Precau��es de leitura
Uma grande bobagem que voc� pode fazer ao estudar a hist�ria das id�ias filos�ficas � compar�-las umas �s outras no mesmo plano, como teorias cient�ficas ou vis�es da realidade, diferentes apenas segundo o ponto de vista adotado, os talentos pessoais de seus criadores e a mentalidade das �pocas. Muitas doutrinas famosas n�o s�o de maneira alguma teorias sobre a realidade, nem tiveram jamais a pretens�o de s�-lo. Surgidas no bojo de grandes projetos de a��o pol�tica, s�o fic��es propositais calculadas para produzir impress�es na opini�o p�blica e predisp�-la �s condutas que se sup�em adequadas � consecu��o desses projetos. S�o, no sentido mais estrito, informa��o estrategicamente manipulada. N�o se destinam a diagnosticar, descrever ou compreender a realidade, mas a produzi-la - ou melhor, a produzir uma falsa realidade que atue sobre a realidade efetiva, no mesm�ssimo sentido em que um falso rumor de trai��o conjugal, soprado aos ouvidos de um marido ciumento, pode induzi-lo a um crime passional de verdade. N�o s�o teorias: s�o atos pol�ticos. Discuti-las como teorias pode ser �til apenas para desmascarar a falsa identidade cient�fica que se arrogam, mas, precisamente, esse desmascaramento n�o pode ser feito sem um conhecimento pr�vio do projeto que encobrem e que ocultamente as modela. Uma precau��o elementar no estudo de qualquer doutrina � averiguar se seu autor corresponde ao tipo do homo theoreticus, do estudioso sincero que ir� �s �ltimas conseq��ncias na investiga��o da verdade, pouco importando a quem favore�am ou desfavore�am os resultados de suas investiga��es, ou se, ao contr�rio, � um l�der, um chefe, um homem de a��o e revolucion�rio interessado em transformar o mundo. Neste �ltimo caso, a hip�tese de que a verdade objetiva prevale�a em seu pensamento � uma casualidade que pode se dar aqui ou ali, em afirma��es parciais, mas que no conjunto deve ser considerada improv�vel e remota. H�, evidentemente, o caso intermedi�rio do educador, que � homem de a��o e produz teorias. A diferen�a � que a a��o do educador visa a transformar almas individuais - as de seus alunos atuais e virtuais - e n�o o Estado, as leis e a sociedade, pelo menos de maneira direta e intencional. Esse tipo de a��o n�o s� � compat�vel com a fidelidade ao saber objetivo, mas de certo modo a exige. At� certo ponto, todo fil�sofo � um educador e n�o pode deixar de s�-lo. Id�ntica observa��o pode-se fazer, mutatis mutandis, quanto ao "m�dico de almas", que � um tipo especial de educador. H� tamb�m a possibilidade de que o aut�ntico homem de saber, em certas circunst�ncias, tome posi��o em quest�es pol�ticas espec�ficas, sem comprometer-se num plano de reforma do mundo que chegue a determinar, por si, os princ�pios de sua doutrina. Se esse � o caso, suas op��es pol�ticas refletir�o sua orienta��o te�rica geral (ou as mudan�as dela), e n�o ao inverso. Mas, feitas estas ressalvas, vigora a distin��o entre o homo theoreticus e o homo politicus. A no��o marxista de ideologia, com sua hip�tese pueril de que todas as id�ias t�m, por igual, objetivos pol�ticos inconfessados, s� serviu para obscurecer essa distin��o, que n�o obstante continua indispens�vel. Plat�o, por exemplo, � caracteristicamente homo politicus. Na sua famosa "Carta s�tima", ele admite que o objetivo de sua obra � a reforma do Estado. Mas n�o seria preciso isso para alertar-nos da conveni�ncia de ler os seus escritos n�o como descri��es da realidade, e sim como montagens de uma realidade posti�a que ele quer impingir a seus disc�pulos em vista de um resultado. Como autor de um projeto pol�tico, Plat�o n�o deve ser julgado s� pelo teor intelectual de suas id�ias, mas segundo a eleva��o das inten��es, a lisura dos m�todos e o car�ter �til ou danoso dos resultados de sua a��o na Hist�ria. Se n�o fosse por isso, certas argumenta��es capciosas que ele atribui a S�crates -- e que n�o teriam o menor sentido justamente no contexto de uma disputa entre o novo esp�rito de rigor socr�tico e o arsenal consagrado de prestidigita��es sof�sticas que ele pretende desmascarar - teriam de ser explicadas como lapsos de l�gica ou como mentiras gratuitas. A primeira hip�tese deve ser afastada porque muitos desses erros s�o demasiado grosseiros para algu�m que n�o podia ignorar os crit�rios dial�ticos que, na sua pr�pria academia, j� vinham sendo ensinados por um seu disc�pulo (Arist�teles). A segunda faria de Plat�o um leviano indigno de aten��o. Plat�o, pois, quando mente, tem algo em vista, como � pr�prio dos pol�ticos, e muitos de seus erros s�o mentiras propositais. Isto deve ser levado em conta na interpreta��o da sua obra, enquanto a de Arist�teles se coloca mais na pura dimens�o teor�tica e pode ser compreendida de maneira mais literal. Quando ele diz algum absurdo (y que los hay, los hay), � simples erro cient�fico, que pode danificar em mais ou em menos o conjunto do sistema, mas n�o requer a sondagem de motiva��es ocultas. Mas, se tais precau��es s�o indispens�veis no estudo dos cl�ssicos, quanto mais n�o o seriam no da produ��o cient�fica de uma �poca em que praticamente toda a classe acad�mica vive a soldo de governos, servi�os secretos, partidos pol�ticos, ONGs e outras organiza��es decididas a moldar o mundo? Nessa �poca, a autoridade intelectual em estado puro � t�o rara quanto o puro hero�smo ou a pura santidade. A quota de a��o pol�tica embutida na produ��o acad�mica � t�o imensa que, num impressionante n�mero de casos, a leitura de teses universit�rias s� � proveitosa para t�cnicos em informa��o estrat�gica, aptos a identificar e neutralizar, nelas, o elemento de desinforma��o. Para os demais, � apenas auto-intoxica��o mental.
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