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O leitor precavido

Olavo de Carvalho
Época, 13 de janeiro de 2001

 

� aquele que desconfia que suas obje��es j� ocorreram ao autor � e j� est�o respondidas

 

A precau��o mais elementar, ao ler os escritos de um fil�sofo, � lembrar que nossas obje��es mais imediatas j� devem ter-lhe ocorrido e podem estar respondidas, ao menos de maneira impl�cita, em alguma outra parte de sua obra. Um fil�sofo �, afinal, um especialista em unidade: raramente ele enunciar� alguma proposi��o solta, sem raiz em princ�pios gerais e sem uma rede de conex�es com a totalidade de suas id�ias. Um bom leitor de filosofia n�o se perde na discuss�o de detalhes isolados, mas, guiado por um instinto de coer�ncia que j� o torna um pouco fil�sofo, busca por tr�s de tudo os princ�pios e fundamentos. S� as obje��es desse leitor contam para o fil�sofo. As demais s�o irrelevantes como tiros de espoleta, e ele s� as responder� por polidez. Pela mesma raz�o, o fil�sofo que publique artigos na imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da exist�ncia de uma filosofia por tr�s de cada opini�o isolada, ter�o o bom senso de refrear suas obje��es mais afoitas at� captar melhor a posi��o dela no conjunto. Pois, para um fil�sofo, nenhum assunto, por ef�mero e casual que pare�a, � solto e independente: cada um remete ao centro desde o qual tudo � ou nada � se explica.

Se o leitor brasileiro n�o est� habituado a essa precau��o, � por um motivo muito simples: em geral os indiv�duos autorizados pelo Estado a representar em p�blico o papel de �fil�sofos� n�o s�o fil�sofos de maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que n�o t�m nem o dever nem a compet�ncia do olhar filos�fico. Tanto isso � assim que, quando aparece algum fil�sofo de verdade, um M�rio Ferreira dos Santos, um Vil�m Flusser, algu�m enfim capaz de pensar desde os fundamentos, a primeira coisa que fazem � consider�-lo um estraga-prazeres e abster-se religiosamente de prestar aten��o ao que ele diz.

Diante do que escrevem esses professores, n�o � preciso aquela precau��o, porque eles n�o t�m um quadro pr�prio de refer�ncia que deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o fundo comum das conversa��es p�blicas do dia e podem ser compreendidas pelo simples cotejo com ideologias, modas ou programas partid�rios. Mas tentar esse enfoque ante as opini�es de um fil�sofo � cortar as pr�prias pernas, impedindo-se de chegar a conclus�es ou obje��es relevantes.

� verdade que fil�sofos � Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y Gasset � escreveram artigos de jornal, mas nenhum deles logrou a proeza � ou teve a pretens�o � de fazer de algum desses artigos uma pe�a aut�noma, destac�vel do fundo de seu pensamento e pass�vel de ser julgada por si. Autonomia � para romances, contos, poemas. Em filosofia, toda express�o � provis�ria e requer o ac�mulo praticamente intermin�vel de esclarecimentos. Mas ao p�blico brasileiro de hoje falta algo mais que a consci�ncia disso. Falta o sentido mesmo da liga��o org�nica entre as asser��es e os argumentos que as embasam. Em filosofia � e tudo o que um fil�sofo escreve � express�o de sua filosofia �, nenhuma proposi��o significa nada quando considerada independentemente das raz�es que a ela conduzem. Nas discuss�es vulgares, ao contr�rio, cada afirma��o vale por si; os argumentos podem torn�-la mais aceit�vel, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes apenas a fun��o de floreados enf�ticos, destinados a sublinhar e colorir uma decis�o tomada antes e independentemente deles. As id�ias em circula��o reduzem-se assim a meia d�zia de enunciados gerais simples, f�rmulas estereot�picas em torno das quais n�o h� mais discuss�o al�m da estritamente necess�ria para produzir, no mais breve prazo poss�vel, um ardoroso �pr� ou um indignado �contra�.