Intelectuais org�nicos
Olavo de Carvalho
S� agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal �Valor�, na qual, for�ando at� onde � poss�vel o sentido das palavras, ele me incluiu entre os que teriam �preconceito contra o marxismo�. Apesar da data j� um pouco long�nqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar modus pensandi de um �intelectual org�nico�. �Preconceito�, caso algu�m ignore, � opini�o pr�via a um exame racional. Na deteriora��o geral da l�ngua, no entanto, a palavra tornou-se um estere�tipo infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclus�o adversa a seus preconceitos, � qual algu�m tenha chegado ap�s longo estudo e pondera��o. O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes de ter examinado sen�o um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e, passadas quatro d�cadas, ainda � marxista sem ter mais que um conhecimento perif�rico da argumenta��o antimarxista; ao passo que eu, tendo feito id�ntica escolha prematura, coloquei minha op��o entre par�nteses uns anos depois e, abstendo-me por duas d�cadas de emitir opini�es pol�ticas enquanto pesava criteriosamente os argumentos pr� e contra o marxismo, emergi enfim do sil�ncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neur�nios do prof. Coutinho. Entre n�s dois, obviamente, o preconceituoso � ele, que nunca escreveu uma linha sen�o para dar retroativamente ares de requinte intelectual �s cren�as a que j� tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso revelante do intelecto. Isso n�o quer dizer que hoje ele fa�a desse instrumento um uso mais intenso do que na aurora da sua milit�ncia. Pelo menos ele n�o o utiliza o bastante para perceber que n�o tem sentido afirmar que entrei na m�dia �com grande respaldo� e logo em seguida referir-se a mim como �uma voz isolada�, que �n�o � representativa de nada�... Ou bem eu, isolado, falo com a minha pr�pria voz, ou algu�m que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de exc�ntrico solit�rio. Se entre les deux, son coeur balance, isto s� prova que ele quer me rotular de alguma coisa, qualquer coisa, n�o importa o qu�. Quando digo que o marxismo imbeciliza, � a esse tipo de fen�meno que me refiro. Nenhum esquerdista, at� hoje, conseguiu dizer contra mim algo de inteligente. Ante a �voz isolada� que os atemoriza, todos t�m dado um show de in�pcia, de covardia e de maledic�ncia sussurrante. Tempos atr�s desafiei para um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas respectivas p�ginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fi�is escudeiros de um site devotado � beatifica��o do fundador do Partido Comunista Italiano. Fugiram, como de h�bito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposi��o ditatorial a oferta do interc�mbio de links. � sempre aquela coisa do �1984�: democracia � ditadura, ditadura � democracia. Discuss�o � imposi��o, imposi��o � discuss�o. Conceito � preconceito, preconceito � conceito. O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a desenvoltura, a tranq�ilidade de consci�ncia com que posam de vencedores ap�s uma debandada t�o ostensiva. Mas, creia-me, o fen�meno n�o se explica pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque n�o s�o intelectuais como os outros. S�o -- e gabam-se de ser -- �intelectuais org�nicos�, c�lulas de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. T�m sempre o apoio log�stico de uma rede inumer�vel de militantes obscuros, an�nimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da cal�nia quando os porta-vozes mais respeit�veis do �coletivo� se saem mal nos confrontos p�blicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo come�am o zunzum nos por�es. Agora mesmo, enquanto meus detratores mais not�rios se recolhem para lamber as feridas das �ltimas refregas, um jornalista de S�o Paulo, mais comunista que a peste, deplor�vel farrapo humano que busca no �dio pol�tico o al�vio de sua indescrit�vel mis�ria de alma, est� espalhando na internet avisos segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, n�o trabalho h� trinta anos e... vivo da explora��o de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acess�vel aos olhos do p�blico, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no mundo virtual, pode at� funcionar. A intriga propaga-se por reflexo condicionado, n�o por ades�o consciente. N�o � preciso acreditar nela para pass�-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como premissa impl�cita de julgamentos e decis�es. A manipula��o de automatismos mentais torna-se ainda mais f�cil numa atmosfera infectada de �dios e temores coletivos contra alvos mais ou menos distantes, s� conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda � o caldo de cultura ideal para esse tipo de bact�rias. � por sempre contar com esse fundo de reserva que o �intelectual org�nico� pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido n�o perde nunca. N�o adianta nada voc� derrubar um desses sujeitos no ringue. Enquanto voc� recebe sua medalha, eles j� fizeram a sua caveira entre os vizinhos. E quando voc�, imbu�do de seu prest�gio de campe�o, vai pedir fiado um quilo de feij�o no armaz�m da esquina, o portugu�s, desviando os olhos, lhe explica que os neg�cios v�o mal e que voc� n�o tem mais cr�dito. O mais p�rfido em tudo isso � que o comunista famoso pode sempre sair bonito, alegando que desaprova os m�todos imorais usados por seus companheiros an�nimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um �intelectual org�nico�, ele n�o pode mais deixar de beneficiar-se dos m�todos que desaprova. N�o � uma quest�o de escolha. O Partido trabalha para ele como ele trabalha para o Partido, na unidade org�nica e indissol�vel da bela imagem p�blica com a safadeza escondida. A imoralidade da milit�ncia comunista � intr�nseca e independe de aprova��o pessoal. E o m�ximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. � a s�ntese perfeita da boa consci�ncia com a falta de consci�ncia.
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