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O poder de conhecer

Olavo de Carvalho
O Globo, 4 de agosto de 2001

 

�Experimentai de tudo, e ficai com o que � bom�, aconselha o ap�stolo. Experi�ncia, tentativa e erro, constante reflex�o e revis�o do itiner�rio � tais s�o os �nicos meios pelos quais um homem pode, com a gra�a de Deus, adquirir conhecimento. Isso n�o se faz do dia para a noite. �Veritas filia temporis�, dizia Sto.Tom�s: a verdade � filha do tempo. N�o me venham com fulgura��es m�sticas e intui��es s�bitas. �Que las hay, las hay�, mas mesmo elas requerem prepara��o, esfor�o, humildade, tempo. At� Cristo, no cume da agonia, lan�ou ao ar uma pergunta sem resposta. Por que n�s, que s� somos filhos de Deus por delega��o, ter�amos o direito cong�nito a respostas imediatas?

O aprendizado � imposs�vel sem o direito de errar e sem uma longa toler�ncia para com o estado de d�vida. Mais ainda: n�o � poss�vel o sujeito orientar-se no meio de uma controv�rsia sem conceder a ambos os lados uma credibilidade inicial sem reservas, sem medo, sem a m�nima preven��o interior, por mais oculta que seja. S� assim a verdade acabar� aparecendo por si mesma. O verdadeiro homem de ci�ncia aposta sempre em todos os cavalos, e aplaude incondicionalmente o vencedor, qualquer que seja. A isen��o n�o � desinteresse, distanciamento frio: � paix�o pela verdade desconhecida, � amor � id�ia mesma da verdade, sem pressupor qual seja o conte�do dela em cada caso particular.

N�o h� nada mais est�pido do que a convic��o geral da nossa classe letrada de que n�o existe imparcialidade, de que todas as id�ias s�o preconcebidas, de que tudo no mundo � subjetivismo e ideologia. Aqueles que proclamam essas coisas provam apenas sua total inexperi�ncia da investiga��o, cient�fica ou filos�fica. N�o dando valor � sua pr�pria intelig�ncia � porque jamais a testaram � apressam-se em prostitu�-la � primeira cren�a que os impressione, e da� deduzem, com demencial soberba, que todo mundo faz o mesmo. N�o sabem que uma aposta total no poder do conhecimento bloqueia, por antecipa��o, todas as apostas parciais em verdades preconcebidas. Se o que est� em jogo para mim, no momento da investiga��o, n�o � a tese �x� ou �y�, mas o valor da minha pr�pria capacidade cognitiva, pouco se me d� que ven�a �x� ou ven�a �y�: s� o que importa � que eu mesmo, enquanto portador do esp�rito, saia vencedor. Nenhuma cren�a pr�via, por mais sublime que seja o seu conte�do, vale esse momento em que a intelig�ncia se reconhece no intelig�vel. Quem n�o viveu isso n�o sabe como a felicidade humana � mais intensa, mais luminosa e mais duradoura que todas as alegrias animais.

Infelizmente, a classe intelectual est� repleta de indiv�duos que n�o conhecem, da intelig�ncia, sen�o o seu aparato de meios � a l�gica, a mem�ria, os sentimentos, cada qual prezando mais um ou outro desses instrumentos, conforme suas inclina��es pessoais � mas n�o t�m a menor id�ia do que seja a intelig�ncia enquanto tal, a intelig�ncia enquanto poder de conhecer o real. � impressionante como o poder mesmo que define a atividade dessas pessoas � o intelecto � pode ser desprezado, ignorado, reprimido e por fim totalmente esquecido na pr�tica di�ria de seus afazeres nominalmente intelectuais. O culto da raz�o ou dos sentimentos, das sensa��es ou do instinto, da f� cega ou do �pensamento cr�tico�, n�o � sen�o o res�duo supersticioso que sobra no fundo da alma obscurecida quando se perde o sentido da unidade da intelig�ncia por tr�s de todas essas opera��es parciais. A intelig�ncia, com efeito, n�o � uma fun��o, uma faculdade em particular: � a express�o da pessoa inteira enquanto sujeito do ato de conhecer. A intelig�ncia n�o � um instrumento, um aspecto, um �rg�o do ser humano: ela � o ser humano mesmo, considerado no pleno exerc�cio daquilo que nele h� de mais essencialmente humano.

Perguntaram-me uma vez, num debate, como eu definia a honestidade intelectual. Sem pestanejar, respondi: � voc� n�o fingir que sabe aquilo que n�o sabe, nem que n�o sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se sei, sei que sei. Se n�o sei, sei que n�o sei. Isto � tudo. Saber que sabe � saber; saber que n�o sabe � tamb�m saber. A intelig�ncia n�o �, no fundo, sen�o o comprometimento da pessoa inteira no exerc�cio do conhecer, mediante uma livre decis�o da responsabilidade moral. Da� que ela seja tamb�m a base da integridade pessoal, quer no sentido �tico, quer no sentido psicol�gico. Todas as neuroses, todas as psicoses, todas as mutila��es da psique humana se resumem, no fundo, a uma recusa de saber. S�o uma revolta contra a intelig�ncia. Revoltas contra a intelig�ncia � psicoses, portanto, � sua maneira � s�o tamb�m as ideologias e filosofias que negam ou limitam artificiosamente o poder do conhecimento humano, subordinando-o � autoridade, ao condicionamento social, ao benepl�cito do consenso acad�mico, aos fins pol�ticos de um partido, ou, pior ainda, subjugando a intelig�ncia enquanto tal a uma de suas opera��es ou aspectos, seja a raz�o, seja o sentimento, seja o interesse pr�tico ou qualquer outra coisa.

� claro que, para cada dom�nio especial do conhecimento e da vida, uma faculdade em particular se destaca, ainda que sem se desligar das outras: o racioc�nio l�gico nas ci�ncias, a imagina��o na arte, o sentimento e a mem�ria no conhecimento de si, a f� e a vontade na busca de Deus. Mas, sem a intelig�ncia, que � cada uma dessas fun��es, ou a justaposi��o mec�nica de todas elas, sen�o uma forma requintada de fetichismo? Que � uma imagina��o que n�o intelige o que concebe, um sentimento que n�o se enxerga a si mesmo, uma raz�o que raciocina sem compreender, uma f� que aposta �s cegas, sem a vis�o clara dos motivos de crer? S�o cacos de humanidade, jogados num por�o escuro onde cegos tateiam em busca de vest�gios de si mesmos. Toda �cultura� que se construa em cima disso n�o ser� jamais sen�o um monumento � mis�ria humana, um macabro sacrif�cio diante dos �dolos.

S� o inteligir, assumido como estatuto ontol�gico e dever m�ximo da pessoa humana, pode fundamentar a cultura e a vida social. Por isso n�o h� perd�o para aqueles que, vivendo das profiss�es da intelig�ncia, a rebaixam e a humilham. Cada vez que um desses indiv�duos grita, seja na l�ngua que for, seja sob o pretexto que for, �Abajo la inteligencia!�, � sempre o coro dos dem�nios que ecoa, do fundo do abismo: �Viva la muerte!�