A natureza invis�vel
Olavo de Carvalho
Para a tradi��o crist�, refor�ada na Idade M�dia pelo enxerto aristot�lico, a posi��o que um homem ocupe na sociedade � um acidente que em nada afeta a sua ess�ncia universal humana, igual � de todos os outros membros da esp�cie. Rico ou pobre, leigo ou cl�rigo, senhor ou escravo, o animal racional tem os dons, os limites e as responsabilidades do humano. A igualdade dos cidad�os perante a lei n�o � sen�o a formula��o moderna e jur�dica dessa evid�ncia que a Igreja s� a duras penas conseguiu impor a culturas xen�fobas, profundamente imbu�das da falsa impress�o de uma diferen�a natural, essencial, irredut�vel entre seus membros e os das comunidades em torno, impress�o que, em muitas delas, se traduzia na inexist�ncia de um termo comum para designar a uns e outros. Se essa igualdade � natural, sua percep��o, no entanto, n�o o � de maneira alguma: � aprendizado, � obra de civiliza��o, � posse incerta que qualquer abalo p�e em risco. A todo momento conflitos e fanatismos obscurecem essa verdade fundamental e entronizam em lugar dela as diferen�as de classes, de ra�as, de na��es, de culturas. Para o nazista, a diferen�a entre ele e o judeu n�o � uma casualidade gen�tica: � um abismo essencial, ontol�gico, intranspon�vel. Os acidentes tomam o lugar da ess�ncia: o humano desaparece, sobrando apenas suas determina��es secund�rias. Dentre os fatores que debilitam a percep��o da unidade essencial da esp�cie e reduzem a nada o princ�pio da igualdade jur�dica decorrente dela, destaca-se hoje em dia, pela virul�ncia e amplitude de sua a��o paralisante sobre os c�rebros humanos, a heran�a marxista. Para o marxista, a no��o de natureza humana, considerada universalmente, � s� uma abstra��o sem conte�do, falso esquema criado pela propens�o est�tica e a-hist�rica do "pensamento burgu�s". A natureza humana, argumenta Marx, s� existe nas suas manifesta��es temporais, hist�ricas, e existe precisamente como capacidade de, pelo trabalho, fazer Hist�ria. Logo, n�o h� "uma" natureza humana, mas uma sucess�o de naturezas historicamente criadas e condicionadas: a natureza do propriet�rio romano e a do seu escravo, a do senhor feudal e a do servo da gleba, a do burgu�s e a do prolet�rio. O primarismo atroz dessa teoria salta aos olhos - de quem os tenha, � claro. Pois o que quer que exista ininterruptamente ao longo da Hist�ria n�o pode, ao mesmo tempo, ser produto dela. Tudo o que � hist�rico surge e desaparece, come�a e acaba, e � por isto mesmo que est� "dentro" da Hist�ria, abrangido pela dimens�o do devir hist�rico. Ora, a capacidade de agir, de trabalhar, de transformar deliberadamente o mundo material, a capacidade, enfim, de fazer Hist�ria, est� presente no homem de maneira constante e sem hiatos desde seu surgimento sobre a Terra. Suspend�-la, ainda que por minutos, acarretaria a imediata destrui��o da esp�cie humana. Essa capacidade n�o pode ser uma cria��o da Hist�ria porque �, pura e simplesmente, o pressuposto dela - um pressuposto t�o evidentemente natural e biol�gico, t�o evidentemente ante-hist�rico e supra-hist�rico que nenhum historiador s�rio tentou jamais abrang�-lo no territ�rio da sua ci�ncia, territ�rio cujo limite externo � fixado por esse mesmo pressuposto. No curso dos tempos, essa capacidade pode se expressar de maneiras variadas, mas n�o pode desaparecer e reaparecer dentro do tempo hist�rico como aparece e desaparece tudo o que a Hist�ria abrange e narra. Portanto, a vis�o de uma natureza humana supra-hist�rica n�o � nenhum erro do "pensamento burgu�s est�tico", mas simplesmente a descoberta certeira de uma ci�ncia maior, de um g�nio mais alto do que tudo quanto o talento subalterno e deficiente de Karl Marx pudesse conceber. Reduzir a produto da Hist�ria o que � fundamento da possibilidade de toda Hist�ria � rigorosamente o mesmo que fotografar uma vaca e em seguida espremer a m�quina para tirar leite do filme. Pode ter impressionado militantes, mas, para quem tenha algum treino filos�fico, � uma bobagem descomunal. Acontece que essa bobagem se tornou, para muitas pessoas letradas, a base de todo julgamento moral e de toda no��o de "direito". E ent�o j� n�o h� apenas diferentes naturezas humanas segundo as classes sociais, mas ainda essa no��o vem junto com a cren�a que algumas dessas classes s�o sempre culpadas, e outras inocentes. Para o juiz criminal imbu�do dessa mentalidade, nada mais natural do que, abolida a identidade de natureza que sustenta a igualdade perante a lei, estatuir ou suprimir direitos conforme o acusado perten�a por nascimento ou fortuna � classe dos culpados ou � dos inocentes. A escala mesma de gravidade dos crimes, perdida a unidade l�gica, se torna mut�vel segundo a classe social: � mais grave um membro da classe culpada lucrar com a alta do d�lar do que um da classe inocente vender t�xicos, matar, seq�estrar e estuprar. O "pathos" emocional e os discursos irados que sublinham esse tipo de julgamento, hoje em dia, inibem e dissuadem as mais razo�veis obje��es e ajudam a dar ares de superior justi�a divina ao que �, na realidade, a manifesta��o jur�dica de um escotoma adquirido, a express�o grotesca de uma mentalidade mutilada. E � nas m�os dessas pessoas intelectualmente mutiladas que se encontra, hoje, a parte mais ativa e entusiasmada do aparato punitivo do Estado. Com a maior sem-cerim�nia, com a consci�ncia tranq�ila de quem n�o tem consci�ncia nenhuma, elas far�o dessa m�quina, cada vez mais, uma arma mort�fera a servi�o da vingan�a pol�tica.
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