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‘Os pedar da bicicreta’

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 2 de agosto de 2001

 

Uma famosa dama do show business, no meio de ruidosa festa na boate carioca People's, tentava se comunicar, aos berros, pelo telefone: "Fulaninho? Eu estou aqui no Pipo. Pipo! P�iiiiiiipo! P�-i-p�-�, seu burro! Pipo!"

Outro dia, num programa de perguntas e respostas, um famoso cantor, solicitado a desencavar do seu vasto repert�rio l�xico o nome de algo que se encontrasse em academias de muscula��o e come�asse com "e", respondeu resolutamente: "Estrutor."

Em id�nticas circunst�ncias, outra estrela, convidada a emitir com seus l�bios de mel um voc�bulo com inicial "i", n�o hesitou um segundo: "Iscola."

A vida imita a arte. "Os pedar da bicicreta" sa�ram da piada para entrar na Hist�ria.

� falso alegar que esses personagens s�o almas simpl�rias, gente do povo.

S�o formadores de opini�o, ganham rios de dinheiro e, entre banqueiros e senadores, � chique receb�-los em casa. A meninada os tem como �dolos, e um sorriso dos desgra�ados, num an�ncio de pasta de dentes, � considerado argumento infal�vel para a persuas�o dos consumidores. Em programas de audit�rio, s�o consultados sobre pol�tica, sobre religi�o, sobre moral sexual, e ouvidos com a aten��o reverencial que outrora se concedia aos sacerdotes e homens de ci�ncia. Enfim, s�o modelos de conduta inclusive ling��stica.

A progressiva admiss�o desses tipos nas altas rodas reflete algo mais que a for�a dissolvente da m�dia. Reflete a vontade de esculacho, o crescente apetite de autodestrui��o de uma elite dominante que n�o parece ter outro empenho na vida sen�o penitenciar-se da ascens�o de sua fortuna material mediante sacrif�cios rituais da sua dignidade moral no altar do que existe de mais baixo e desprez�vel na sociedade.

Muitos, nesse meio, v�o al�m do abjeto puxa-saquismo de cantores analfabetos e dan�arinas de cabar�. Prosternam-se, respeitosamente, ante ladr�es e traficantes, como quem confessasse haver mais honra e probidade no crime do que no enriquecimento normal e l�cito de uma ind�stria, de um banco, de um escrit�rio de investimentos.

Na verdade, a coisa veio num "crescendo" de auto-esculhamba��o masoquista desde os anos 50. O primeiro sinal de debilidade moral foi a abertura geral dos sal�es elegantes para a intelectualidade comunista que ia ali fartar-se do bom e do melhor, arrancar dinheiro do capitalista idiota e sair agourando a morte pr�xima do execrando anfitri�o. O burgu�s, roubado e humilhado, se babava de gozo como um personagem de Nelson Rodrigues: "Me cospe na cara! Me cospe!."

T�o vasto prest�gio angariou nesses meios o intelectual comunista que, depois de um tempo, j� n�o era preciso ser intelectual. Bastava ser comunista. A intelectualidade vinha por transfer�ncia de direitos.

J� na gera��o que se seguiu, a pr�pria condi��o de comunista foi dispensada.

Bastava o sujeito ser um brega, um grosso, um s�mbolo qualquer do pov�o encardido, e j� se tornava uma personifica��o bastante da vingan�a redentora, sem cuja presen�a ritual a burguesia se sentiria culpada. Foi nessa fase que a turma dos "pedar da bicicreta" come�ou a ser admitida.

Nos anos 70, a exibi��o de breguice revelou-se insuficiente para aplacar a sanha masoquista da elite. Para ser admitido nas altas rodas, o postulante precisava ostentar, al�m das marcas vis�veis da esculhamba��o f�sica, provas cabais de esculhamba��o mental. Foi a �poca da antipsiquiatria. Sem um certo grau de esquizofrenia comprovada, ningu�m podia ter acesso ao "grand monde".

No cap�tulo seguinte, a loucura mesma j� n�o satisfazia. Era preciso a ilegalidade, a contraven��o. Cafetinas e prostitutas eram ouvidas com devo��o em programas de tev�, ao lado de padres e acad�micos, como express�es respeit�veis da opini�o nacional. Garotas de programa deixaram de ser amantes furtivas: passaram da clandestinidade ao estrelato, sendo exibidas como provas de "status".

No fim j� n�o bastava a contraven��o. Era preciso a delinq��ncia grossa, o crime. Uma senhora da alta sociedade que n�o tivesse um namorado traficante ou seq�estrador sentia-se a mais miser�vel dos mortais.

Sem dificuldade pode-se conceber o pr�ximo epis�dio: a classe rica j� n�o se contentar� em ser aviltada, enganada, roubada. Exigir� o pr�prio assassinato. Em vez de gemer apenas "me cospe!", o burgu�s armar� a m�o do visitante e, entre espasmos de prazer, implorar�: "Me mata!"