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Trai��o sem fim

Olavo de Carvalho
O Globo, 5 de maio de 2001

 

Em carta publicada no GLOBO do �ltimo dia 21, a professora Denise Rollemberg esclarece que � minha e n�o dela a conclus�o que tirei do seu livro “O apoio de Cuba � luta armada no Brasil” e segundo a qual “a a��o conjunta dos militares (em 1964) resultou da interven��o cubana na guerrilha, e n�o esta daquela”. Ela nem precisava ter dito isso. Uma conven��o universal do of�cio pensante reza que aquilo que um autor infere de fatos alegados por outro � de inteira responsabilidade do primeiro. Mas a professora Denise n�o haver� de se magoar comigo se eu acrescentar que, arcando com a responsabilidade das conclus�es, levo tamb�m o m�rito que possa haver nelas. Inversa e complementarmente, recai sobre ela a responsabilidade — bem como o m�rito, se algum h� nisso -— de recus�-las contra os fatos que as imp�em.

No seu livro, a professora Denise, logo ap�s reconhecer que o governo de Cuba participava de a��es revolucion�rias no Brasil desde 1961, escreve: “Ap�s 1964, a esquerda tendeu, e tende ainda, a construir a mem�ria da sua luta, sobretudo, como de resist�ncia ao autoritarismo do novo regime... No entanto, a interpreta��o da luta armada como essencialmente de resist�ncia deixa � sombra aspectos centrais da experi�ncia nos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no per�odo anterior a 1964.”

Traduzido do peculiar idioma universit�rio nacional — o �nico, no mundo, em que ambig�idade � sin�nimo de rigor — que significa esse par�grafo sen�o que a esquerda brasileira, com a ajuda de Cuba, tentava conquistar o poder por via armada desde tr�s anos antes do golpe militar e que, depois dele, passou a usar o novo regime como pretexto retroativo para alegar que fora compelida ao uso das armas, a contragosto, com l�grimas de piedade nos olhos, pela supress�o autorit�ria de seus meios incruentos de luta?

A esquerda, enfim, mentiu durante quase 40 anos, enquanto a direita, a execr�vel direita, simplesmente dizia a verdade ao alegar que o golpe de 1964 fora uma rea��o leg�tima contra uma revolu��o em curso que n�o se vexava de recorrer � viol�ncia armada com a ajuda clandestina de uma ditadura estrangeira.

Nada, absolutamente nada nesses fatos permite concluir, com a professora Denise, que “o apoio que o governo cubano deu a guerrilheiros no Brasil, em tr�s momentos diferentes, n�o poderia explicar — e muito menos justificar — a a��o dos militares”. A id�ia mesmo de que uma inger�ncia armada de pa�s estrangeiro n�o explique nem justifique uma rea��o igualmente armada da na��o ofendida �, por si, suficientemente extravagante para n�o precisar ser discutida: sua express�o em palavras j� basta para impugn�-la no ato.

Que essa rea��o, por�m, assumisse a forma de um golpe militar e da derrubada do governo constitu�do � algo que poderia parecer estranho, mas cuja explica��o, involunt�ria ali�s, vem da pr�pria professora Denise. Ela conta (p. 26) que esse governo, ao apreender em fins de 1962 as provas materiais da interven��o armada cubana, em vez de encaminhar pelo menos um protesto p�blico aos organismos internacionais, como seria sua mais modesta obriga��o, que � que fez? Escondeu as provas e as devolveu, discretamente, a um emiss�rio de Fidel Castro.

A professora Denise n�o percebe nesse ato presidencial nada de particularmente an�malo, tanto que, meio �s tontas, o descreve como simples e corriqueira “solu��o diplom�tica”. Mas qual presidente, de qual pa�s, tendo as provas de uma interven��o armada estrangeira, as esconderia de seus compatriotas e as devolveria ao pa�s interventor sem tornar-se c�mplice dele e, portanto, culpado de crime de alta trai��o? E por que haveria Jo�o Goulart de cometer esse crime se n�o estivesse mais comprometido com os planos do agressor do que com seus deveres de governante?

Meu Deus! Num pa�s onde um presidente foi escorra�ado do cargo por simples desvio de verbas e um senador arrisca perder o mandato por violar o sigilo da vota��o numa mi�da comiss�o parlamentar, ser� t�o dif�cil � professora Denise compreender a gravidade imensur�vel do crime de passar a uma na��o agressora um segredo militar? E como n�o enxergar a� a parceria do criminoso e do c�mplice na implementa��o de uma �nica e mesma estrat�gia revolucion�ria?

Entre a guerrilha de 1961 e a ret�rica “pac�fica” que se lhe seguiu havia diferen�as, sim, mas elas n�o refletiam sen�o a astuta combina��o de m�todos, ora simult�neos, ora alternados, com que os comunistas, realizando a f�rmula consagrada de St�lin que prev� a unidade da estrat�gia por meio de uma alucinante varia��o de t�ticas, desnorteiam seus advers�rios. Nada, nada neste mundo pode ocultar a continuidade do esfor�o revolucion�rio que, orientado desde Havana, sacode o continente h� quatro d�cadas. Confirma-o — involuntariamente, como sempre — a pr�pria professora Denise, ao admitir que “ap�s a experi�ncia frustrada das Ligas (1961), e j� instaurada a ditadura civil-militar, Cuba redefiniu a maneira de apoiar a revolu��o no Brasil”. Quem poderia “redefinir” o que j� n�o estivesse definido? Ao trair a confian�a da na��o, Jo�o Goulart n�o fez sen�o dar prosseguimento, por outros meios, � guerrilha de 1961, do mesmo modo que a luta armada ap�s o golpe deu prosseguimento � trai��o goulartiana e, em seguida, tr�s d�cadas e meia de oculta��o e mentiras, nas c�tedras e nos jornais, deram prosseguimento � guerrilha de Marighela e Lamarca, sempre variando os meios em vista da finalidade constante: a implanta��o do regime comunista. Se fosse preciso maior prova dessa continuidade estrat�gica, deu-a o Foro de S�o Paulo, ao assumir, sob o aplauso de Lulas e tutti quanti , sua identidade de reencarna��o do Comintern, destinada a “reconquistar na Am�rica Latina o que foi perdido no Leste Europeu”, segundo palavras reproduzidas no jornal oficial cubano “Granma” de 5 de julho de 1990.

� evidente que a professora Denise, sabendo disso, n�o poderia diz�-lo nesses termos sem arriscar seu emprego num meio universit�rio comprometido, at� � goela, com a sustenta��o da mentira. Por isso ela o disse com meias palavras. � compreens�vel que ela se irrite quando algu�m o traduz para palavras inteiras.

Mas, da minha parte, estou pouco me lixando para o emprego de quantos acad�micos, h� quatro d�cadas, sejam remunerados pelo Estado brasileiro para colaborar com a inger�ncia cubana, sovi�tica e chinesa nos assuntos nacionais, seja sob a forma de guerrilhas, seja de sua oculta��o. Cada sal�rio que essa gente recebeu � pagamento, extorquido da v�tima, em recompensa de um ato mensal de trai��o. N�o afirmo que este seja o caso pessoal da professora Denise, da qual nada sei. Mas que ningu�m venha dizer que acuso somente um dos lados, pois n�o me canso, nesta coluna e em outras publica��es, de denunciar os que hoje recebem dinheiro de funda��es americanas para minar as bases da identidade nacional. Que freq�entemente sejam os mesmos que trabalham para Cuba, � coisa indigna de espanto. Trai��o � trai��o, qualquer que seja o pa�s estrangeiro beneficiado por ela.