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Da piedade ao orgulho

Olavo de Carvalho
Época, 7 de outubro de 2000

 

O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatifica��o do Mal

 

�L�nin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que s� o comovia quando apto a sublinhar seu �dio ao capitalismo.� Quem diria que essa observa��o de Franz Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?

No entanto, quem ler as declara��es de certos bispos brasileiros nos �ltimos anos haver� de reparar que, nelas, a piedade e a compaix�o, longe de ocupar o centro e o topo de seu universo de valores, est�o sempre subordinadas a um projeto pol�tico, reduzidas a instrumentos e adornos ret�ricos da luta de classes: n�o � qualquer sofrimento que merece a aten��o dessa gente � � s� aquele que, exposto, sirva para despertar o �dio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.

Isso � empiricamente verific�vel por simples an�lise textual, e basta para comprovar que tais indiv�duos n�o s�o crist�os nem mesmo num sentido remoto e figurado da palavra. S�o simplesmente comunistas. S�o movidos pela mesma ambi��o milenarista que tornava L�nin t�o insens�vel ao padecimento alheio quanto sens�vel �s oportunidades de aproveit�-lo politicamente.

Compaix�o � sofrer junto, � partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. � afei��o que n�o entra em nosso peito sem trazer consigo a lembran�a de nossa fragilidade, portanto a exig�ncia incontorn�vel da humildade e da paci�ncia. Um dos atrativos m�gicos do socialismo � justamente a perspectiva de nos libertar desse sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na s�ntese moral de um servi�o prestado � Hist�ria. O Bem, a�, identifica-se com a vit�ria sobre o presente, com a cria��o do �mundo melhor�. A convic��o de servir ativamente a esse Bem infunde no homem tamanho amor-pr�prio que ele j� n�o precisa das virtudes passivas, restos sombrios de uma era de submiss�o e impot�ncia.

Por isso o comunista n�o se deixa afetar pelo sofrimento de seus contempor�neos. Ele j� lhes deu o que h� de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de constru��o do socialismo. Que mais poderiam exigir?

Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora tamb�m a consci�ncia de culpa � e o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-lhe os pecados, e ele n�o ver� em voc� sen�o a obstina��o do Mal antigo que resiste ao advento do novo Bem. J� n�o h� outro pecado no mundo sen�o o �reacionarismo�: quem est� livre deste � puro por defini��o e eternamente imaculado e imacul�vel, fa�a o que fizer.

� por isso que o saldo de 100 milh�es de mortos e a mis�ria indescrit�vel criada pelas economias socialistas n�o abalam em nada a boa consci�ncia esquerdista, imersa de uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatifica��o que transfigura em express�es supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L'amour en action voil� la r�volution. � tamb�m por isso que com tanta desenvoltura a mais anticrist� das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em dissolu��o. Esse fen�meno encontra sua cabal explica��o, com s�culos de anteced�ncia, na f�rmula de Agostinho: �Todos os v�cios se apegam ao Mal, para que se realize; s� o orgulho se apega ao Bem, para que pere�a�.

� dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas evang�licas.