O palanque e as chinelas
Olavo de Carvalho
�ric Weil, fil�sofo judeu-alem�o que em protesto contra Hitler abandonou o uso do idioma natal e se tornou um cl�ssico da l�ngua francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: "Em pol�tica, o �nico ponto de vista leg�timo � o do governante." As mentes incapazes de abstra��o podem ler isso como um apelo � obedi�ncia servil. Mas o que Weil quis dizer � que o cidad�o que opine sobre pol�tica sem se colocar em imagina��o na pele do governante, sem assumir no plano moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar politicamente caso agisse segundo essa opini�o, � apenas um tagarela que n�o tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma � v�lida, inclusive, para opini�es pol�ticas que n�o digam respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais dela, pois mesmo a��es de governo limitadas a esses aspectos afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas. A sucess�o de decep��es que o Brasil tem tido com seus governantes, cada qual t�o h�bil em censurar os erros de seu antecessor quanto propenso a comet�-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que essa exig�ncia elementar da moralidade intelectual � completamente desatendida entre n�s. Os pol�ticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, s�o t�o incapazes de imaginar-se na posi��o do governante quando o criticam que, quando chega o dia de substitu�-lo no cargo, est�o completamente despreparados para o papel: t�o logo assumem o governo, descobrem um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de longe haviam previsto quando pontificavam do alto das tribunas da oposi��o. E ent�o, sonsos e desorientados, cometem erro atr�s de erro. Mas, se at� os pol�ticos s�o assim, que dizer do cidad�o comum e, sobretudo, dessa classe especial de cidad�os que s�o os intelectuais, os cr�ticos de tudo, os opinadores profissionais entre os quais me incluo? Cada qual, a�, se cr� no direito de julgar em nome de ideais abstratos e crit�rios hipot�ticos de perfei��o, sem ter na m�nima conta as dificuldades reais da situa��o concreta. Pior ainda, ningu�m, ao opinar sobre problemas nacionais, se at�m ao dom�nio daquilo em que pode interferir pessoalmente. O professor n�o se contenta em opinar sobre o que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como fazer melhores jornais. N�o: cada um, quando abre a boca, tem planos de escala nacional que, para ser executados, sup�em no m�nimo um poder presidencial. No Brasil s� se debate uma coisa: planos de governo - e esses planos nem sequer s�o planos: s�o ideais gen�ricos, puramente verbais, que servem como padr�o para julgar e condenar a realidade, mas n�o se tornar eles pr�prios uma realidade. Cada brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes imagin�rios que, quando os tiver no mundo real, haver� de fazer e acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as dificuldades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o que eles pr�prios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala como se tivesse nas m�os o cetro imperial, mas com as responsabilidades de simples cidad�o comum, �s vezes at� menor de idade. O contraste entre a escala macrosc�pica dos temas e a incapacidade de se elevar, no exame deles, ao "ponto de vista do governante" marca os debates nacionais com os sinais inconfund�veis do puerilismo e da papagaiada histri�nica. Procurando escapar � contamina��o desse v�cio deprimente, tenho evitado opinar em escala propriamente pol�tica, atendo-me antes �quilo que entendo que eu e os meus colegas de of�cio - escritores, jornalistas, professores - podemos fazer aqui e agora, com o poder que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos s�o estritamente pol�ticos, n�o discuto a� o que o governante deve fazer, mas o que n�s, formadores de opini�o, devemos pensar e dizer. Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo - n�o os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas ambi��es que eu. Mas aquele que assim se at�m ao dom�nio em que pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente incompreendido. Num pa�s onde todos falam desde cima de um palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que n�o se eleva acima das chinelas?
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