúvida de que Antonio de
Oliveira Salazar foi um homem honesto e um grande
administrador. Mas o salazarismo foi infectado da mesma
ambição de controle burocrático total que
é característica do movimento
revolucionário. Quatro décadas desse regime, e
Portugal não tinha mais conservadores genuínos
em número suficiente. Os poucos que havia fizeram um
esforço heróico para dar à
nação a verdadeira estabilidade
democrática, mas a ânsia das
soluções totais estava, por assim dizer, no ar
— e, dissolvido o salazarismo, só quem podia
tirar proveito dela era a esquerda.
Não desejo dar palpites na política interna de
um país que da minha parte só merece aquele amor
cheio de reverência que a gente tem por um avô
navegante e guerreiro. Não levem a mal essa minha
análise, que é só um esboço sem
pretensões. Espero um dia poder estudar mais
profundamente a história de Portugal e tirar um pouco
das minhas dúvidas.
Há alguma particularidade sobre o que houve
aqui?
Há algo de trágico na história de
Portugal, pois os filósofos escolásticos
portugueses foram os primeiros a compreender a verdadeira
natureza do capitalismo, séculos antes de Adam Smith,
mas, quando se inaugurou a temporada de caça aos
escolásticos, com o iluminismo, ela não trouxe
consigo a modernização capitalista, e sim um
burocratismo centralizador sufocante. Por uma triste ironia,
os adversários do centralismo pombalino eram os
jesuítas, eles também revolucionários,
que sonhavam com uma república socialista de
índios na América do Sul. Posso estar enganado,
mas o drama de Portugal é o mesmo de "A Montanha
Mágica" de Thomas Mann: um jovem bom e promissor
aprisionado entre dois falsos gurus: um iluminista
autoritário com discurso modernizador e um
jesuíta comunista.
E no Brasil?
O que em Portugal foi tragédia, no Brasil é uma
palhaçada sangrenta. Se os portugueses têm uma
consciência aguda da sua própria história
e constantemente se interrogam sobre o seu passado, os
brasileiros não conseguem se lembrar nem do que
aconteceu quinze dias atrás, e não aprendem
nada, absolutamente nada, com a experiência
histórica. Mesmo porque não querem saber dela.
Se não querem saber nem do presente, como vão
entender o passado? O exemplo mais deprimente do desprezo
brasileiro pelo conhecimento – e não digo do
conhecimento superior, mas do simples conhecimento dos fatos
da atualidade – foi a obstinada recusa geral de tomar
ciência de um fenômeno chamado "Foro de
São Paulo". Coordenação
estratégica do movimento comunista no continente,
reunindo em seu seio partidos legais em pé de igualdade
com organizações de terroristas e
narcotraficantes, o Foro é a mais poderosa
organização política que já
existiu na América Latina. Tudo o que todos os partidos
de esquerda, armados e desarmados, fizeram ao longo dos
últimos dezessete anos foi ali tramado e decidido. E
durante esses dezessete anos toda a mídia brasileira,
todo o establishment acadêmico, toda a classe
política, todo o empresariado, todos os formadores de
opinião se recusaram obstinadamente a ouvir falar do
assunto. É um fenômeno inédito,
único na história da estupidez universal.
É claro que uma opinião pública formada
sob a influência dessa casta de jumentos não pode
ter nenhuma visão da realidade. Vive de sonhos, de
desconversas, de tagarelice oca e dispersão de suas
melhores energias em esforços vãos para resolver
problemas não raro inexistentes, enquanto à sua
volta o caos e a violência vão tomando conta de
tudo e ninguém sequer se dá conta de que,
através do Foro de São Paulo, os
narcotraficantes e terroristas já estão no
poder. A proposta revolucionária é, para o
brasileiro de hoje em dia, o substitutivo completo e
satisfatório da realidade. Nas últimas
décadas, à medida mesma que aquela entidade
invisível dominava o continente inteiro com seu segredo
de Polichinelo, a cultura superior era totalmente
destruída no Brasil, nossas crianças tiravam
sempre os últimos lugares nos testes internacionais e a
violência crescia até chegar aos cinqüenta
mil homicídios por ano – mais ou menos duas
guerras do Iraque. Já tive muita pena dos meus
conterrâneos, agora não tenho mais. Eles fizeram
uma opção preferencial pela ignorância.
Seu sofrimento não é injusto.
Você tem sido um crítico do liberalismo e,
concomitantemente, um defensor do conservadorismo. Esse
conservadorismo que você defende é
herança do moderno modelo inglês inaugurado por
Edmund Burke?
Eu não diria só inglês, mas
anglo-americano. A Inglaterra e os EUA foram os países
do Ocidente que mais profundamente se impregnaram do
sentimento de respeito pelas tradições, o qual
no fim das contas é respeito pelo povo. É
verdade que mesmo nesses dois países os planejadores
alucinados de sociedades perfeitas estão tentando, e
com freqüência conseguindo, destruir esse
sentimento. Não sei em que medida os ingleses percebem
o mal revolucionário que os vem acometendo nos
últimos anos, mas os americanos estão
acordadíssimos. Ainda que sem uma clareza suficiente
quanto à unidade histórica do movimento
revolucionário, os conservadores americanos sabem mais
ou menos onde está o mal. E, o que é melhor
ainda, pouquíssimos dentre eles se deixam levar pela
tentação do que poderíamos chamar de
"conservadorismo revolucionário". Eles nunca
leram o brasileiro Jackson de Figueiredo, mas se o lessem
endossariam com entusiasmo esta fórmula dele: "O
de que precisamos não é uma
contra-revolução. É o contrário de
uma revolução".
Quais as principais virtudes do conservadorismo?
A autoconservação é a necessidade
básica dos seres vivos. A própria capacidade de
crescimento, desenvolvimento e adaptação a novas
circunstâncias não é senão o
instinto de autoconservação visto sob seu
aspecto ativo e – nos seres humanos – criativo.
Goethe dizia que aquele que sabe guardar, proteger e conservar
terá sempre, no fim, a melhor parte. (Goethe é,
aliás, um dos grandes pensadores do conservadorismo,
tão grande quanto Burke. Shakespeare é outro,
como também Dante, Balzac e Dostoievski.)
Veja um exemplo: quando você aprende uma língua,
o que é mais importante, adquirir novas palavras ou
conservar as velhas na memória? As novas só
fazem sentido em função das velhas, mas estas
são úteis em si mesmas, ainda que você
não lhes acrescente mais nenhuma. Todo desenvolvimento
deve buscar em primeiro lugar a conservação dos
bens adquiridos, e só em segundo lugar a conquista de
novos bens. Jean Fourastié observava que, se ao lado da
história dos progressos do conhecimento
fizéssemos também a história da
ignorância, o recenseamento e reconquista dos
conhecimentos perdidos, o progresso seria muito maior.
Para aumentar o patrimônio é preciso antes
possuí-lo e conservá-lo. Antes de poder
começar a desenvolver-se por sua própria
iniciativa, uma criança tem de ser cuidada, protegida,
conservada por vários anos. Assim também a
sociedade. A riqueza e a cultura perdem-se com uma facilidade
impressionante, e as perdas maiores ocorrem sobretudo quando
das mutações revolucionárias. Não
é coincidência que nenhum regime tenha conseguido
matar de fome tanta gente — e com tanta velocidade
— quanto os regimes revolucionários que alegam
acabar com a fome. Para acabar com a fome, a
condição número um é não
fazer uma revolução, não destruir bens,
não criar a desordem geral por meio da
implantação forçada de uma nova ordem
— mesmo que essa nova ordem seja nominalmente inspirada
em valores tradicionais e conservadores. Por isso é que
regimes como o fascismo ou o radicalismo islâmico
não são de maneira nenhuma conservadores e sim
revolucionários. Eles alegam valores aparentemente
conservadores, mas buscam implantá-los por meio da
mutação revolucionária que acaba por
destruir esses valores.
O perdão, a tolerância, a paciência, a
sabedoria e, sobretudo, o respeito pela fragilidade humana,
tais são as virtudes em que se baseia o
conservadorismo.
Lembro você ter escrito que, ao dialogar com alguns
liberais, ao final da conversa constata que o sujeito
é conservador com idéias liberais. Por
quê isso acontece?
Isso nasce de um vício de linguagem. Como a
mídia brasileira chama de "conservadores" os
grupos de interesses sem nenhuma ideologia própria, o
que é totalmente errado, a direita corrigiu um erro com
outro erro, dizendo-se "liberal" em vez de
conservadora. Da minha parte, uso sempre o termo liberalismo
no seu sentido histórico de um capítulo do
movimento revolucionário.
Às vezes, quando critico o liberalismo nesse sentido,
alguns conservadores brasileiros acham que estou falando mal
deles. O liberalismo, no sentido em que uso o termo, acredita
que a liberdade é um princípio fundante da
política, mas a liberdade é apenas uma regra
formal, que, elevada à condição de
princípio, resulta no esvaziamento relativista de todos
os valores, fomentando a mutação
revolucionária e a extinção da
própria liberdade. A diferença entre
princípio substantivo e regra formal é que o
primeiro pode ter sua aplicação estendida
indefinidamente sem levar a contradições, ao
passo que a regra formal, se aplicada além de um certo
limite, acaba por se negar a si mesma. A liberdade é
uma regra formal porque ela sempre necessita de outras que a
definam e não funciona fora delas. Os liberais —
no sentido em que uso o termo — não entendem
isso.