Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

 

A nova ordem nacional

Olavo de Carvalho
O Globo, 25 de agosto de 2001

 

Nunca, na Hist�ria do mundo, uma revolu��o comunista foi abortada com t�o escasso derramamento de sangue como aconteceu no Brasil em 1964. Mesmo o regime autorit�rio que se seguiu, ao defrontar-se com a resist�ncia armada dos derrotados, conseguiu desarticul�-la com um m�nimo de viol�ncia: 300 mortos � esquerda, 200 � direita. Eis um placar que n�o permite, em s� consci�ncia, fazer de um dos lados um monstro de crueldade, do outro uma v�tima inerme e angelical -- principalmente quando se sabe que a guerrilha n�o foi um �ltimo recurso encontrado por opositores desesperados ap�s o esgotamento das alternativas legais, mas a retomada de uma agress�o que, subsidiada e orientada desde Cuba, j� havia come�ado em 1961, em pleno regime democr�tico.

Muito menos � razo�vel admitir a hip�tese mongol�ide �- ou mentira p�rfida �- de que guerrilheiros armados, treinados e financiados pelo governo genocida de Fidel Castro, fossem democratas sinceros em luta contra a tirania, em vez daquilo que de fato eram: agentes revolucion�rios a servi�o da mais sangrenta ditadura do continente, que s� se opunham a um autoritarismo de direita em nome de um totalitarismo de esquerda.

Na mais modesta das hip�teses, o retorno � democracia deveria implicar, para os dois lados, a obriga��o de confessar publicamente seus pecados e crueldades, bem como de renunciar formalmente ao uso futuro de qualquer meio de a��o revolucion�rio, autorit�rio ou totalit�rio.

N�o obstante, o fim do per�odo militar n�o trouxe a pacifica��o, mas apenas a transfer�ncia dos combates do campo da luta armada para o da guerra de informa��es. Nesta nova fase, o conflito adquiriu uma fei��o das mais estranhas: s� um dos lados prosseguiu combatendo, enquanto o outro se recolhia � passividade e ao sil�ncio, confiando, com boa-f� suicida, na cicatriza��o espont�nea das feridas que seu advers�rio, enquanto isso, ia reabrindo � for�a, tenazmente, dia ap�s dia.

Passados 37 anos do golpe e uma d�cada e meia do retorno � normalidade, a campanha pertinaz e crescente de �dio aos militares e de beatifica��o dos comunistas poderia parecer apenas um s�dico e gratuito exerc�cio de revanchismo. Os poucos protestos que se elevaram contra ela condenaram-na precisamente nesses termos.

� luz dos acontecimentos das �ltimas semanas, por�m, a aparente loucura revela toda a sua raz�o de ser, toda a premedita��o certeira que a articulava por tr�s do pano. A deforma��o sistem�tica do passado n�o visava apenas a obter para os esquerdistas o consolo tardio e simb�lico de uma vingan�a verbal, nem mesmo a valorizar sua mercadoria hist�rica na disputa por indeniza��es e pens�es estatais. Visava a preparar o terreno para que, um dia, qualquer iniciativa das For�as Armadas contra o retorno da viol�ncia revolucion�ria pudesse ser denunciada, criminalizada e enfim bloqueada como amea�a de retorno � viol�ncia reacion�ria.

Esse dia chegou. Um conluio de jornalistas de esquerda, policiais federais e procuradores vem conseguindo fazer com que pare�a um crime intoler�vel o Ex�rcito investigar uma entidade empenhada em fomentar guerrilhas, enquanto essa entidade, por seu lado, se gaba publicamente de ter seu pr�prio servi�o de espionagem e o usa para dar apoio a esse mesmo conluio, sem que ningu�m veja nisso nada de anormal ou conden�vel.

Pol�ticos, rep�rteres, articulistas, comentaristas de TV, em un�ssono, cobram do Ex�rcito, em tons de moralismo escandalizado, �explica��es� sobre sua iniciativa de manter sob vigil�ncia pessoas e entidades ligadas � ditadura cubana e aos narcoguerrilheiros genocidas das Farc, como se o crime n�o residisse nessas liga��es mesmas e sim na ousadia de investig�-las para impedir que o Brasil se transforme numa Col�mbia. Ao mesmo tempo, ningu�m pergunta se, no vazamento de informa��es que desencadeou a investida dos policiais federais em busca de documentos sigilosos do Ex�rcito, houve alguma participa��o do servi�o de espionagem ilegal mantido pelo MST. Tamb�m ningu�m se pergunta se, ao abrir para jornalistas o acesso a documentos colhidos num inqu�rito realizado �sob segredo de Justi�a�, os procuradores n�o agiram como d�ceis instrumentos a servi�o das entidades que o Ex�rcito investigava.

Ningu�m se pergunta se esses procuradores e policiais federais n�o est�o entre aqueles que, em 7 de julho de 1993, o mesmo jornal que agora incrimina o Ex�rcito acusava de constitu�rem um n�cleo de agita��o esquerdista montado para fomentar rebeli�es dentro do aparato judici�rio e policial.

Ningu�m se pergunta se esses jornalistas est�o entre os 800 que naquele mesmo ano a CUT reconhecia ter em sua folha de pagamento, ou se pelo menos n�o s�o militantes, colaboradores ou �companheiros de viagem� de uma esquerda que alardeia seu desejo de paz enquanto entrega as crian�as nas escolas aos cuidados educacionais de agentes das Farc para que instilem nelas o �dio guerrilheiro.

E, quando o coro dos protestos � engrossado pelo maior partido pol�tico da esquerda nacional, ningu�m se pergunta se essa organiza��o, presidida por um ex-agente secreto cubano, tem mais isen��o para opinar no assunto do que a teria, num caso de conspira��o da direita, algum partido presidido por um agente aposentado da CIA.

N�o, nada disso pode ser investigado. A na��o, estupidificada pela propaganda, n�o se lembra, sequer, de que essas perguntas possam ser formuladas, mesmo em imagina��o. Mas, para al�m de todas as perguntas poss�veis, resta uma certeza hist�rica: um movimento pol�tico revolucion�rio que atrav�s da engenharia do esc�ndalo consegue humilhar e p�r de joelhos as For�as Armadas para usurpar o controle do seu servi�o de intelig�ncia �, ponto por ponto, a repeti��o do que se passou na Alemanha entre 1933 e 1939.

Quem quer que aceite esse novo estado de coisas deve estar preparado para aplaudir a realidade pol�tica que ele instaura: proibido o Ex�rcito de investigar a propaganda e a prepara��o de guerrilhas, o monop�lio dessas investiga��es ficar� inteiramente nas m�os daquelas mesmas pessoas e entidades que ele vinha investigando. Uma pesada cortina de sil�ncio baixar� sobre todas as opera��es paramilitares da esquerda, sobre suas liga��es poss�veis com a tirania cubana e com o narcotr�fico. Colaborar em segredo com essas opera��es ser� atividade protegida pelo Estado, denunci�-las ser� crime. A esquerda ter� conquistado o poder absoluto pelo meio mais simples, mais r�pido e mais indolor -� sem insurrei��o, sem greves, sem protestos e at� sem elei��es �-, pela simples manipula��o h�bil de uma opini�o p�blica reduzida ao estupor catal�ptico, incapaz de atinar com o sentido das transforma��es que se desenrolam bem diante dos seus olhos.