Sobre algo que não existe
Olavo de Carvalho
A qualidade de um debate depende, no m�nimo, de que os participantes tenham a posse em comum do rol de conhecimentos requeridos para a compreens�o do assunto e um senso equivalente da for�a probante dos argumentos de parte a parte. Hoje, no Brasil, essa condi��o quase nunca se cumpre. Qualquer palpiteiro, por mais desinformado e incapaz de racioc�nio l�gico, se cr� habilitado a opinar sobre o que quer que seja, seguro de que a absor��o superficial do notici�rio o capacita a compreender e julgar t�o bem quanto quem analisasse o caso por vinte anos. �Thomas Jefferson dizia que a democracia era invi�vel sem cidad�os cultos e bem informados. No Brasil invertemos a f�rmula: democracia, para n�s, � nivelar por baixo, � fazer da ignor�ncia o direito primordial do cidad�o que opina. Isto cria uma situa��o constrangedora para o estudioso, que jamais pode contar com que o ouvinte saber� do que ele est� falando. Al�m de refutar o opositor, ele tem de educ�-lo, transmitir-lhe as no��es e crit�rios b�sicos do assunto. Mas o advers�rio n�o permitir� que ele fa�a isso. Em vez de aprender, multiplicar� presun�osamente as obje��es descabidas at� que a elucida��o do ponto em discuss�o se torne invi�vel. A quest�o do comunismo, por exemplo, � uma para quem s� tomou conhecimento dela pelo notici�rio, outra para quem tenha a perspectiva hist�rica do movimento comunista. O primeiro pode at� imaginar, como o sr. Amilcar Campos Bernardes (ZH, 20 out. 2000), que "o comunismo existe somente como ideal, n�o existe como algo real, palp�vel, que possa ser 'combatido'". Pode acreditar nisso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque sua inexperi�ncia confunde uma coincid�ncia de termos com uma identidade de fatos. No vocabul�rio marxista, com efeito, o "comunismo" nunca existiu historicamente: a URSS, a China ou Cuba chegaram apenas ao "socialismo", fase preparat�ria da sociedade comunista. Mas tomar isso como base para contestar a exist�ncia hist�rica do movimento comunista, de revolu��es comunistas e de regimes ditatoriais assumidamente empenhados na constru��o do comunismo, � o mesmo que negar que tenha havido mais de um le�o no mundo porque no dicion�rio a palavra "le�o" s� consta no singular. A coisa � de uma canhestrice t�o deplor�vel, que incita a gente a concordar para n�o ter de descer a explica��es elementares que arriscariam parecer humilhantes. Em segundo lugar, o sujeito pode acreditar que o comunismo n�o existe porque na m�dia recente ele s� ouve falar de economias mistas ou em plena abertura para o capital privado, o que o leva a aceitar, por tabela, a imagem do comunismo e, por tabela, do anticomunismo, como coisas ultrapassadas. Essa imagem, no entanto, � uma ilus�o de �tica: ela resulta de uma superposi��o acidental da propaganda neoliberal triunfalista com o recuo t�tico do comunismo para reagrupamento de for�as. Quem conhe�a a hist�ria do comunismo sabe que esse tipo de recuo � uma constante na conduta desse movimento, e que ele anuncia, n�o o abrandamento ou dissolu��o do impulso revolucion�rio, mas a imin�ncia de reinvestidas em larga escala, numa oscila��o pendular que reflete bem a dial�tica de fazer-se de morto para assaltar o coveiro. Assim, a abertura econ�mica de L�nin em 1921 preparou o fortalecimento da ditadura em 1929; a liquida��o do Comintern em 1943 antecipou a ocupa��o da Europa Oriental pelas tropas sovi�ticas em 1945, a revolu��o chinesa em 1949 e a invas�o da Cor�ia do Sul em 1950; a "desestaliniza��o" de Kruchev em 1956 aplanou o terreno para a revolu��o cubana de 1959 e o florescimento do terrorismo na d�cada de 60. O desmantelamento da URSS deve ser visto nessa perspectiva. Basta saber que a KGB ainda � o principal esteio do governo Putin para perceber que o desmanche do regime foi feito de modo a preservar a estrutura, as redes de conex�o e os meios de a��o do movimento comunista internacional. Ademais, � uma piada negar que o comunismo ou, se quiserem, o socialismo exista como regime ainda em vigor, que oprime sob suas patas de ferro nada menos de um bilh�o e trezentos milh�es de pessoas na China, no Tibete, na Cor�ia e em Cuba. Se em todos esses lugares o governo faz concess�es ao capital privado, isto s� pode soar como promissor an�ncio de abertura democr�tica aos ouvidos de quem ignore que concess�es id�nticas s�o c�clicas desde 1921, sempre coincidindo com per�odos de reagrupamento estrat�gico e prepara��o de truculentas reinvestidas. Dez anos atr�s, diante da queda do Muro de Berlim, qualquer sr. Bernardes rejeitaria como paran�ico o an�ncio, para breve, do espetacular ressurgimento das guerrilhas na Am�rica Latina, n�o obstante facilmente previs�vel para quem houvesse estudado o assunto. Hoje as guerrilhas j� est�o a�, e os Bernardes do mundo ainda n�o perceberam nem mesmo que o comunismo existe. *** Prometi responder a todos os meus cr�ticos, sem fazer ouvidos moucos a nenhum, pois n�o h� ser humano que seja t�o desprez�vel ao ponto de n�o merecer ao menos um tabefe. A profus�o num�rica e a qualifica��o declinante dos objetores menores que v�m surgindo nos �ltimos tempos t�m-me dificultado manter a palavra. N�o vejo como explicar, por exemplo, ao sr. Juremir Machado da Silva (ZH) que ele n�o deveria opinar sobre minhas id�ias quando as desconhece ao ponto de lhes atribuir uma filia��o ao "pensamento �nico", que tem sido a infal�vel "b�te noire" dos meus escritos. Tamb�m fico totalmente desarvorado e sem a��o ante um cr�tico como o sr. Marcelo Xavier, da revista "Nao-Til" o qual, pretendendo dar-me li��es de estilo, declara, com toda a seriedade, que "ascens�o irresist�vel" � uma alitera��o. Que � que hei de fazer por essas criaturas? Posso ser bom conferencista para uma plat�ia adulta, mas n�o tenho a m�nima aptid�o de professor prim�rio. Ouvi dizer que na Bahia h� um famoso educador romeno que tem obtido excelentes resultados com crian�as mongol�ides. Vou tentar obter o endere�o dele.
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