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Zen�o e o paral�tico

Olavo de Carvalho
O Globo, 20 de janeiro de 2001

 

Quando digo que a queda do n�vel de consci�ncia das nossas classes falantes j� atingiu a faixa do calamitoso, n�o estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates pol�ticos, leio as principais publica��es culturais, recebo diariamente dezenas de e-mails de universit�rios que levantam discuss�es sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atr�s ainda era poss�vel documentar, atrav�s de exemplos selecionados, como o fiz nos dois volumes de "O imbecil coletivo", a veloz ascens�o da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado de coisas n�o deixa de ter suas vantagens. A maior delas � que, pelo ac�mulo de material, a confus�o inicial dos dados cede lugar ao desenho n�tido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e incompet�ncias que hoje caracteriza a forma mentis do opinador nacional t�pico j� pode ser descrito em poucas linhas.

A primeira caracter�stica � a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que n�o compreendemos bem, experimentamos naturalmente a dificuldade de express�-lo. Uma figura de linguagem, apelando a semelhan�as sugestivas, ajuda-nos a vencer a dificuldade. Sa�mos de um nebuloso isolamento e penetramos na corrente da conversa��o p�blica. A decorrente sensa��o de ter emergido das trevas para a luz � por�m totalmente ilus�ria: maior dom�nio da express�o n�o significa melhor conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva n�o significa contato com a realidade. Quase todo debatedor p�blico neste pa�s, quando consegue domar sua dificuldade de express�o, sente ter dito algo de "objetivo", talvez at� mesmo de evidente e autoprobante, quando na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais �rduo o desafio expressivo, mais a vit�ria � enganosa. A liberta��o das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos �, decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda est� muito longe de alcan��-lo. No Brasil ela tende antes a substitu�-lo. A confus�o entre falar e conhecer � uma regra estabelecida dos debates nacionais.

Nessas condi��es, qualquer pretens�o de "conceito", quando chega a despontar, se esgota em mera defini��o nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a cr�tica de suas figuras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele pr�prio disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A express�o figurada e aproximativa, em vez de ser apenas o come�o do processo de investiga��o, � o t�rmino dele: o sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e cr� j� ter em m�os uma conclus�o l�quida e certa.

Eu n�o diria, no entanto, que essa in�pcia nasce da excessiva afei��o �s palavras, erroneamente assinalada como tra�o da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas n�o � o amor �s primeiras, mas a dificuldade de, por meio delas, chegar �s segundas. Pesquisas de antropologia empresarial mostraram que nossa popula��o � insens�vel � palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a mensagem atinja a consci�ncia. Mas essa depend�ncia da presen�a f�sica do emissor assinala tamb�m uma dificuldade de saltar sobre a situa��o concreta do di�logo e apreender diretamente as coisas e rela��es mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunica��o � menos algo a respeito da realidade externa do que as inten��es e sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes "o que querem dele" do que o quid da coisa da qual se fala. Diga voc� o que disser, sobre n�o importa o que, e ele ouvir� uma ordem, um pedido, um apelo, um est�mulo, uma proibi��o. � natural que, ouvindo assim, tamb�m fale assim, isto �, que, numa situa��o que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a diferen�a entre uma coisa e outra. Sua fala ser� ent�o respondida na mesma clave, e assim por diante indefinidamente, numa esp�cie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas �s outras, mais se fecham na sua ilus�o subjetivista.

Da� a compulsiva necessidade de "tomar posi��o" antes e independentemente de conhecer as coisas em quest�o, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumenta��o ou prova sen�o como express�o mais elaborada de uma "tomada de posi��o" subjetiva. No Brasil n�o se discutem id�ias, teorias, vis�es da realidade: discutem-se "posi��es" - atitudes, prefer�ncias, gostos e antipatias. Se � verdade o que dizia Henry James, que "os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas", ent�o somos, indiscutivelmente, uma na��o de escravos.

� evidente que, n�o alcan�ado o n�vel do pensamento conceptual, mais imposs�vel ainda fica provar o que quer que seja. Da� a segunda caracter�stica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa ignor�ncia do que seja uma prova ou demonstra��o, na verdade uma total inconsci�ncia da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reitera��o enf�tica ou o apelo a novas figuras de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os sentimentos do ouvinte e os da plat�ia, sem nem de longe tocar nos objetos em quest�o. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real.

Curiosamente, indiv�duos que ignoram tudo dos crit�rios de prova em filosofia ou ci�ncia est�o bem atualizados com as limita��es desses crit�rios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limita��o se torna um substitutivo do crit�rio mesmo e � por sua vez absolutizada, com grande reconforto para o presun�oso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no cume da evolu��o epistemol�gica - como um paral�tico que, ao ter not�cia dos argumentos de Zen�o sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior �s pessoas capazes de andar.

PS - Ap�s acusar-me de um crime que n�o cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o sr. Marcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para n�o ter de se rebaixar ao n�vel da minha pessoa. Sapient�ssima decis�o. Ele que fique l� em cima, no seu "grand monde" de comunistas chiques, e n�o des�a mais ao humilde por�ozinho que, em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo.

J� o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e impl�cita parece ter endossado as acusa��es do sr. Moreira, n�o requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas acusa��es para o ralo da completa desmoraliza��o, com elas h� de ir automaticamente, sem deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito.