O testemunho proibido
Olavo de Carvalho
Um dos trechos que mais me impressionam no Evangelho � aquele em que Jesus, sob a acusa��o de difundir ensinamentos suspeitos, apela ao testemunho do p�blico: �Tenho falado francamente ao mundo�, afirma Ele, �e nada disse em oculto. Pergunta-o aos que me ouviram.� Um dos guardas lhe d� ent�o uma bofetada. Jesus lhe responde: �Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?� (Jo�o, 18:19-23 passim. ) Quando Northrop Frye demonstrou, em �The great code�, que em �ltima inst�ncia todos os enredos da literatura de fic��o est�o prefigurados nos livros sacros, ele se esqueceu de dizer que todos os acontecimentos das nossas vidas est�o prefigurados na literatura de fic��o. Que � a fic��o, afinal, sen�o o conjunto dos esquemas imagin�rios das vidas poss�veis? Pelo menos assim o entendia Arist�teles, mestre de Frye. E que � o conjunto das vidas poss�veis sen�o a sinfonia dos ecos terrenos da vida divina, a reverbera��o do eterno no tempo? Nossas biografias s�o as c�pias de uma c�pia. Por tr�s delas, uma �nica hist�ria se passou: a da vida, paix�o e morte de N. S. Jesus Cristo. A cena do testemunho rejeitado repete-se milh�es de vezes, ao longo dos s�culos, onde quer que um escritor, um professor, um orador, seja acusado de dizer o que n�o disse, de ensinar o que n�o ensinou, de pregar o que n�o pregou. Se nesse momento ele alega o testemunho p�blico de seus escritos, de seus ouvintes, de tudo o que � arquinot�rio e documentado, isso n�o o livra da m� vontade do juiz in�quo. O simples desejo de provar � tido como insol�ncia. Calem-se as testemunhas, suprimam-se os documentos: o que vale n�o � a palavra de quem viu, leu ou ouviu. O que vale � a palavra de quem, nada tendo visto, lido ou ouvido, conjetura, suspeita e acusa. A ignor�ncia maliciosa torna-se fonte da autoridade, suprimindo n�o somente os fatos, mas a simples possibilidade de aleg�-los. O que importa n�o � conhecer, � odiar com intensidade. Esse modelo eterno reaparece diariamente na nossa imprensa, no parlamento, nas c�tedras acad�micas e nas escolas de crian�as, quando aqueles que desagradam ao consenso dominante s�o rotulados de �fascistas�. Se apelam ao testemunho de seus escritos, alegando que jamais disseram uma palavra em favor do fascismo, que o condenaram e que pregaram o contr�rio dele, ter�o de dar-se por felizes se em resposta n�o receberem uma bofetada, mas apenas um riso de esc�rnio. No tribunal dos infernos, o esc�rnio dos canalhas � a prova suprema. Todos os testemunhos, todos os documentos do mundo n�o valem para impugn�-lo. Mais probante que ele, s� a bofetada do guarda. Milh�es de pequenos brasileiros est�o sendo educados nessa pedagogia de An�s e Caif�s. Logo estar�o prontos para, � simples men��o de certos nomes dos quais nada sabem, gritar em un�ssono: �Fascistas!� Ai de quem tombe sob o olhar fulminante desse tem�vel tribunal mirim! N�o por coincid�ncia, a acusa��o de fascismo prov�m sempre daquela corrente que se consolidou no poder na R�ssia com a ajuda nazista, que vendeu a Espanha aos franquistas em troca de favores anglo-franceses, que amparou tantos militarismos nacionalistas em toda parte, que no Brasil se aliou � ditadura de Vargas e em Cuba, sim, em Cuba, apoiou a ascens�o de Fulgencio Batista e depois usurpou os lucros de sua destitui��o engendrada pelos americanos. Tudo isso � fato hist�rico conhecido, ao menos de quem estudou. N�o � preciso dizer que, nos tribunais nazi-fascistas, an�loga sintaxe governava o uso da acusa��o de �comunista�, naqueles anos mesmos em que Hitler e Stalin, por baixo da contenda de superf�cie entre seus devotos militantes, trocavam favores, informes secretos, armas e dinheiro � j� muito antes do pacto Ribentropp-Molotov, que apenas formalizou aos olhos do mundo essa alian�a macabra. Mas, na l�gica da alma revolucion�ria, � a pr�pria cumplicidade no crime que, pelo bem conhecido efeito potencializador da invers�o hist�rica, confere ao juiz a sua posti�a autoridade de acusar. Quanto mais ele tenha manchado suas m�os no sangue, tanto mais seu �dio reprimido a si mesmo se transfigurar�, no n�vel da sua falsa consci�ncia intoxicada de ideologia, em indignada eloq��ncia contra o inocente. Tal � o mecanismo �ntimo daquela passionate intensity de que falava Yeats, da qual s� os fan�ticos assassinos s�o capazes, e que desarma, pela for�a avassaladora do cinismo, as defesas do homem normal. O homem comum dos tempos modernos, esvaziado do esp�rito e reduzido a confiar-se � autoridade exterior do consenso dominante, n�o resiste � ret�rica insana do mal: sob o violento ataque frontal � verdade, acaba sempre cedendo, admitindo-se culpado do que n�o fez, como milhares de r�us nos Processos de Moscou na d�cada de 30. S� a f� amparada no exemplo de Cristo pode permanecer imperturb�vel e, ante o assalto da mentira demon�aca, retrucar simplesmente: �Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?�
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