Lembrete de Natal
Olavo de Carvalho
A coincid�ncia do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) mu�ulmano � uma ocasi�o para lembrar que os pontos de contato entre as religi�es crist� e isl�mica - e tamb�m a judaica - v�o muito al�m do que as f�rmulas de bom-mocismo ecum�nico podem sugerir. Se h� uma li��o definitiva a tirar do estudo das religi�es comparadas � que elas s�o incompar�veis: n�o s�o esp�cies do mesmo g�nero, que possam ser avaliadas uma pela outra. S�o manifesta��es irredut�veis - e irredutivelmente diversas - de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre objetos diferentes, produz diferentes refra��es. A compara��o, a�, s� pode tomar duas dire��es: ou o confronto est�ril do inconfront�vel, ou a simples inspira��o que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a imaginemos como motor im�vel ou como a fonte eternamente silenciosa de todo Verbo. Por isso o estudo comparativo das religi�es, quando toma a forma do confronto de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos te�logos - e esse tipo de discuss�o, dizia o profeta Maom�, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais frut�fera � a aproxima��o dos s�mbolos, que dizem a mesma coisa em linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a comunidade de sentido entre elas, n�o pode traduzi-la numa terceira. Compreendida como disciplina contemplativa, a ci�ncia dos s�mbolos sacros � uma introdu��o � clareza do indiz�vel. Talvez ainda mais significativa que a coincid�ncia do Natal com o Eid-al-Fitr seria a aproxima��o dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Cor�o "desce" dos c�us ao cora��o do profeta. Maom� � o analfabeto que, no sil�ncio da noite, recebe em ditado ang�lico o mais belo livro da l�ngua �rabe, livro que transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recita��o em voz alta afetar os animais, que se det�m para ouvi-la. � tamb�m � noite que a Virgem, fecundada pelo Esp�rito, d� � luz a mais nobre das criaturas humanas, indistingu�vel do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes paradoxos � evidente. E, enquanto os te�logos disputam nas trevas, cotejando Cristo a Maom�, a narrativa, em si, � "luz sobre luz": Maom� n�o corresponde a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo n�o � Maom�, � o Verbo divino, o Logos, Kalimat�ullah. O esp�rito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Cor�o, "h� nisto um sinal, para os que entendem". Isso n�o quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo � a �nica via de salva��o. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de "via de salva��o" n�o se aplica ao Isl� ou ao juda�smo? O juda�smo � a lei, a constitui��o divino-hist�rica do povo eleito, n�o a via de salva��o para as almas individuais, para os pecadores errantes e ovelhas desgarradas. E a palavra mesma "religi�o" n�o corresponde ao �rabe din, que assim se traduz erroneamente. Din � o modo natural e primordial do ser social humano, a constitui��o civil da sociedade sacra - algo sem correspond�ncia no evangelho, onde Deus fala �s almas individuais, alheio e indiferente ao que � de C�sar. Como, pois, comparar essas dimens�es diferentes, achatando-as no confronto doutrinal do certo e do errado? As religi�es, simplesmente, n�o falam da mesma coisa. � preciso ter compreendido isto para atinar que � a mesma Voz que fala por meio de todas elas. Os conflitos correm por conta da incompreens�o humana, angustiada pelos seus esfor�os v�os de reduzir � unidade doutrinal algo que n�o � doutrina, mas que � a Presen�a mesma. O pr�prio Cor�o ensina-nos o limite dessas especula��es, e adverte judeus, crist�os e mu�ulmanos: "Concorrei na pr�tica do bem, que no ju�zo final N�s dirimiremos as vossas diverg�ncias."
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