Tortura e terrorismo
Olavo de Carvalho
Quem comete delito mais grave: o sujeito que coloca uma bomba em lugar p�blico, despeda�ando transeuntes inocentes, ou aquele que d� uma surra em quem fez isso? A natureza humana, a raz�o e o instinto respondem resolutamente: o primeiro. Em seu apoio v�m a jurisprud�ncia universal, as leis morais das grandes religi�es e at� o regulamento da Associa��o Protetora dos Animais, que n�o considera t�o lesivo ao interesse dessas criaturas dar pancadas em uma delas quanto liquid�-las �s d�zias por meio de explosivos. Toda a Humanidade compreende intuitivamente que o torturador, por cruel e asqueroso que seja, � apenas um agressor, ao passo que o terrorista, por belo e idealista que se anuncie, � um homicida por atacado, virtualmente um genocida. As diferen�as n�o param a�. Maus-tratos a um prisioneiro podem resultar do s�bito impulso de fazer justi�a com as pr�prias m�os, enquanto o ato terrorista sup�e premedita��o fria, planejamento racional, execu��o precisa. A tortura admite graus, que v�o de um tapa na cara at� os requintes de perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que um homic�dio n�o pode ser meio homic�dio, um quinto de homic�dio, um-dezesseis-avos de homic�dio. Condenar o terrorismo como "crime hediondo" � falar de um delito definido, claro, insofism�vel, ao passo que usar o mesmo termo para qualificar a "tortura" � um expediente ling��stico para meter no mesmo saco o torcion�rio cient�fico que aplicou choques a um prisioneiro por meses a fio, o sargento que lhe deu um pontap� numa explos�o de raiva, o m�dico que lhe aplicou uma inje��o para que n�o morresse e o soldado de plant�o que atendia o telefone na delegacia. Terrorismo e tortura, enfim, n�o est�o no mesmo plano: aquele � hediondo em si, esta depende de graus e circunst�ncias. E, quanto ao dano infligido, o da tortura quase sempre pode ser reparado, f�sica e moralmente. Mas que repara��o oferecer � v�tima que teve o corpo feito em mil peda�os pela explos�o de uma bomba? A Humanidade inteira admite essas verdades �bvias. S� uma classe de seres humanos as rejeita: os "intelectuais de esquerda". Estes prefeririam antes ser dilacerados por uma bomba pl�stica num sagu�o de aeroporto do que levar pancadas num por�o de delegacia e sair vivos para berrar na imprensa contra a viol�ncia policial. Digo isso por mera infer�ncia, supondo que consintam em escolher para si pr�prios o destino que alardeiam ser prefer�vel para os outros. Mas suspeito que no fundo n�o seja nada disso. Suspeito que, quando vituperam o torturador e enaltecem o terrorista, est�o impondo �s v�timas destes dois tipos de criminosos uma escala de avalia��o que jamais desejariam para si pr�prios. Suspeito, mesmo, que a hip�tese de examinar a coisa pelos dois lados jamais lhes passou pela cabe�a: em d�cadas de leituras de autores esquerdistas, nunca encontrei um �nico que se inclinasse a avaliar com igual peso e medida seus atos pr�prios e os alheios. Bem ao contr�rio: o pressuposto b�sico, o pilar mesmo do universo mental do esquerdista � o sentimento de estar num patamar �tico e ontol�gico diferente e superior, em fun��o do qual a��es que cometidas por outras pessoas seriam crimes hediondos se tornam m�ritos beatificantes quando praticadas por ele ou em nome da sua doutrina. Foi assim que Karl Marx, ap�s ter escrito p�ginas ferinas contra os patr�es que abusavam sexualmente de suas empregadas, n�o teve o menor escr�pulo de consci�ncia em p�r para fora de casa o filho que havia gerado na sua dom�stica Helene Demuth. Foi assim que a doutrina Guevara, ensinando o revolucion�rio a ser "uma fria e calculista m�quina de matar", tornou-se, para milh�es de idiotas, uma mensagem de amor s� compar�vel ao Serm�o da Montanha. Foi assim que Fidel Castro, come�ando sua carreira como pistoleiro de aluguel e culminando-a como genocida, veio a ser considerado pelo sr. Luiz Ign�cio Lula da Silva um modelo superior de conduta �tica. E � assim que o Grupo Tortura Nunca Mais julga que os suspeitos de envolvimento mesmo indireto, remoto e conjetural em casos de tortura devem ser perseguidos at� o fim dos tempos, como ratos, como nazistas, para que os r�us confessos de terrorismo, instalados em altos postos da Rep�blica, possam estar tranq�ilos no desfrute de suas honras, gl�rias e mordomias. Contra estes, beneficiados pela anistia, j� n�o se pode dizer uma palavra. Mas aqueles, segundo a presidente dessa entidade, cometeram "crimes inanisti�veis, imprescrit�veis e de lesa-humanidade. N�o poderiam ocupar cargos pagos com dinheiro da sociedade brasileira." Anistia, cargos, dinheiro p�blico, no entender dessa senhora, s�o s� para os terroristas, para os que mataram por atacado. Que algu�m sugira estender os benef�cios da lei aos que maltrataram esses pobrezinhos no varejo, e ela se encrespa: "N�o aceitamos essa lei." In�til argumentar contra essa mentalidade. Sua recusa obstinada de julgar por um padr�o eq�itativo; sua insist�ncia obsessiva em atribuir, sempre e a priori, motivos altru�sticos aos atos de uns e inten��es ego�stas aos de outros; sua radical incompreens�o do Segundo Mandamento - tudo isso torna imposs�vel o confronto racional, que a cegueira ideol�gica substitui por uma ret�rica de inculpa��o desvairada e autovitimiza��o pat�tica. As pessoas que se deixam embriagar por esse discurso adquirem um escotoma moral, um impedimento ao exerc�cio da raz�o e daquele senso das propor��es que � o corol�rio imediato da igualdade humana. Ningu�m � menos dotado do instinto da igualdade jur�dica do que os ap�stolos da igualdade econ�mica. S� resta saber a causa profunda dessa defici�ncia. Segundo Joseph Gabel, � um tipo de doen�a mental, de esquizofrenia. Segundo Eric Voegelin, � uma sociopatia, uma enfermidade da esfera moral que n�o afeta a superf�cie do eu. Mas �s vezes essa discuss�o se torna puramente acad�mica: na URSS, os esquizofr�nicos e sociopatas tomaram de assalto o hospital e trancafiaram nele quem pretendesse diagnostic�-los. E � preciso ser ainda mais doido que eles para n�o perceber que est�o querendo fazer a mesma coisa aqui.
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