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Um lindo pretexto
para ignorar a verdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 27 de maio de 2000

 

�O pensador ideol�gico cria uma linguagem
para expressar n�o a realidade,
mas a sua aliena��o dela.� (Eric Voegelin)

 

O mais lindo pretexto dos c�ticos, relativistas e pragmatistas para advogar uma no��o puramente funcional ou operacional da verdade � que a verdade certa e provada faz mal � sa�de pol�tica da democracia. Se um sujeito est� persuadido de que conhece a verdade, ele n�o tem a menor toler�ncia para com a opini�o adversa. � o que eles alegam. Da� partem para provar a impossibilidade de provar o que quer que seja, proclamando que o mundo s� ser� feliz quando todas as teorias se neutralizarem umas �s outras e a humanidade reconhecer que n�o existem verda�des, apenas fic��es �teis e provis�rias. Suprimido o crit�rio de veracidade, todas as id�ias ter�o direitos iguais. Ser� a democracia perfeita.

A mente habituada a julgar as afirma��es pelo valor nominal aceita mais que depressa essa esperan�osa conclus�o, lisonjeada ademais pela perspectiva de que suas pr�prias opini�es, sendo t�o �teis e provis�rias quanto quaisquer outras, vale�r�o o mesmo que as de Arist�teles ou Leibniz.

Mas, contra esse persuasivo arranjo de apar�ncias, resta o fato brutal de que, dos dois grandes totalitarismos do s�culo, comunismo e nazismo, nenhum acredi�tou na exist�ncia da verdade objetiva ou na possibilidade de conhec�-la. Bem ao contr�rio, estavam ambos convictos de que as id�ias n�o s�o instrumentos para co�nhecer a realidade e sim para transform�-la. Karl Marx diz explicitamente isso nas famosas "Teses sobre Feuerbach". Uma das mais exc�ntricas peculiaridades inte�lectuais do marxismo � justamente que sua vis�o da hist�ria declara n�o poder ser compreendida desde fora e pelo puro exame teor�tico: para captar suas insond�veis profundidades o sujeito tem de primeiro aderir � causa do proletariado e, partici�pando das lutas prolet�rias, apreender o processo revolucion�rio no pr�prio curso dial�tico da a��o que o produz. Ao proclamar que a luta de classes � inseparavel�mente uma teoria cient�fica e a regra pr�tica da a��o revolucion�ria, Marx perverte a no��o mesma de "teoria cient�fica", que, de instrumento de s�ntese intelectual dos dados objetivos, se torna o meio de produzir ou modificar esses dados para que retroativamente coincidam com a teoria. Ningu�m compreendeu isso melhor do que L�nin, quando descobriu que podia fazer uma revolu��o prolet�ria num pa�s sem proletariado: bastava que uma elite se autonomeasse representante dos prolet�rios futuros, tomasse o poder e em seguida criasse um proletariado.

Ainda mais descaradamente instrumental e pragmatista era a no��o de ver�dade de Adolf Hitler. Ele disse a Hermann Rauschning (Conversa��es com Hitler, 1940): "Sei perfeitamente que, num sentido cient�fico, n�o existem ra�as... Mas, como pol�tico, preciso de um conceito que me permita dissolver a ordem es�tabele�cida e impor em seu lugar uma ordem totalmente nova." � o esp�rito de Karl Marx que baixou no terreiro: n�o se trata de descrever o mundo, mas de transform�-lo.

Quem acredita em verdade objetiva busca encontrar uma e prov�-la. Aquele que reduz a verdade a um instrumento para transformar o mundo n�o tem de provar nada: tem apenas de dar cabo de quem fique atravessado no caminho da transforma��o.

24/01/00