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Jesus e a pomba de Stalin

Olavo de Carvalho
O Globo, 20 de outubro de 2001

 

Quando Cristo disse: �Na verdade amais o que dever�eis odiar, e odiais o que dever�eis amar�, Ele ensinou da maneira mais expl�cita que os sentimentos n�o s�o guias confi�veis da conduta humana: antes de podermos us�-los como indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que � certo e errado. Os sentimentos s� valem quando subordinados � raz�o e ao esp�rito.

Raz�o n�o � s� pensamento l�gico: reduzi-la a isso � uma idolatria dos meios acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Raz�o � o senso da unidade do real, que se traduz na busca da coes�o entre experi�ncia e mem�ria, percep��es e pensamentos, atos e palavras etc. A capacidade l�gica � uma express�o parcial e limitada desse senso. Tamb�m s�o express�es dele o senso est�tico e o senso �tico: o primeiro anseia pela unidade das formas sens�veis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso � raz�o.

Esp�rito � aquilo que inspira a raz�o a buscar a chave da unidade da vis�o do mundo no supremo Bem de todas as coisas e n�o num detalhe acidental qualquer, tomado arbitrariamente como princ�pio de explica��o universal, como algumas escolas filos�ficas fazem com a linguagem, outras com a Hist�ria, outras com o inconsciente etc. O esp�rito � o topo do edif�cio da raz�o, que por ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tenta��o de enrijecer-se num fetichismo tr�gico ou ut�pico.

Nem a raz�o nem o esp�rito se imp�em. S� nos abrimos a eles por livre vontade. A abertura para a raz�o vem essencialmente da caridade, do amor ao pr�ximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se ao di�logo, � prova, ao senso das propor��es e, em suma, ao primado da realidade. A abertura para a raz�o � educa��o. Educa��o vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educa��o a alma se liberta da pris�o subjetiva, do egocentrismo cognitivo pr�prio da inf�ncia, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educa��o � a conquista da maturidade. O homem maduro -- o spoudaios de que fala Arist�teles -- � aquele que tornou sua alma d�cil � raz�o, fazendo da aceita��o da realidade o seu estado de �nimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem. Este ponto � crucial: ningu�m pode guiar a comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de Arist�teles. L�deres revolucion�rios e intelectuais ativistas s�o apenas homens imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus temores e suas ilus�es pueris, produzindo o mal com o nome de bem.

A abertura ao esp�rito � um ato de confian�a pr�via no bem supremo da exist�ncia, ato sem o qual a raz�o perde o impulso ascendente que a anima e, fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudototalidade, mais alienante ainda que o ego�smo subjetivo inicial. O nome religioso desse ato de confian�a � f�, mas a confian�a que eleva a raz�o � busca do infinito transcende o sentido da mera ades�o a um credo em particular e tem antes uma dimens�o antropol�gica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela f� e por meio da raz�o.

O esp�rito e a raz�o educam os sentimentos. Os sentimentos do homem amadurecido pelo esp�rito e pela raz�o s�o diferentes dos do homem imaturo, porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o segundo ama ou odeia �s tontas, segundo as inclina��es arbitr�rias da sua subjetividade moldada pelas press�es e atrativos do meio social.

Mas o que atrai a alma para a abertura ao esp�rito e � raz�o � a esperan�a, e o despertar da esperan�a � um mist�rio. Homens submetidos � mais dura opress�o e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperan�a, enquanto outros a perdem � primeira frustra��o de um desejo tolo. A esperan�a n�o est� sob o nosso controle. Seu advento depende do esp�rito mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da fic��o, giram em torno do mist�rio da esperan�a.

A esperan�a, a f� e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que deve ser amado. O culto idol�trico dos sentimentos � um egocentrismo cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o homem busca afirmar sua liberdade por meio da ades�o cega a seus sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O caminho da liberdade � para cima, n�o para baixo. Libertar-se n�o � afirmar-se: � transcender-se.

Das v�rias formas de escravid�o a que o homem se sujeita pelo culto dos sentimentos, a pior � a escravid�o �s palavras. Por meio do falat�rio em torno o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emo��es � simples audi��o de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam rea��es autom�ticas. Por isso as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas � s� nominalmente que guerra significa mortic�nio e paz significa tranq�ilidade e seguran�a. As guerras, no s�culo XX, mataram 70 milh�es de pessoas. � muita gente. Mas 180 milh�es, mais que o dobro disso, foram mortos por seus pr�prios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro sabe que as rela��es entre guerra e paz s�o amb�guas, que s� um exame criterioso da situa��o concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da Paz, oferecida � adora��o infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o s�mbolo da Pax sovi�tica -- a ordem social totalit�ria constru�da sobre trabalho escravo, pris�es em massa e genoc�dio -- se sobrepusesse, na imagina��o dos povos, ao s�mbolo crist�o do Esp�rito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto a Pomba da Paz, tamb�m manifestos pela paz, discursos pela paz e at� missas pela paz s�o, muitas vezes, blasf�mias e armas de guerra. No dicion�rio, os sentidos da guerra e da paz est�o nitidamente distintos, mas o homem maduro n�o se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a absolutos verbais.

Igualdade, liberdade, direito, ordem, seguran�a e milhares de outras palavras foram tamb�m incutidas na mente das massas como programas de computador para acionar nelas automaticamente as emo��es desejadas pelo programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que deveriam amar. At� a esperan�a, chave da f� e da caridade, se torna a� uma arma contra o esp�rito, quando se coisifica na expectativa de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais dinheiro. Jesus deixou claro que n�o era nenhuma dessas esperan�as a que Ele trazia. Era a esperan�a de fazer de cada um de n�s um novo Cristo, encarna��o e testemunha do esp�rito. Quem aceitar menos que isso s� ganhar�, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de Stalin.