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A vaca louca da hist�ria nacional

Olavo de Carvalho
O Globo, 28 de abril de 2001

 

A mente humana n�o tem nenhum meio de testar uma hip�tese sen�o concedendo iguais chances de credibilidade � hip�tese contr�ria. Mas �s vezes isso n�o fica bem, e em tais circunst�ncias os esgares de indigna��o no rosto do advogado da primeira hip�tese devem ser aceitos como cabal demonstra��o cient�fica da falsidade da segunda. Ora, ningu�m sabe mostrar-se indignado com a veem�ncia, com o pathos de um militante de esquerda, apologista dos crimes de tortura e genoc�dio cometidos pelo governo de Cuba, quando aponta atrocidades an�logas, mas de escala muito menor, praticadas no Brasil. Por isso, den�ncias de crimes atribu�dos ao regime militar n�o devem ser averiguadas. T�m de ser aceitas prima facie , alardeadas por todos os meios de comunica��o, estampadas nos livros escolares, fixadas em letras eternas na mem�ria nacional antes que algum aventureiro ouse amortecer o fervor da certeza por meio de um g�lido ponto de interroga��o.

Na verdade, n�o � s� que essas den�ncias n�o devam ser averiguadas. Elas nem mesmo podem s�-lo, na pr�tica, pois, com exce��o dos arquivos militares, os dep�sitos de documentos daquele per�odo est�o, em geral, entregues � guarda de militantes de esquerda. Dominando as fontes de informa��o, a esquerda tem ainda o monop�lio dos meios de investiga��o, instalada como est� na chefia dos departamentos de Hist�ria de todas as universidades p�blicas, assim como na dos �rg�os distribuidores de verbas de pesquisas, �s quais se acrescentam os generosos subs�dios de empresas e funda��es estrangeiras, empenhadas em impor aos pa�ses do Terceiro Mundo uma ideologia politicamente correta que inclui, como um de seus itens essenciais, a desmoraliza��o sistem�tica das For�as Armadas.

Acrescentem a isso o predom�nio esquerdista nos meios de comunica��o e a completa devo��o do MEC a seu papel de preparador ideol�gico das crian�as brasileiras para a luta de classes, e ter�o uma id�ia de quanto a imagem do passado hist�rico forjada no molde da propaganda ideol�gica se tornou mais dif�cil de contestar do que um decreto de C�sar na Roma imperial.

T�o vasto poder de controle sobre a vis�o do passado � fen�meno in�dito nas democracias. Somente os regimes totalit�rios lograram conquistar t�o s�lida autoridade monopol�stica sobre a fabrica��o do relato hist�rico, fazendo dele um dos pilares de sua domina��o ideol�gica sobre a vida presente.

Mas, por uma atroz coincid�ncia, foi justamente um grande historiador, Lorde Acton, quem disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Os donos do passado, afeitos �s del�cias do mon�logo incontestado, acabam relaxando as precau��es mais elementares e caindo na sua pr�pria armadilha: acabam acreditando t�o piamente em si mesmos que j� n�o verificam nem as contradi��es mais gritantes das hist�rias que alardeiam.

Um caso recente ilustrar� isso da maneira mais escandalosa. Jo�o Ant�nio dos Santos Abi-E�ab e sua esposa Catarina Helena, terroristas oficialmente dados como mortos numa colis�o entre o Volks em que viajavam e a traseira de um caminh�o perto de Vassouras, RJ, teriam, na verdade, sido presos no bairro do Maracan� e mortos a tiros, sepultados em S. Jo�o de Meriti e mais tarde desenterrados, vestidos e colocados no autom�vel, por gente do Ex�rcito, para simular o acidente rodovi�rio em 8 de novembro de 1968.

A den�ncia � do �Jornal Nacional�. Baseia-se no depoimento do ex-soldado Waldemar Martins de Oliveira, que, segundo declarou ao rep�rter Caco Barcelos, na �poca atuava no servi�o de informa��es do Ex�rcito na �rea de Mar�lia, SP, e teria presenciado a execu��o. Contra essa acusa��o, divulgada em tom de certeza inabal�vel, restam os seguintes fatos:

Quanto � testemunha:

1. Waldemar diz que desertou do Ex�rcito em 1970, cansado de participar de malvadezas governamentais. Ele mente. A folha de altera��es do recruta Waldemar no 27 . Batalh�o de Infantaria P�ra-quedista, da qual obtive c�pia com os oficiais que mant�m o �site� http://www.ternuma.com.br, mostra que ele desapareceu do quartel no come�o de setembro de 1968, sendo dado como desertor a partir do dia 11 desse m�s e n�o podendo, portanto, estar a servi�o do Ex�rcito dois meses depois.

2. Waldemar sentou pra�a em janeiro de 1968. Ele pretende ter realizado in�meras �opera��es secretas� entre esse dia e a morte do casal. Mas qual Ex�rcito do mundo designaria para opera��es de intelig�ncia um recruta que nem terminou o per�odo regulamentar de um ano de treinamento? Simplesmente n�o havia recrutas, mesmo treinados, na �rea de Opera��o de Informa��es do Ex�rcito, que s� empregava oficiais e graduados com Curso de Especializa��o. Para piorar ainda mais as coisas, Waldemar, lotado no ent�o I Ex�rcito, n�o poderia atuar em Mar�lia, SP, que era �rea do II Ex�rcito.

Quanto �s v�timas:

1. Abi-E�ab e sua esposa n�o poderiam ter morrido em 8 de novembro, pois no dia 13 do mesmo m�s participaram do assalto ao carro pagador do Ipeg (Instituto de Previd�ncia do Estado da Guanabara), segundo depoimento do l�der comunista Jacob Gorender na quinta edi��o, revista e corrigida, de seu livro de mem�rias �Combate nas Trevas� (S�o Paulo, �tica, p. 109), confirmado por Lu�s Mir em �A Revolu��o imposs�vel. A esquerda e a luta armada no Brasil� (S�o Paulo, Best-Seller, 1994, p. 337).

2. Mesmo na hip�tese de que tivessem morrido no pr�prio dia 13, seria imposs�vel prend�-los, mat�-los, sepult�-los em S. Jo�o de Meriti, desenterr�-los, limp�-los, vesti-los e lev�-los para Vassouras para simular o acidente, tudo no mesmo dia.

3. Nas fotos exibidas pelo �Jornal Nacional� havia na estrada n�tidas marcas de frenagem do Volks at� a um metro de dist�ncia do caminh�o. Um dos dois falecidos teria ressuscitado para frear o carro? Ou este foi freado por algum poderoso recruta Waldemar que, sentado sobre o cad�ver, ainda teve tempo de sair voando pela janela um metro antes de que o ve�culo se espatifasse de encontro � rabeira do caminh�o?

H� muitos outros absurdos no depoimento de Waldemar, que n�o tenho espa�o para expor aqui. Mas um desertor que mente sobre a data de sua deser��o, mortos que praticam um assalto cinco dias depois de falecidos, um cad�ver que acorda e freia um carro que vai bater j� n�o s�o loucura bastante? A coisa toda � t�o imensuravelmente est�pida que, dez anos atr�s, ningu�m lhe prestaria aten��o, exceto psiqui�trica.

Mas, no ambiente de carnavalesco triunfalismo Anti-Anos-de-Chumbo, at� um rep�rter geralmente criterioso como Caco Barcelos se embriaga de loucura denuncista e, no meio das requintadas averigua��es m�dico-legais que n�o deixou de fazer -- o que muito o honra como profissional --, se esquece da primeira li��o que os rep�rteres tarimbados ensinam aos novatos: conferir nomes e datas. O v�rus da infalibilidade dos donos da mem�ria nacional tornou-se a vaca louca do jornalismo brasileiro: contaminados, mesmo os mais fortes dentre n�s endoidam.